Por Cristian de Paula
A eleição do jovem Boric, líder dos protestos estudantis de 2011 no Chile, como presidente, demonstrou como alguns analistas, aqui no Brasil, que se dizem de centro, ou mesmo “imparciais”, parecem não suportar a democracia. Parecem confundir democracia como uma espécie de ditadura do centro. Discutiram as eleições chilenas colocando, de um lado, um defensor do Pinochet, e de outro, um defensor de “ditaduras comunistas”, como polos opostos, ou mesmo como iguais. Como se o Chile houvesse falhado, em termos democráticos, por ter que escolher entre dois extremos. Como se, em uma Democracia, só o centro pudesse vencer. Se a escolha está entre um comunista, ou um “extremo-capitalista”, não há democracia, para eles. Não existe mesmo imparcialidade no universo do pensamento…
No entanto, mesmo se aceitarmos a premissa, a democracia exige mesmo que exista este espaço em que todos participem. Propostas, por mais absurdas que sejam, se colocam na mesa. Que a esquerda ou a direita vençam as eleições e assumam pautas mais conservadoras e progressistas, é justamente o aparelho democrático funcionando. Isso estava evidente nas eleições: o candidato comunista, que, ao meu ver, atua mais no campo de uma social-democracia, tendo feito uma aliança com o partido comunista para uma frente ampla contra a extrema-direita, disse claramente condenar as ditaduras, citando Cuba. Que queria lutar por igualdade social sem a quebra da democracia liberal e da institucionalidade da República. O candidato opositor, saudoso do regime de Pinochet, cumprimentou o vencedor em uma atitude democrática. Ele sabe que não há o que temer. Não vivemos mais na época de Allende, que entendia a democracia como socialismo. Os processos revolucionários dos anos cinquenta e sessenta perderam força. Mesmo a social-democracia, quando aparece no campo da esquerda, tem uma dificuldade enorme de emplacar mudanças sociais, por menores que sejam.
Me parece que pra poder fazer a Constituição Chilena ganhar algum caráter de produção de estado de bem estar social, há um longo caminho. E este presidente, terá de ter uma capacidade de argumentação e negociação redobradas, coisa que já mostrou em campanha: no segundo turno foi não só capaz de rearticular uma frente ampla para derrotar a direita, mas o seu próprio projeto.
Justamente por isso, penso que Boric tem tudo pra governar o Chile. A campanha foi surpreendente. Foi apertada, com uma derrota, porque, no primeiro turno, venceu a direita. Mas ele soube buscar energia. E o fez nas suas raízes. Boric vem da Patagônia, um dos primeiros lugares do mundo onde as questões climáticas ganharam força e se fizeram sentir. O Sul da América Latina aparece como um lugar onde problemas climáticos perigosos dão as caras já há algum tempo. Ele se articulou, durante a campanha, colocando o tema do clima como um ponto central. Isso, para um país como o Chile, que não tem muito território, e que enfrenta dificuldades com agricultura, é fundamental.
O Chile é um lugar onde velhas tradições de discussão não se perderam. A constituição não mudou, desde a ditadura. Mesmo sobre democracia, e sobre governos de esquerda, ela prevaleceu. Isso bloqueou condições de uma melhoria de vida para muitos e fez o país enfrentar recentemente o grito de uma geração que envelheceu sob uma constituição que não lhes oferecia direitos. Foi isso que fez com que as pessoas saíssem às ruas exigindo uma constituinte, sem medo de enfrentar o passado. E foi isso que fez essas pessoas elegerem Boric.
É claro que há quem argumente por uma democracia participativa para complementar a democracia liberal representativa. É claro que também há quem argumente em esgarçar a democracia para transformá-la em anarco-capitalismo. E claro que há muitos outros projetos. Mesmo a disputa pela manutenção da democracia liberal ou sua ruptura, é também Democracia. Afinal, não existe só democracia liberal. Agora, ele vai governar no contexto de elaboração de uma constituinte. É hora de lutar pelo mínimo de construção de um estado de bem estar social. O Chile tem muito a conquistar. E assim, nós também.
Cristian de Paula Sales Moreira Junior é professor de História e mestre em História Política pela UFG.