22 de novembro de 2024
Opinião
Publicado em • atualizado em 13/02/2022 às 00:31

Bolsonaro, democrata anti-republicano

Cristian de Paula Sales Moreira Junior é professor de História e mestre em História Política pela UFG.
Cristian de Paula Sales Moreira Junior é professor de História e mestre em História Política pela UFG.

Hoje existe um problema de primeira ordem: resolver a confusão entre Democracia, com origem atribuída aos gregos, e República, com origem atribuída aos romanos. Certamente esta confusão existe por uma questão histórica: com o advento da modernidade estes conceitos se casam e geram uma forma de organizar a sociedade que os funde ainda mais, tornando um cada vez mais necessário para a regulação e funcionamento do outro, dialeticamente. Mas não são a mesma coisa. É possível uma democracia anti-republicana. 

Esta se evidencia como a realidade construída no Brasil de Bolsonaro: a tentativa de projeção de uma democracia anti-republicana. De todos os adjetivos pejorativos aos quais ele se dá ao trabalho de responder, me parece que os únicos para os quais ele apresenta uma argumentação lógica e coerente são estes de “ditador” ou “fascista”, manifestados pela oposição para destacar certo aspecto autoritário ou anti-democrático. No entanto, ele disputou eleições, e venceu. E todas as suas reformas, por pior e danosas que sejam, são direcionadas ao Congresso ou mesmo editadas sob a forma de Medidas Provisórias, o que ainda assim acontece de acordo com o que estabelece a Constituição. Ora, que anti-democrata é este que se derrota a si mesmo dia após dia, constitucionalmente?

Bolsonaro está a tentar empreender um outro tipo de democracia a partir da projeção de um ambiente em que vence o mais forte, assim como nos territórios controlados pelas milícias. Talvez uma democracia anarco-capitalista, como dizem alguns. Mas certo é que ele não se afeiçoa com a República nas instituições que a representam. Elas existem para destacar um certo caráter representativo da sociedade. Um cargo, um prédio, um dispositivo que seja, não pertencem a uma pessoa ou a um grupo separado da sociedade. Eles são, justamente, uma res publica, uma coisa do povo. 

O Presidente age no sentido de tomar posse daquilo que lhe é confiado pelo povo. Age como se acreditasse que aquilo, agora que conquistado, lhe pertence por direito, e ele pode fazer o que quiser. Então, ele os desritualiza: aparece na sala presidencial de bermuda e chinelo, fala com um linguajar boçal não apropriado, aparece nas fotos enfermo e com a barriga aberta, pega água do canteiro para lavar as mãos… Ele não segue uma liturgia porque ela só existe para lembrar o tempo todo que nada daquilo lhe pertence, mas pertence a população. E isto é interpretado por alguma parte da sua bolha como simplicidade, sinceridade, honestidade, como se o que ele fizesse demonstrasse que ele é gente como a gente. Odiando a República, ele odeia as suas instituições. Todas elas, mas agora principalmente o STF.

Entendendo isto, acredito que podemos colocar Bolsonaro no lugar que lhe é devido. Alguém apontado pela mídia como quem pedia para caixas de restaurantes e postos de gasolina colocarem um valor acima na nota fiscal e, assim, poder reembolsar algumas centenas de reais na prestação de contas da Câmara; que recebia auxílio moradia sem precisar (e, quando questionado, diz que é para “comer gente”); que faz rachadinhas para comprar imóveis. Nada como os grandes ladrões de bilhões com os quais estávamos acostumados, mas ainda assim um político tradicional do Centrão. 

Alguém nestas circunstâncias poderia articular um golpe? Não é impossível. Desde que haja apoio das elites, nesse Brasil, tudo é permitido. No entanto, a impressão que tenho é de um Bolsonaro sem capacidade de articular qualquer coisa que seja. A forma que ele tem de governar o país e a própria casa é se afastar e deixar com que os conflitos se resolvam sozinhos. Que vença o mais forte, nesta anarquia, desde que ele possa garantir o dele. Dinheiro, uma relação agradável com Michele, não ser e não ter os filhos presos, dentre outras coisas. Isto é justamente uma espécie de não-autoritarismo. O autoritário usa da autoridade para ir lá e fazer alguma coisa, atuar diretamente, indicar a direção. Bolsonaro, ao contrário, parece querer se auto-eximir de qualquer responsabilidade. Deixa as coisas um pouco soltas. Ele parece não ser aquele que dá um golpe, mas aquele que corrompe as instituições pelas beiradas. Sem uma filosofia política qualquer que seja, sem uma doutrina, sem objetivos maiores. Apenas o puro e simples objetivo egoísta de se dar bem, ou de limpar sua própria barra.

Este é outro aspecto importante para entender a possibilidade de um golpe. Ele meio que vive do conflito ideológico, sem doutrina. Se a esquerda diz x, ele diz y. Se é a favor, ele é contra. Se é contra, ele é a favor. Bravatas e mais bravatas, depois volta atrás. “Veja bem, não era bem isso”… Imagino até que nas manifestações do dia 07 de setembro, ele próprio tenha ficado sem saber muito bem o que fazer. E no dia 08 tenha pensado “putz, e agora?”. Em um grupo bolsonarista perguntavam meio com ar de frustração “não adiantou nada? Não fechamos o STF?”. Os articuladores dos grupos e do movimento logo trataram de escrever mensagens e fazer vídeos dizendo “calma gente, não é do dia pra noite que as coisas mudam… também não vamos esperar  que um dia apenas mude toda uma história, não desanimem”. Risos. Pensaram que estavam fazendo parte de um movimento que mudaria tudo. Foram enganados. 

Das manifestações se percebe o que já sabíamos. Eram muita gente. No entanto, Bolsonaro não conseguiu sair da bolha: lá estavam os 25 – 30%. Isso mostra, a princípio, que ele tem um poder real sobre os que acreditam nele. Essas pessoas são mobilizadas de uma forma que a oposição ainda não consegue ser. E se fosse, Bolsonaro já estaria enfrentando um impeachment.

Essas são observações do dia. Pode ser que amanhã as coisas se desenvolvam diferentes e as ideias mudem. Como diria Hegel, a coruja de minerva só levanta voo ao entardecer…

Cristian de Paula Sales Moreira Junior é professor de História e mestre em História Política pela UFG. A opinião deste artigo não necessariamente reflete o pensamento do jornal se tornando exclusivamente responsabilidade do autor.