23 de novembro de 2024
Opinião
Publicado em • atualizado em 02/09/2014 às 14:10

As pesquisas como propaganda política

Por Pedrinho Guaresch, publicado originalmente no Observatório da Imprensa.

Vivemos o momento das pesquisas. Dormimos e acordamos com elas. Cada vez mais frequentes, algumas nacionais feitas até em dois dias. Seria ingênuo dizer que elas não têm influência. Têm, e muita. E elas são importantes nesse momento, pois fogem a toda regulamentação que é feita para que os meios de comunicação não façam “propaganda”, isto é, não digam os nomes dos candidatos, que não se façam coberturas sobre eles, que os executivos não possam inaugurar obras etc.

Mas por mais minuciosa que seja uma legislação, ela não dá conta de novos casos como, por exemplo, as entrevistas que são feitas com os candidatos e mesmo os debates nas emissoras de rádio e televisão. A razão de tais entrevistas e debates, repetidas à exaustão pela mídia, é que tais práticas se destinam a “esclarecer” os eleitores. Mero engano. Basta ver as entrevistas feitas pela Globo com os candidatos e as estratégias usadas.

Quem comanda o espetáculo nessas entrevistas é quem detém o poder de fazer a pergunta, de escolher o assunto, de determinar o tempo de cada um para falar ou responder a determinadas questões. Examinando as entrevistas feitas pela Globo, por exemplo, vê-se claramente que as perguntas feitas são muito mais respostas que perguntas. Já é transmitida toda uma mensagem nas perguntas. Elas são afirmações categóricas sobre os erros e os malfeitos dos candidatos e partidos e são colocadas como se fossem verdades inquestionáveis.

As pesquisas

Mas vamos às pesquisas. Deixemos de lado quem as faz, quem as paga, quem as divulga. Para uma análise crítica e iluminadora dessa questão, duas coisas são importantes: a primeira é o momento, isto é, o contexto e as circunstâncias em que é realizada; a segunda é o que se costuma chamar de efeito catraca, isto é, a retroalimentação de um fato sobre outro (no nosso caso, de uma pesquisa sobre outra), de tal modo que um fato ajuda o outro a crescer, assegurando e garantindo o patamar a que se chegou – seriam as consequências e os efeitos que o fato produz.

Apliquemos isso para o que está acontecendo nesse momento no Brasil com as pesquisas de intenção de voto dos candidatos à Presidência da República.

O fator momento

Até a morte do candidato Eduardo Campos, tudo transcorria numa aparente normalidade. Surge então o imprevisto, o fator surpresa: a morte do candidato. Ninguém a esperava. E foi um acontecimento que tomou conta do Brasil, noticiado e comentado por todos os veículos de comunicação. Esse é o momento, o tempo surpresa que os gregos chamavam de kairós, em contraposição ao kronos, o tempo rotina. Foi um tempo de comoção nacional. E houve ainda uma circunstância importante desse momento: ele durou praticamente cinco dias. As atenções estavam todas voltadas para ele.

Mas esse tempo de pesar, as dores e as condolências, os sentimentos de compaixão, não estavam concentrados apenas no candidato morto: compreendiam também a família do falecido e outros mais, os seus correligionários políticos, e de modo todo especial a sua vice na chapa à Presidência. O contágio era evidente. E, é evidente, a mídia soube trabalhar muito bem esse contágio. Nos últimos momentos foi quase uma simbiose.

Fica então a questão: não é de estranhar que grande parte dessa nação emocionada e consternada, ao ser perguntada sobre em quem votaria, lembrou-se dela, Marina Silva. Seria essa uma afirmação sem fundamento? Mas como explicar, então, que alguém que uma semana antes era escolhida por apenas 10% da população, fosse de imediato alçada a um patamar de 29%? Um caso de tomada de consciência repentina de milhões de pessoas? Há muito fundamento, então, em pensar que se não fosse pela enorme exposição na mídia isso não teria acontecido. Todos sabem que “quem está na mídia, existe”. E se está de maneira tão sofrida e aflita, existe muito mais.

O efeito catraca

Agora o segundo passo. Para garantir o patamar alcançado, era fundamental uma estratégia que garantisse o nível conseguido. E esse é o efeito catraca, que não permite que o nível alcançado recue. A sensação e o sensacionalismo não duram muito. O tempo se encarrega de recolocá-los em seu devido lugar. Então é preciso garantir que esse “estágio” conseguido pela emoção, comoção, sensação, se prolongue. E se possível acrescentar algo mais a esses elementos, nessas mesmas circunstâncias.

Foi o que o Datafolha e o Ibope (este, a pedido da Rede Globo e do jornal Estado de S.Paulo) inteligentemente souberam fazer: garantir a comoção, a sensação, a emoção e acrescentar a isso tudo o novo elemento sensacional que foi o salto de 10% para 29% no índice de escolha da candidata na pesquisa anterior. Mas não se podia perder tempo. Então foi feita a pesquisa “em dois dias, ontem e hoje”, como dizia exultante o âncora do Jornal Nacional.

Esse o efeito catraca. Aproveita-se o nível alcançado e tenta-se dar um passo à frente. Tenta-se confirmar e legitimar o espaço já conseguido. Ninguém está preocupado em perguntar a “racionalidade” desse crescimento. Ninguém se pergunta se isso irá fazer com que brasileiros e brasileiras possam chegar a um maior grau de cidadania e realização.

Há ainda, em nosso caso, um fator a mais que conta para que esse nível alavancado se perpetue e, até pode ser, cresça ainda um pouco: além de acrescentar mais sensação e surpresa, ele é difundido por todas as outras mídias que, infelizmente, repercutem acriticamente as notícias da grande mídia. A maior parte da mídia regional é alimentada por essa grande mídia central, comandada por uma pequena elite conservadora e fortemente seletiva. E o que é pior: o fato, construído e difundido por essa grande mídia, é tomado como fato dato, fato existente, assumido sem crítica e sem questionamento. Ai de quem o contestar.

Concluo.

Mencionava no início que as pesquisas são uma importante e eficiente propaganda política, se não a mais importante. Sorrateiramente elas constroem e legitimam o fato de determinados índices de escolha serem de fato como são veiculados, pois o pressuposto é o de que as pessoas pensem e reflitam ao responder sobre sua escolha de determinado candidato; eles estariam fazendo essa opção conscientemente. Ainda outro pressuposto tácito: se tantos escolhem tal candidato, ele só pode ser muito bom. Podemos votar nele com segurança.

Vale lembrar que nenhuma situação é definitiva. O vírus da história, o fator desmistificador do tempo, cedo ou tarde irá minar tais estratégias socialmente construídas. Mas isso não quer dizer que elas não tragam efeitos irrecuperáveis. O importante é não abandonar a proposta de exercer a ação política como prática consciente, livre e responsável, que dá dignidade às pessoas. Também não é fora de propósito lembrar as exigências éticas de tais práticas políticas.

É o leitor crítico e o escrutínio da história que vão testar as considerações aqui feitas. Nosso objetivo foi tentar evidenciar que as pesquisas não são neutras, muito menos ineficazes. Elas constituem um extraordinário fator de propaganda política, muito mais eficaz, no nosso entender, do que a propaganda eleitoral “gratuita”, pois as pesquisas conseguem esconder com astúcia seus verdadeiros intentos.

Quem viver, verá.

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Pedrinho Guareschi é professor e pesquisador do Programa de Psicologia Social e Institucional da UFRGS, autor de diversos livros, entre eles O Direito Humano à Comunicação – Pela Democratização da Mídia (Editora Vozes, 2013).