O dia 6 de Fevereiro de 1986 ficou marcado eternamente em minha vida. Momento que estive ali, só eu e o agressor, frente a frente. O trauma paralisa o tempo, que te leva de volta para as lembranças daqueles instantes que não parecem passar. O corpo responde. A frequência cardíaca acelera, o suor escorre, a respiração fica ofegante e a mente fica em estado de alerta. Poucas mulheres que passaram pelo mesmo que passei tem a oportunidade de relatar o que escrevo aqui, pois muitas delas estão mortas.
Desde terça-feira me peguei muito pensativa com a aprovação do projeto de lei pela Assembleia Legislativa de Goiás que institui bolsa para aquisição de arma de fogo de uso permitido, para a mulher vítima de violência doméstica ou em razão de ser mulher. Nós, seres humanos somos complexos e ao ver a possibilidade desse projeto se tornar uma lei, me perguntaram se tivesse uma arma na mão no fatalíssimo dia 6, o que teria acontecido? Se eu apertaria o gatilho? A minha resposta foi nunca.
E mesmo se uma mulher fosse capaz de apontar uma arma para um homem, antes mesmo dela apertar o gatilho, ele pode atacá-la, o que a deixa fisicamente em desvantagem. Em geral, a força muscular absoluta da mulher média é de 63,5% da força do homem. A força muscular da parte superior do corpo das mulheres é de quase 55,8% da força dos homens, segundo o posicionamento oficial da Sociedade Brasileira de Medicina do Esporte.
Quando nos perguntam, temos oportunidade de falar, mas não nos perguntaram e uma assembleia predominantemente composta por 39 homens e apenas 2 mulheres decidiram que caberá a mulher sua própria defesa.
Goiás está prestes à legalizar a violação ao princípio da vedação à proteção insuficiente. Em outros termos, o Estado encontra-se constitucionalmente obrigado a empreender todos os esforços necessários para efeito de evitar atos e comportamentos de violência no ambiente doméstico e familiar, mas os deputados goianos querem cobrir as falhas do sistema de segurança pública, atribuindo essa função à mulher.
Essa situação me fez recordar de uma decisão judicial proferida em 2018 por um juiz goiano, hoje está aposentado, que negou medida protetiva em um caso de violência doméstica com o seguinte fundamento:
“Se a representante quer mesmo se valorizar, se respeitar, se proteger, então bata firme, bata com força, vá às últimas consequências, e então veremos o quanto o couro grosso do metido a valente suporta”, afirmou o magistrado da 3º Vara civil da época. (CONJUR, 2018)
Culturalmente, os homens atribuem às mulheres responsabilidades que não são delas. O pai, principalmente quando o casal é divorciado, atribui à mãe a maioria dos cuidados das filhas e dos filhos. Na velhice, atribuem as filhas mulheres os cuidados dos pais idosos. O mesmo também acontece quando se trata de cuidados de pessoa com deficiência. E agora, no estado de Goiás, a lei que querem funcionar, atribui a responsabilidade estatal de segurança pública para a mulher cuidar de sobreviver diante de uma agressão de violência doméstica, ou seja, autoriza o estado a manter uma proteção deficiente. O que fere, é claro, o dever de art. 226, caput e § 8º, da Constituição Federal, de assegurar a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Quando a Constituição Federal fala sobre criar mecanismos de proteção, ela menciona sobre uma responsabilidade do estado, não das mulheres. Isso significa, por exemplo, criar formas legais para mitigar a ineficácia das medidas protetivas de urgência. Nesse sentido, cabe destaque para a Lei nº 13.641, de 2018, que incluiu o art. 24-A à Lei Maria da Penha, para efeito de tipificar a conduta de descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência, sujeitando o infrator à pena de 3 meses a 2 anos de detenção.
Uma ação que tem uma finalidade muito clara e importante, que é penalizar o descumprimento de medidas protetivas. Para tanto, também é importante se ter um sistema de monitoramento da vítima, a prioridade de atendimento, formas de acionar a polícia e dentre outras medidas que são de suma importância para evitar um feminicídio, sem que para isso, a mulher tenha que praticar uma violência, matar seu agressor, responder ao processo criminal para comprovar legítima defesa. Não podemos achar que é legítimo uma política pública de estado que isenta sua responsabilidade quanto a vida das mulheres e que fomente mais violência e mortes.
Dra. Cristina Lopes é ex-Secretária de Direitos Humanos e Políticas Afirmativas de Goiânia e Vereadora por dois mandatos