Neste dia 31 de agosto, Angeli fez 69 anos. Sim, sessenta e nove. A ironia já começa no número. O cartunista que passou a vida debochando de políticos, hippies envelhecidos, revolucionários desiludidos e gente de ressaca existencial agora chega a essa idade quase como uma piada pronta.
É curioso: em tempos de inteligência artificial, em que qualquer aplicativo se acha capaz de imitar estilos, um questionamento sobre arte gráfica vem à tona. Miyazaki já tinha dito que ficava enojado com arte feita por robôs. Angeli provavelmente riria — e acenderia um cigarro — antes de mandar um palavrão para qualquer algoritmo que tentasse copiar Bob Cuspe ou Rê Bordosa. Porque, convenhamos, nenhuma máquina consegue reproduzir a melancolia bêbada da Rê ou a cara de nojo profissional do Bob. Para isso, é preciso viver em São Paulo nos anos 80, respirar poluição, conviver com tipos urbanos esquisitos e acreditar (ou deixar de acreditar) em revoluções.
Mas Angeli não nasceu pronto. Vindo de Casa Verde, periferia de São Paulo, já foi reprovado ao tentar desenhar a Mônica e o Bidu nos estúdios do Maurício de Souza. Imaginem: a turma do Limoeiro perdeu a chance de ter um personagem de jaqueta de couro cuspindo na calçada. O primeiro trabalho dele saiu escondido na seção de cartas de leitores d’O Pasquim. De carta anônima a “rock star” dos quadrinhos: eis aí uma biografia improvável.
No caminho, teve Henfil como mentor e, depois, como desafeto. Morou em repúblicas esfumaçadas com Laerte e Glauco, entre São Paulo e Rio de Janeiro. Ganhou prêmio do Salão de Humor de Piracicaba, entrou na Folha, e lá inventou uma turma que parecia ter saído de um boteco mal iluminado: Wood & Stock, Meiaoito, Rê Bordosa, Bob Cuspe, os Skrotinhos, dentre outros. Era a emergência do underground brasileiro, que encontrou seu porta-voz de humor niilista. E, claro, o público amou. As pessoas estavam cansadas de promessas de revolução que nunca vinham da Nova República que não trouxe nada de nova, mas ainda queriam rir da própria desgraça.
Angeli soube, como poucos, traduzir essa ressaca da Nova República em quadrinhos, charges e cartuns. Se Henfil ainda acreditava em derrubar o sistema, Angeli parecia já ter desistido, preferindo rir da cara dele. E essa desistência virou estilo, marca, identidade. Chiclete com Banana, sua revista, virou espaço de culto para toda uma juventude que os pais conservadores chamavam de “antissociais”. Eram, na verdade, os filhos da contracultura, e Angeli era o cartunista que dava a eles um espelho: torto, sujo e debochado, mas verdadeiro.
Hoje, em 2025, memes circulam sem autoria, a política virou espetáculo grotesco, e a inteligência artificial tenta brincar de cartunista. Mas o fato é que seguimos precisando de figuras como Angeli. Gente capaz de colocar em desenho aquilo que não cabe em editorial, a ressaca coletiva que não vira slogan ou propaganda. Aos 69 anos, ele continua sendo prova de que o humor pode ser sujo, melancólico, sem esperança nenhuma e, mesmo assim, profundamente humano.
Talvez o maior presente que podemos dar a ele é reconhecer: ninguém, nem algoritmo, nem político, nem publicitário, consegue roubar sua autoria, sua originalidade. Rê Bordosa, Bob Cuspe e companhia seguem vivos porque carregam algo que não se programa. Estou falando do fracasso sublime e risonho da humanidade.
Parabéns, Angeli. Apesar dos problemas, nunca pareceu tão jovem.
Cristian de Paula é professor de História, mestre e doutorando em História do Brasil pela UFG.


Rogério Paz Lima
Rafaela Veronezi