Por Rogério Paz Lima (*)
Este artigo foi redigido após a medida liminar, concedida pelo juiz plantonista que mandou suspender a reabertura do comércio de Goiânia que, por sua natureza transitória, pode continuar em vigor ou ser cassada pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.
O fato em debate é que a Justiça goiana, ao suspender os efeitos do decreto de flexibilização das atividades econômicas, ao meu sentir, comete o mesmo erro que já incorrera na ocasião em que liberara as academias a funcionarem na capital impondo alguns protocolos de segurança sanitária, ou seja interferência do Poder Judiciário em atos de estrita competência do Poder Executivo.
Existe no direito, até em homenagem ao princípio da separação dos poderes defendidos por Montesquieu em sua obra “O Espírito das Leis”, uma máxima de que ao Poder Judiciário é vedado analisar o mérito administrativo. Isso significa que no controle jurisdicional somente é lícito intervir nos atos da administração quando elas estiverem eivadas de vício como ilegalidade, defeito de forma, abuso de autoridade ou teratologia.
“Em que pese a nobre preocupação do órgão ministerial com a saúde pública – que lhe cabe defender por ordem constitucional -, e sem entrar no mérito se está correta ou não a intervenção do ponto de vista fático, vejo que o Judiciário invadiu a competência municipal, assim como MP”.
Rogério Paz Lima – Advogado
O Ministério Público, a fim de justificar seu pedido, alegou que o ato de flexibilização “padece de graves vícios de forma – porquanto editado sem assento em embasamento científico e em análises sobre as informações estratégicas em saúde, encarecidamente exigidos pela norma geral que dispõe sobre o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, Lei Federal nº 13.979/2020 – e de motivo, pois o quadro epidemiológico do Município de Goiânia é de extrema gravidade: há curva ascendente de crescimento do número de casos confirmados do novo coronavírus e elevadíssima taxa de ocupação de leitos hospitalares, seja na rede pública, seja na rede privada”.
Em que pese a nobre preocupação do órgão ministerial com a saúde pública – que lhe cabe defender por ordem constitucional -, e sem entrar no mérito se está correta ou não a intervenção do ponto de vista fático, vejo que o Judiciário invadiu a competência municipal, assim como MP.
Explico!
Na recomendação conjunta nº 02/2020 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) os membros do MP devem respeitar a autonomia administrativa do gestor e restringir sua limitação fiscalizatória a análise objetiva de sua legalidade formal e material.
No que toca a legalidade formal, esta diz respeito ao instrumento utilizado pelo município para regulamentar a flexibilização das atividades econômicas. Nesse aspecto Goiânia se utilizou do decreto, cujo Supremo Tribunal Federal já considerou como instrumento legal adequado para regulamentar as medidas de isolamento social. Portanto, não visualizo vício de forma capaz de macular a medida adotada pelo Município.
A alegação de que o Decreto nº 1.187/2020 possui grave vício de forma, uma vez que os fundamentos externados na aludida Nota Técnica que acompanha do Decreto são insuscetíveis de substituir o Plano de Retomada das Atividades Econômicas elaborado em consonância com critérios epidemiológicos e com a capacidade do sistema de saúde local e aprovado pelo Centro de Operações de Emergência em Saúde Pública (COE), também entendo que deva ser afastada.
Forma é estrutura, é instrumento, é meio. Inconsistências referente a dados dizem respeito a mérito, conteúdo; e nesse aspecto vejo que ao Judiciário é vedado invadir uma competência exclusiva do executivo. Posso até entender equivocada a medida, imprópria, inoportuna, precipitada, mas não ilegal; e se não é ilegal deve ser afastado o juízo do Poder Judiciário.
Nesse mesmo diapasão não consigo visualizar legitimidade do MPGO em interferir no mérito das medidas adotadas pelo Município de Goiânia. Ao Judiciário é lícito intervir em um ato administrativo quando lhe faltar motivos, o que é diferente de motivação.
Motivo, segundo as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, é a situação de direito ou de fato, que autoriza ou exige prática do ato.
Se a regra de direito enuncia que um dado ato pode (ou deve) ser produzido quando presente determinado motivo (isto é, uma dada situação de fato), resulta óbvio ser condição da lisura da providência adotada que efetivamente tenha ocorrido ou seja existente aquela situação pressuposta na norma a ser aplicada. Se o fato presumido pela lei não existe, sequer irrompe a competência para expedir o ato, pois as competências não são conferidas para serem exercidas a esmo. Os poderes administrativos são irrogados para que, em face de determinadas situações, o agente atue com vistas ao escopo legal. Donde o motivo é a demarcação dos pressupostos fáticos cuja ocorrência faz deflagrar in concreto a competência que o agente dispõe em abstrato.
Segundo o Decreto do prefeito Iris Rezende, a necessidade de sair do isolamento social e de retomar a economia é o motivo para sua edição, pois entende que devemos arrumar um meio de saída do caos.
Motivação é outra coisa, é a justificação do ato, a exteriorização das razões que levaram a administração a flexibilizar o funcionamento das atividades econômicas. Nesse caso, é vedado ao Judiciário se imiscuir na liberdade da administração escolher qual a melhor solução. Quando a justiça goiana acolhe as argumentações do MP que a Nota Técnica, no qual se embasou a prefeitura da capital pra editar o Decreto de flexibilização, não pode sobrepor o Plano de Retomada das Atividades Econômicas elaborado em consonância com critérios epidemiológicos e com a capacidade do sistema de saúde local e aprovado pelo Centro de Operações de Emergência em Saúde Pública (COE), está ela invadindo a competência de outro poder e ao comando que estabelece que diante da falta de consenso científico em questão fundamental à efetivação de política pública, seja respeitada a autonomia administrativa do gestor, sendo vedado ao MPGO ou qualquer outro órgão modificar o mérito desta escolha.
Eu, particularmente, tenho cumprido as regras de isolamento social. Tenho procurado sair de casa apenas quando necessário, procurando ser rigoroso na execução das práticas de higienização e, independentemente, de lojas e shoppings abrirem ou não para o público, continuarei comprometido com as orientações de evitar contados e aglomerações. O que não justifica que o Judiciária ou o Ministério Público possam violar direitos de terceiros e invadir competências de outros poderes. O fato de não concordar com o mérito dos atos da Prefeitura, não os torna ilegais.
(*) Rogério Paz Lima é Advogado especialista em Direito Municipal e Eleitoral. Pós-graduado em Direito Público.
(O conteúdo da sessão Opinião não reflete necessariamente o pensamento do site Diário de Goiás e é uma contribuição ao debate de temas importantes para a sociedade)