Após o julgamento da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro, pelo Supremo Tribunal Federal, uma pá de cal foi lançada sobre um dos principais atores políticos recentes da República, que é a chamada Operação Lava-Jato. Famosa até mesmo em dramaturgias, esta operação policial ganhou rapidamente contornos políticos, inclusive retirando do xadrez eleitoral atores consolidados no cenário há décadas e inserindo tantas outras peças que não estavam no tabuleiro. Para ficar só nos “peixes grandes”, podemos nos lembrar daqueles que foram condenados, como o ex-Governador do Paraná Beto Richa (PSDB), o ex-presidente da Câmara dos deputados, Eduardo Cunha (MDB), Senador Gim Argello (PTB), o ex-Ministro José Dirceu (PT) e, em especial, o ex-presidente Lula (PT).
A Lava-Jato se destacou por um mix de fatores, tais como as chamadas “jornadas de junho de 2013”, que reproduziram um clima de tensão institucional entre população e políticos eleitos, que existia na opinião pública, mas fora externalizado nas ruas. Também um forte clima de “denuncismo” trazido pelo instituto jurídico da delação premiada. E é claro os próprios escândalos desvelados pela operação em que a várias faces da interação entre o público e o privado revelaram ainda mais o caráter pragmático e fisiologista das elites políticas brasileiras.
Sociologicamente falando, Gaetano Mosca, em “Elementi di Scienza Política” (1896), define elites políticas como uma minoria que se propõe a ser dirigente da maioria e que concentra poder em detrimento da maioria que dele é privada. O problema é que essa relação só é harmônica até o ponto em que os representados não se sentem traídos. Em termos históricos frequentemente a elite política é acusada de traição ao povo. Isso pode ser verificado em vários capítulos, pois há uma tensão inerente à relação entre elites e não elites, representantes e representados, que deriva sempre dos fatos que não se veem, mas só se ouve “falar”.
Basta lembrar, por exemplo, como os movimentos burgueses do século XVIII abriram forte contestação ao “Ancien Régime” em busca de inserção política para defender seus interesses econômicos, conseguindo apoio de várias camadas da sociedade ao contestar o absolutismo monárquico, o que viria desdobrar os eventos que culminaram na Revolução Francesa. O mesmo pode ser verificado no Brasil, no inicio da década de 1950, com o clima denuncista lançado por setores da imprensa, que ganhou força principalmente na década de 1960, com destaque para atores como o jornalista Carlos Lacerda (que lançou um jornalismo ácido e com um ar conspiracionista, que ficou conhecido como lacerdismo) e a UDN ( partido político com atuação política frequentemente acusatória dos governantes de turno, e sua atuação ficou conhecida como “udenismo”), acusando casos de corrupção e relações espúrias no interior dos governos de Getúlio Vargas, JK e João Goulart, (sob o bordão de “O Brasil está imerso em mar de lama”), ao denunciarem que aquilo que supostamente o povo não via, mas que ocorria em gabinetes às escuras. Essa atuação cria linhas políticas denuncistas e angaria, paulatinamente, o apoio de boa parcela da sociedade que colaborou com a interrupção do processo democrático, que havia iniciado em 1946.
Não estou aqui tentando comparar o lacerdismo, o udenismo ou o clima revolucionário francês aos eventos que a atuação da Lava-Jato desdobraram no Brasil. Mas sim exemplificar que a relação entre representantes e representados, com baixíssimo grau de transparência acaba por nos situar em um campo nebuloso onde não se sabe ao certo quem é quem, ou mesmo quem vigia os representantes e qual o motivo de tantos escândalos permanecerem por tanto tempo sem serem revelados à população. E até por isso, o denuncismo se mantém vivo e mede todos pela mesma régua.
Vários candidatos, inclusive o próprio Presidente da República, Jair Bolsonaro (então no PSL, hoje, sem partido) se elegeu no pleito de 2018 sob a bandeira do combate à corrupção e ao aumento da transparência. De lá pra cá, as coisas continuam nebulosas. Não existiram políticas públicas significativas que fizessem aumentar a transparência nessa relação, ampliando a margem de confiança dos representados em relação aos representantes. Ademais, o fisiologismo (apoio em troca de favores pessoais), como traço essencial da convivência entre nossas elites políticas, implode qualquer possibilidade de arrefecimento do clima de tensão.
A Lava-Jato trouxe de volta à cena política o forte ambiente de contestação às elites políticas do país e até por isso se tornou um ator político autônomo, em dado recorte de tempo. Seu fim não representa o fim da roupagem do moralismo difuso nas relações políticas imposto pelo discurso político por ela construído. Assim como o “lacerdismo” e o “udenismo” encontraram roupas novas, a menos que as “regras do jogo” impactem de forma substantiva na transparência e abrangência da prestação de contas de nossos eleitos, o sintoma da doença da representatividade, que ganhou a alcunha de “lavajatismo”, rapidamente terá novas vestes para adornar-se.
(Guilherme Carvalho é mestre em Ciência Política (UFG), Professor dos cursos de Direito e do MBA de Gestão de Políticas Públicas da UniAraguaia. Também é Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Eleitoral e Ciência Política (GEDECiP). Escreve para o Diário de Goiás sempre às quintas-feiras. As opiniões do autor deste artigo não refletem à opinião do veículo.)