Vivemos em uma era de reformismos. Reformar por reformar, por vezes é a tônica da mediana do Congresso Nacional, que padece de falta de poder de agenda pra as propostas que prometeram aos seus eleitores, que para não aparentar falta de empenho no trabalho parlamentar, empreendem propostas, que por vezes, são danosas à institucionalidade, por refletirem pouco o que de fato a sociedade precisa, ou por interferirem em outros mecanismos que estão em andamento e precisam de tempo de “maturação” para que seus efeitos sejam percebidos.
O tema eleitoral é claramente um desses casos, que toda véspera de eleições ouve-se sobre uma nova reforma eleitoral. Isso se deve ao fato de que a maior parte das pautas votadas são acordadas pelos líderes, junto aos presidentes das casas e o Presidente da República.
Não obstante a isso, a pauta da chamada “nova reforma eleitoral” veio na esteira desse processo, que em grande parte é também uma tentativa desesperada de parcela significativa de parlamentares que enxergam que com alguns pontos da última reforma eleitoral (de 2017), podem não conseguir sobreviver eleitoralmente para um novo ciclo.
Afirmo que minha posição nesta matéria específica é conservadora, portanto, se você acredita que precisamos de uma nova reforma eleitoral no Brasil, sugiro que continue lendo para compreender meus argumentos.
Em 2017 o Governo Temer empreendeu junto aos seus aliados no Congresso Nacional uma reforma que naquele momento foi até taxada de tímida, mas que na visão de vários especialistas, dentre os quais me incluo, talvez isso se deva à falta de texto. Mas o que não se observou foi a robustez dos efeitos dessa reforma.
Para ficar em dois meros exemplos, o fim das coligações proporcionais, aplacou o desvio da representatividade, no qual, por acordos locais entre os partidos (que não obedecem a uma lógica nacional), o eleitor votava no PSL e acabava puxando outro candidato do PCdoB. O fim deste sistema fez com que as legendas partidárias fossem valorizadas e criaram uma tendência de sobrevivência apenas daquelas que de fato têm votos.
Também a cláusula de barreira foi outro grande ganho, pois limitou apenas aos partidos que conseguissem atingir um número “x” de cadeiras na Câmara dos Deputados (que é progressivo a cada pleito eleitoral, por exemplo em 2018 eram pelo menos 5 cadeiras, para 2022 já serão 11 cadeiras, em 2026, 13, e vão aumentando a cada eleição) poderão ter acesso ao financiamento público de campanhas e ao fundo partidário, bem como ao tempo de tv e rádio gratuitos. Isso faz com que partidos sem voto, portanto sem representação na sociedade, comecem a ser englobados por siglas maiores (ou fusão entre partidos de tamanho similar), o que levará à diminuição progressiva de partidos, facilitando o atalho informacional que a sociedade precisa ter para compreender o que ocorre no país e formar sua opinião a partir das óticas ideológicas e programáticas que os partidos ofertam nas eleições.
O problema disso tudo é que essas regras não valeram para 2018, então os Deputados Estaduais e Federais foram eleitos pela regra anterior. No entanto, as eleições de 2020 deram um belo banho de água fria em candidatos a vereadores que calcularam errado a migração partidária, executando suas estratégias a partir da lógica anterior. Isso gerou um efeito quase que imediato no chamado “baixo clero” da Câmara dos Deputados, que dispõe de poucos recursos de poder, mas a imensa maioria dos parlamentares e uma boa parte desses parlamentares foram tradicionalmente eleitos com poucos votos e puxados por candidatos mais bem posicionados.
Logo no início de 2021 foi instalada uma comissão especial na Câmara dos Deputados, para analisar as propostas conjuntas que foram apresentadas pelos parlamentares. Dentre elas, destaco a proposta do “Distritão”, que volta à pauta da Câmara pela terceira vez. Seu efeito é o de eleger somente os parlamentares mais bem votados. Isso em tese pode parecer bom, mas é uma tremenda distorção do princípio de representatividade que poderia levar ao poder apenas pessoas ricas, celebridades ou mesmo garantir a hegemonia de um partido dentro da Câmara dos Deputados e Assembleias Legislativas, a médio prazo. É talvez a pior das propostas, que é praticada em 2% de países do mundo, com baixos índices democráticos, como a ilha de Vanuatu, a Jordânia e o Afeganistão. Felizmente a proposta foi derrotada no plenário da Câmara já no primeiro turno.
Temos também a questão da fidelidade partidária, que em suma, na nova proposta, o parlamentar e o partido podem entrar em um acordo para que o parlamentar não perca o mandato se resolver deixar a legenda. No entanto, essa talvez seja a proposta mais pró-forma, uma vez que a lógica impõe que o partido aceite não ficar com um mandato que é dele e aceitar entregar de bom grado a outro partido para o qual o parlamentar deseje migrar.
Fora isso, a data da posse foi alterada, ficando a do presidente da República e de governadores de 1º de janeiro para 5 e 6 do mesmo mês, respectivamente. A imposição de cláusula de desempenho, estendendo-a ao Senado (pois atualmente existe apenas para a Câmara), propondo que partidos que não fizerem pelo menos cinco cadeiras no Senado também percam acesso ao fundo partidário, além de tempo de TV e Rádio gratuitos. Além, é claro, do voto em dobro para “minorias representativas”, como mulheres e pretos, além do retorno às coligações proporcionais.
No entanto, destaco que o texto que foi aprovado nesta semana no plenário do Senado volta bem às avessas para aquele conjunto de parlamentares da Câmara que destaquei no início do texto, a quem me refiro como baixo clero. Manteve-se os votos dobrados para mulheres e pretos, isso faz com que, a médio prazo seja interessante para os partidos não praticarem os “laranjais”, atraindo candidatos pretos e pretas, bem como mais mulheres, uma vez que suas chances de ser eleitos dobraram, aumentando as chances dos partidos que tiverem este perfil de candidatos ter bancadas grandes, portanto mais acesso ao dinheiro, exposição midiática e mais poder dentro do Congresso Nacional.
Além disso, a fidelidade partidária também foi aprovada, bem como o novo calendário de posse, como supramencionado. A Cláusula de barreira para o Senado, é claro, foi rejeitada. Mas a cereja do bolo está na rejeição ao retorno das coligações proporcionais. Elas eram de fato o mecanismo que os Deputados que possuem poucos votos, mesmo que por vezes tenham boas habilidades políticas, mais precisavam ressuscitar, pois era ela que garantia que acordos políticos superassem a representação político-partidária na sociedade.
No fim, acredito que não devíamos ter iniciado uma nova reforma, pelos riscos da perversão dos ganhos que conseguimos com a reforma de 2017. Muito embora esta perversão não tenha se dado, graças ao plenário da Câmara dos Deputados que derrotou o Distritão e o papel revisor do Senado Federal que derrotou o retorno das coligações, o resultado que sai da reforma foi positivo, e àqueles que queriam garantir um status-quo de baixa representação da sociedade e garantia de que os acordos políticos superassem os anseios de uma maior representatividade de importantes maiorias numéricas, restará a disputa justa pelos cargos eletivos. O feitiço se virou contra o feiticeiro e a representatividade venceu.
(Por Guilherme Carvalho, mestre em Ciência Política (UFG), professor dos cursos de Direito e do MBA de Gestão de Políticas Públicas da UniAraguaia)