09 de agosto de 2024
Opinião
Publicado em • atualizado em 23/01/2023 às 09:21

A destruição do cuidado

Sede do IAD. Foto: Rafael Tavares
Sede do IAD. Foto: Rafael Tavares

A antropóloga Margaret Mead (1901-1978) ao ser questionada por um aluno qual seria a primeira evidência da formação da civilização deu uma resposta inusitada, ao contrário do que comumente se espera de que esse vestígio seria um objeto ou uma arma. O primeiro sinal da civilização para a antropóloga foi o cuidado com outro ser humano. Esse cuidado foi notado a partir de um fêmur fraturado e cicatrizado de 15.000 anos encontrado em um sítio arqueológico. Para que esse osso seja restabelecido é necessário um grande período de tempo podendo chegar a meses, dessa forma esse fóssil só teria cicatrizado por alguém ter cuidado dessa pessoa.

O entendimento de Margareth Mead é de que quando cuidamos do outro estamos nos civilizando, foi o cuidado que nos trouxe até aqui e nós seres humanos não costumamos deixar os nossos para trás. A humanidade em grande medida vem provando esse ponto, passamos por uma grande pandemia global onde várias ações colaborativas foram tomadas para a redução da transmissão do vírus, que caso não fosse contido poderia sobrecarregar os sistemas de saúde o levando ao colapso.

Em uma escala menor e local, podemos observar que movimentos de solidariedade têm aumentado. Com uma proposta empática e simpática que busca amenizar condições dos mais vulneráveis, são organizadas campanhas de doação de comida, itens de higiene pessoal, materiais escolares, agasalhos e cobertores, seja pela sociedade civil, ONGs, instituições religiosas e estados. Esses itens são encaminhados para instituições de caridade como abrigo para idosos, creches, orfanatos e também para as pessoas em situação de rua. Essa medida é saudável e necessária não só para quem recebe, mas também para aquele que doa, através dessa prática se exerce a cidadania e também interrompe o movimento de isolamento que é causado pela vida nas cidades, fazendo com que conheçamos outras realidades e nos aproximemos de outras pessoas.

A sede do Instituto dos Arquitetos do Brasil – Goiás [IAB-GO], ironicamente uma instituição ligada ao tratamento de questões urbanas e de moradia, por uma história que merece e deve ser investigada, se transformou em local recorrente de ocupação de pessoas em situação de rua. Com isso, a sede do IAB-GO tornou-se um dos pontos conhecidos por grande parte desses agrupamentos que prestam serviços voluntários e solidários. Recentemente organizaram no local, um coletivo de catadores de recicláveis, uma cooperativa. Essa cooperativa possuía regras morais explicitadas em cartazes que ficavam à frente da ocupação, como a proibição de roubos, receptação e outros crimes.  Os primeiros ocupantes tinham o intuito de manter a população habitante do local fixa, mas como pode ser percebido empiricamente e visualmente na cidade, a população de rua cresce exponencialmente e a condição de uma população fixa logo foi quebrada. Para os passantes, o lugar era visto apenas como um ponto de droga, não se tinha visão de abrigo ou outra relação empática. 

De uma forma ainda não explicada pela prefeitura, no dia 19 de janeiro de 2023, foi efetuado o processo de desocupação do edifício e logo em seguida a demolição da escada de acesso ao segundo pavimento, onde estavam organizadas os módulos de moradias separados por compensados e cobertores, onde também funcionava um chuveiro improvisado para o banho. Posteriormente foi arruinada a estrutura traseira da edificação que dava suporte a parte da cobertura, que fez desabar metade do telhado, formando um grande amontoado de metal retorcido, cimento e lama.

Por mais simbólico que a demolição de uma instituição classista ligada ao planejamento urbano devido uma ocupação de pessoas em situação de rua possa parecer. Essa destruição também demonstra o rompimento dessa argamassa civilizatória, do cuidar daqueles que não podem ser deixados para trás. Fica explicitado que aquilo que nos faz civilizados foi destruído, o Estado, uma instituição para qual transferimos o uso da força, quebra o pacto civilizatório, desrespeita as próprias leis e deixa sem alternativas pessoas que já tinham seus direitos negados e tem mais uma vez sua vida nua exposta.

NOTA DA EDIÇÃO. LEIA A NOTA DA PREFEITURA SOBRE A DESOCUPAÇÃO DO LOCAL NA ÍNTEGRA:.

– A ação de demolição, na última quarta-feira (20/01), foi realizada em obra inacabada, irregular e abandonada, embargada desde 22 de novembro de 2004 por falta de licenciamento para construção, e nunca foi objeto de regularização junto à administração municipal por parte dos responsáveis.

– Em 28 de fevereiro de 2013, foi constatado pela fiscalização municipal que o imóvel encontrava-se em estado de abandono, em condições insalubres e a gerar insegurança para moradores e transeuntes que passavam pelo local. Além disso, foram encontrados vestígios da utilização por usuários de drogas.

– Assim, teve início processo administrativo tendo em vista providências por parte dos responsáveis, o que gerou notificação e autuação por parte da Prefeitura de Goiânia, conforme preceituam os Códigos de Posturas e de Edificações do Município. Isso levou à demolição da edificação.

– Por fim, ressaltamos que, durante a operação, técnicos da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social (Sedhs) acompanharam toda a ação e ofertaram abrigo às pessoas que utilizavam o local como abrigo temporário.

Rafael Tavares

Rafael Tavares é Arquiteto e Urbanista, mestrando em Arquitetura na Universidade Federal de Goiás (UFG) pelo PPG Projeto e Cidade e um dos Idealizadores do Salve Goiânia

A opinião deste artigo não necessariamente reflete o pensamento do jornal.