“Você quer doar a sua voz?”, perguntam Marina Vaz, 31, e Thais Romanelli, 36, em frente a uma estrutura coberta por mensagens de incentivo na capital paulista.
O esforço é mínimo: basta repetir algumas frases, digitar poucas características físicas e de personalidade e deixar o contato. Em poucos minutos, mais uma identidade é adicionada ao acervo criado pela Soulvox –projeto que tem o objetivo de dar voz, literalmente, a quem perdeu a capacidade de fala.
Qualquer registro sonoro é precioso nas mãos de Marina e Thais. As mais de 700 doações coletadas em um ano se unem a materiais como uma gravação de aula em VHS e áudios enviados por Whatsapp.
Para as criadoras da Soulvox, poucos segundos de áudio são a expressão completa da identidade de alguém. Personalidade, humor, características físicas -tudo se manifesta naquelas palavras e ganha vida através da voz.
Criada em 2016, a start-up tem como principal proposta humanizar a comunicação de pessoas após complicações de saúde que comprometeram a fala, mas deixaram as funções cognitivas intactas. É o caso de alguns tipos de câncer e da ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica).
Não há uma solução que seja prática, efetiva e financeiramente acessível ao mesmo tempo. A Soulvox busca a união dessas características somadas ao resgate da identidade da fala.
Em casa
A ideia de fazer um “banco de voz” foi de Marina, que acompanhou um câncer de cabeça e pescoço que comprometeu a fala de seu pai. “Eu gravava suas palavras e bordões preferidos para que ele pudesse usar. Não queria perder aquilo porque era muito valioso para nós”, conta.
Quatro anos depois, a vida da arquiteta mudou completamente. O pai não resistiu ao câncer, e Marina se tornou mãe, o que despertou nela a vontade de encarar sua ideia como projeto. “Descobri que, se você não tiver um propósito, é muito difícil deixar seu filho em casa para trabalhar.”
Em julho de 2016, em um fim de semana voltado a empresas iniciantes na área da saúde, conheceu a outra metade da Soulvox –Thais, fisioterapeuta com 15 anos de experiência na reabilitação. Durante o evento, entraram em contato com Ana Amália Barbosa, 51, que se tornou a primeira de 20 pacientes.
Como sequela de um AVC aos 36, a artista e professora foi diagnosticada com a síndrome do encarceramento, retratada no filme “O Escafandro e a Borboleta” (2007).
Após perder os movimentos do corpo e a fala, escreveu sua tese de doutorado indicando as letras com o piscar dos olhos, continua pintando e tem um blog para contar suas experiências.
Mais de uma década depois, viu na Soulvox uma possibilidade de mais independência. As palavras ditas por ela em uma antiga gravação de aula foram recortadas manualmente e aplicadas em um programa de computador –alternativa nova, mas limitada, uma vez que se restringe às palavras da gravação.
“O que temos até agora é bem simples”, explica Thais. “O que selecionamos com o dedo, o paciente faz com os olhos, o queixo. Se ele tem pouco movimento, precisa de uma luz piscando na tela para dar o comando quando chegar na palavra que quer.”
Sintetizador
O objetivo primordial da Soulvox é o desenvolvimento de um programa inteligente que sintetize a voz a partir dos fonemas da língua portuguesa recolhidos nas doações e recortados nas gravações. A partir disso, os pacientes seriam capazes de falar qualquer frase com o sotaque, entonação e características de sua personalidade.
“Queremos dar voz com identidade, mas também queremos dar autonomia para essas pessoas, conectar o programa às redes sociais, fazer um dispositivo que, quando ouvir uma pergunta, já sugira uma série de respostas para o paciente”, conta Thais.
O software novo funcionaria com o mesmo princípio do atual: instalado no computador, conecta-se a um acionador ativado com a parte do corpo que o usuário consegue mexer. Dessa forma, consegue indicar qual grupo de palavras quer usar para a fala, e, em seguida, o que quer dizer.
Em breve, um aplicativo de doação para celulares também será lançado. “Nós cruzamos as características que influenciam na voz, como peso, altura, personalidade, e apresentamos os resultados para o paciente até conseguirmos um ‘match'”, explica Marina. “Quanto mais vozes, mais chances de encontrar um doador compatível.”
Toda a automatização, no entanto, custaria ao menos R$ 100 mil. Para arrecadar o dinheiro, a Soulvox decidiu lançar, nas próximas semanas, um “crowdfunding” (financiamento coletivo on-line). Se o objetivo for alcançado, Marina prevê que o custo de recuperação da voz fique em torno de R$ 500.
Esperança
Edineia de Paula, mãe de Romeu, 16, encara a possibilidade com alegria. Romeu perdeu a fala e os movimentos após uma queda de bicicleta em 2014 e, desde então, se comunica com movimentos da cabeça, uma prancha de figuras e um aplicativo gratuito com voz feminina.
“Como mãe, sinto uma saudade imensa de ouvir a voz dele. Sinto falta do ‘eu te amo’, do ‘bênção, mãe’, antes de ir à escola”, diz Edineia, que já escolheu uma voz doada com o filho.
Rosana de Souza, diagnosticada em 2016 com ELA e em tratamento para retardar o avanço da doença, já gravou sua voz. “Vou lutar até o fim, mas, se tiver como preservar a minha voz para usar em algum equipamento que fale por mim, ótimo.”
Para Ana Amália, que classifica a voz como a “impressão digital da alma” e vive sem voz há mais de uma década, recuperar a sua seria como “recuperar a identidade”. (Folhapress)
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