SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “A última coisa que eu queria era entrar para a indústria do entretenimento, uma ocupação instável que distribuía doses homeopáticas de desconforto e humilhação como lanches mornos em exibições de filmes”, lembra Carrie Fisher no livro “Memórias da Princesa” (ed. Bestseller).
Por uma ironia de proporções galáticas, contudo, a atriz que morreu nesta terça (27), aos 60 anos, acabou alçada ao posto de maior musa da história do universo nerd como a princesa Leia na saga “Star Wars”, de George Lucas. A informação foi confirmada pelo porta-voz da família, Simon Halls, à revista “The Hollywood Reporter”.
Fisher teve um ataque cardíaco durante um voo entre Londres e Los Angeles e foi internada em estado grave assim que o avião pousou, no último dia 23, mas não resistiu e morreu.
A atriz baixinha (tinha 1,55m de altura) de olhos castanhos, voz suave e tiradas sarcásticas soma 90 produções em sua filmografia, mas nenhuma que chegasse aos pés do impacto cultural que “Star Wars” exerceria, inclusive na vida pessoal de Carrie. “Eu gostei de ser a princesa Leia. Ou do fato de a princesa Leia ser eu”, escreve no seu livro de memórias. “Ao longo do tempo, passei a imaginar que nós duas viramos uma só.”
DEBBIE REYNOLDS E WARREN BEATTY
A vida da californiana foi um epítome de Hollywood: nascida em Beverly Hills, em 1956, Carrie envolveu-se com drogas e com homens famosos (foi casada com o músico Paul Simon e revelou um affair por Harrison Ford), e esteve sob os holofotes desde criança. Ela era filha do cantor Eddie Fisher (1928-2010) com a atriz Debbie Reynolds, 84, de “Cantando na Chuva” (1952).
A aversão que de início nutria pela indústria do entretenimento se deveu em grande parte ao escândalo que foi o término do casamento de seus pais, em 1959, quando Carrie ainda não tinha completado 3 anos: Eddie trocou Debbie pela também atriz Elizabeth Taylor. Aos olhos de Carrie, sua mãe foi afundando na depressão ao mesmo tempo em que os bons papéis em Hollywood minguavam.
Foi justamente ao lado da mãe que Carrie estreou, em 1969, fazendo uma ponta no telefilme “Debbie Reynolds and the Sound of Children”. E quando a mãe já estava pra lá de decadente, em meados dos anos 1970, a filha a acompanhava nos shows que ela fazia em clubes noturnos de Las Vegas, cantando em alguns números musicais junto do irmão mais novo, Todd Fisher.
Nessa época, Carrie se inscreveu no curso de atuação do Royal Central School of Speech and Drama, em Londres. Foi quando surgiu um teste para fazer um papel coadjuvante em “Shampoo” (1975), de Hal Ashby, que teria Warren Beatty, Goldie Hawn e Julie Christie no elenco.
No longa, Beatty faz o papel de um cabeleireiro que é amante de suas clientes, incluindo Lorna, vivida por Carrie Fisher. A atriz relataria o desconforto que era estar sob o escrutínio do ator, famoso pelos episódios de cafajestice, e que, segundo ela, não desgrudava os olhos de seus seios.
OS COQUES DA PRINCESA LEIA
No começo de 1976, surgiria o teste que mudaria a vida da atriz. Num escritório insuspeito em Los Angeles, num prédio de cor creme e aspecto desgastado, dois diretores da chamada nova geração de Hollwyood, Brian de Palma e George Lucas, procuravam jovens atrizes para protagonizarem seus respectivos filmes.
O primeiro queria uma moça para o terror “Carrie, a Estranha”, possibilidade pela qual Fisher se dizia mais atraída; o segundo queria alguém para participar de uma peculiar saga espacial que mais tarde se tornaria um fenômeno – mas para a qual, naquela época, ninguém dava qualquer trela. Era “Star Wars”.
Rodado em boa parte na Inglaterra, ao longo de 1976, o primeiro episódio filmado da saga, “Guerra nas Estrelas” (posteriormente conhecido como “Uma Nova Esperança”), narra a aventura espacial de Luke Skywalker (Mark Hammill), incumbido de resgatar a princesa Leia, capturada pelo maligno Darth Vader.
Lançado em 1977, o filme que misturava fantasia e ficção científica inaugurou a era do merchandising pesado e dos blockbusters: o termo, que significa “arrasa-quarteirão”, foi importado do léxico bélico, passando a designar filmes que provocavam filas que se arrastavam da porta dos cinemas por várias quadras.
AMASSOS COM HARRISON FORD
Carrie reserva muitas das páginas dedicadas à época das filmagens para descrever seu horror ao penteado de coques laterais da princesa, cuja elaboração a fazia acordar antes de todo mundo, falar das aulas que teve de tiro para viver a combativa princesa rebelde e, principalmente, de seu caso com o parceiro de cena, Harrison Ford.
A atriz descreve Ford como um homem de rosto sempre carrancudo, que parecia não se importar em agradar os outros e que desde o começo já exibia potencial para ser um astro do cinema.
Durante as filmagens na Inglaterra, a equipe fez uma festa-surpresa para comemorar os 32 anos de George Lucas. Carrie conta no livro que Harrison a “salvou”, feito seu personagem, Han Solo, quando um grupo de ingleses da equipe de filmagem quis se aproveitar da embriaguez da atriz para levá-la sabe-se lá para onde. Juntos, os dois atores americanos deram uma escapada de carro.
O caso continuou, secreto, se alastrando pelos fins de semana de folga durante os três meses seguintes de filmagens. Segundo a atriz, foi tudo treino para os beijos que seus personagens só trocariam no filme seguinte da saga, “O Império Contra-Ataca” (1980). Assim que a notícia do ataque cardíaco de Carrie Fisher se alastrou, o próprio Ford se manifestou, dizendo-se “chocado e triste com a notícia” sobre sua “querida amiga” ao site da revista “The Hollywood Reporter”. Ford nunca se manifestou sobre o caso que ele teria tido com a companheira de cena.
Logo depois do lançamento de “Uma Nova Esperança”, Fisher passou a namorar o músico Paul Simon, com quem se casou e permaneceu até 1983.
WOODY ALLEN
Carrie participou dos três filmes da trilogia clássica “Star Wars”, que se completou em 1983, com “O Retorno de Jedi”, filme em que ela aparece trajando o famoso biquíni metálico que acabou se tornando uma das mais famosas peças de vestuário do universo pop.
Mas seu rosto ficou tão marcado por interpretar a princesa Leia que a partir dos anos 1980, a atriz passou a estrelar apenas papéis coadjuvantes, em comédias como “Meus Vizinhos São um Terror”, “Tem um Morto ao Meu Lado”, “Um Sonho Chamado Fred” e “Loverboy”.
Fez pontas em “Austin Powers” (1997), “Pânico 3” (2000) e “O Império (do Beisterol) Contra-Ataca” (2001), além de breves aparições em séries como “Frasier” e “Smallville”. Depois da época da trilogia, fez apenas dois filmes realmente relevantes: viveu a colega de Dianne Wiest em “Hannah e suas Irmãs” (1986), de Woody Allen, e interpretou Marie, companheira de Billy Crystal em “Harry & Sally: Feitos um para o Outro” (1989).
A partir dos anos 1990, passou também a fazer “script doctoring”: lapidar roteiros alheios, como em “Máquina Mortífera 3”, “O Último Grande Herói” e “Hook – A Volta do capitão Gancho”, e até na segunda trilogia “Star Wars”, feita entre o fim dos anos 1990 e o começo dos anos 2000.
COCAÍNA E TRANSTORNO BIPOLAR
Franca e ácida, Carrie nunca escondeu que era portadora de transtorno bipolar e que usou cocaína e outros remédios para mascarar os sintomas. Diz que no set de “O Império Contra-Ataca”, boa parte da equipe estava sob os efeitos do pó, mas que seu consumo parecia ser maior do que o dos outros.
Em 1985, a atriz teve uma overdose de remédios e foi internada. A experiência rendeu o romance “Postcards from the Edge”, que ela lançou em 1987, e que virou o filme “Lembranças de Hollywood” (1990), de Mike Nichols.
Sua relação com o universo de Hollywood era tão profunda que Carrie foi chamada por David Cronenberg para viver a si mesma em “Mapas para as Estrelas” (2014), sátira mordaz ao mundo das celebridades de Los Angeles.
Ela voltou a atuar no universo “Star Wars” em 2013, convocada a reviver a princesa Leia em “O Despertar da Força” (2015) e estava escalada para os dois filmes seguintes.
Carrie Fisher deixa uma filha, a atriz Billie Lourd, de 24 anos, fruto de um relacionamento com o empresário de artistas Bryan Lourd. Deixa também seu inseparável buldogue francês Gary, que tem até perfil no Twitter -sua última postagem é uma foto em que o cão contempla uma janela: “Estarei esperando bem aqui, mamãe”.
Em seu livro de memórias, Carrie imagina o que ilustraria um obituário seu: “É difícil imaginar que não use uma foto daquela garotinha fofa de rosto redondo com um coque bobo de cada lado de sua cabecinha inexperiente.”
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