HAVANA, CUBA (FOLHAPRESS) – Míguel Díaz-Canel, 57, assume como chefe de Estado cubano nesta quinta (19) tendo como maior desafio uma economia que apresenta sinais de desgaste por um anômalo sistema de duas moedas e que está destinada a sofrer um duro impacto da crise na Venezuela, seu maior parceiro comercial até 2016.
A proposta para que o atual primeiro vice-presidente do Conselho de Estado suceda Raúl Castro no comando foi apresentada nesta quarta (18), em sessão da Assembleia Nacional (leia ao lado).
Os 605 membros da Assembleia depositaram o voto sobre a proposta logo depois, e Díaz-Canel, um engenheiro de formação que ascendeu no partido como ministro, será confirmado nesta quinta.
Para a grande maioria dos cubanos consultados pela reportagem, não são os eventuais impactos políticos da saída de Raúl que importam, mas se seu sucessor será capaz de fazer uma reforma monetária que diminua a disparidade entre as duas castas criadas pelo sistema dual: a dos que ganham em peso conversível, praticamente pareado com o dólar, e a dos que recebem em peso cubano.
O mecânico Michael Rodríguez, 38, é um dos cubanos que tem tentado fugir do sistema estatal, que paga em moeda nacional, equivalente a quatro centavos do peso conversível (CUC).
Ele passa horas sentado numa praça de Havana esperando turistas que se disponham a comprar cartões de acesso ao wifi pelo dobro do preço do vendido nas lojas para escapar das longas filas.
A cada cartão de uma hora vendido por dois CUCs, Rodríguez fica com um. Se vender 20 cartões, ele já ganhou mais do que em um mês como mecânico, cujo salário é de menos de 500 pesos cubanos, ou cerca de US$ 20.
O mesmo ocorre com médicos, que ganham cerca de 600 pesos cubanos por mês, ou US$ 24. Segundo dados oficiais, o salário médio de servidor é 740 pesos cubanos mensais, menos de US$ 30.
Um taxista que trabalha por conta própria hoje -conquista permitida por uma das reformas conduzidas no governo de Raúl- recebe isso em duas corridas de menos de 20 minutos com turistas.
São esses cubanos, que trabalham com turismo, que conseguem dinheiro para, por exemplo, ir ao exterior e trazer eletrônicos que movimentam o mercado paralelo.
“Prefiro não trabalhar para o Estado. Como vou manter três filhos com menos de 20 CUCs por mês? Vão morrer de fome”, diz Rodríguez.
O governo subsidia alguns produtos, que podem ser comprados a preços baixos, com as cadernetas de controle do Estado, semanalmente. Nesta, por exemplo, a lista incluía frango (800 g por pessoa), ovos (cinco), mortadela (220 g) e carne (450 g).
Para ir além, os cubanos fazem romarias a mercados que vendem em peso cubano, menos diversos que os que também vendem em peso conversível para turistas.
“O desafio mais imediato da reforma econômica é a reunificação monetária. Isso é essencial, pois você não consegue gerenciar o que não pode mensurar”, diz Arturo Lopez-Levy, especialista cubano na Universidade do Texas.
Para Michael Bustamante, especialista em Cuba da Universidade Internacional da Flórida, é preciso reconhecer avanços realizados por Raúl, como a permissão para a abertura de negócios privados –o chamado “cuentapropismo”, como pequenos restaurantes e aluguel de casas– e a ainda tímida abertura a investimentos externos.
“Importantes mudanças na esfera econômica tiveram também implicações políticas. Os cidadãos que conseguiram algum sucesso na expansão do setor privado, por exemplo, criaram espaço para uma maior autonomia em suas vidas”, observa.
VENEZUELA
A já iniciada abertura aos investimentos estrangeiros – mais visíveis no setor de hotelaria, com participação de redes europeias – promete ser uma tábua de salvação do regime cubano na crise da Venezuela, fonte fundamental de petróleo subsidiado à ilha.
Para especialistas, Cuba sofrerá, mas não deve passar por outro período especial como o visto após o colapso da União Soviética, no início dos anos 1990, por seus parceiros serem um pouco mais diversificados que na época.
“A economia cubana não é igual à daquela época, mas apesar de o país ter aprendido a viver com a escassez, a crise venezuelana pode ter grande efeito na segurança energética e na percepção negativa do risco de investimento”, diz Lopez-Levy.
Para ele, isso pode afetar o poder de compra de Cuba em um ambiente de segurança alimentar muito tenso, já que o país importa mais de 70% dos alimentos. “A situação hoje é estável, mas frágil.”
Pesam contra os investimentos ainda a intensa burocracia cubana, outro desafio para Díaz-Canel, e os freios ideológicos do regime, que tende a desconfiar dos impactos do capital estrangeiro sobre o sistema político.
Resta saber se o novo líder, um homem de confiança de Raúl que continuará sob sua sombra, cederá ao pragmatismo quando a crise venezuelana chegar à ilha.
ISABEL FLECK, ENVIADA ESPECIAL
Leia mais sobre: Mundo