Uma pesquisa recente do instituto Ipec mostrou que seis de cada dez jovens do País preferem não comentar nada de política nas redes sociais por causa da polarização e do radicalismo que o tema suscita. É o que pesquisadores têm chamado de “efeito Anitta”: o receio de ser alvo do mesmo tipo de “cancelamento” sofrido pela cantora pop em meados de 2020, quando participou de uma série de lives sobre política. Na ocasião, Anitta foi chamada de “ignorante” por internautas ao perguntar se ministérios faziam parte do Judiciário.
Mas, se não expressa suas opiniões políticas nas redes, onde se manifesta a parcela da população de 16 a 34 anos, que representa um terço do eleitorado? Segundo mapeamento da Fundação Tide Setubal, organização não governamental que atua com programas focados nas periferias das cidades, o contato com a política frequentemente se dá em outros espaços: na escola, nas igrejas e até nas festas.
É o que explica o cientista político Márcio Black, coordenador do Programa de Democracia e Cidadania Ativa da fundação. “Os espaços de formação política clássicos que a gente conhecia foram desmobilizados. Por exemplo: os sindicatos, o movimento estudantil, os grêmios, as juventudes dos partidos. Esses movimentos de base enfraqueceram ou perderam a importância para a juventude. Hoje, o jovem se forma politicamente na cultura periférica, na batalha de rap, na igreja e até no ‘pancadão’ (festas de funk feitas na rua). Em São Paulo, a Liga do Funk vem lançando candidatos nas últimas eleições”, disse ele.
Ambientes politizados
“A sociabilidade do jovem hoje, especialmente nas periferias, acontece neste contexto. Então, é inevitável que seja politizado de alguma forma. Assim como as rodas de samba nos anos 1970 eram ambientes politizados. Até porque são movimentos que precisam se constituir como resistência. O ‘pancadão’ é o movimento cultural jovem que sofre a maior repressão policial e social, hoje. A partir disso, eles se organizam nessa associação e entendem que, para reverter essa repressão, eles precisam de alguém que os represente na Câmara Legislativa”, afirmou Black.
Aos 18 anos, a estudante Liz Catarina Lutes Costa Cabral de Oliveira disse que seu contato com temas políticos se deu ao frequentar as aulas de um cursinho pré-vestibular gratuito ligado a um movimento social em Valparaíso (GO), no entorno de Brasília. Ela, que é negra e se identifica como feminista e antirracista, admitiu preferir não abordar esses assuntos nas redes sociais. “Fiz uma postagem uma vez dizendo que preto não é ladrão e que não merecemos ser agredidos. Uma colega que estudou comigo no ensino médio veio me dizer que eu estava ofendendo a Polícia Militar, que não era culpa da organização se um policial fazia esse tipo de coisa (agressões), que era exceção. Eu mandei um monte de reportagens dizendo que não era exceção, e ela ficou com muita raiva”, relatou Liz.
As opiniões políticas da estudante, de esquerda, resultaram ainda na exclusão dos grupos de WhatsApp da família. “Eles acham que eu vou ‘causar’ lá dentro”, afirmou Liz, que disse preferir falar “cara a cara”: “De vez em quando tenho alguns debates com pessoas que convivem comigo”.
Pedro Arthur de Souza Lima, de 15 anos, também relatou ter sido “cancelado” ao tratar de política nas redes. O termo é uma referência aos ataques sofridos por alguém ao expressar suas opiniões. No fim de novembro, o adolescente, que mora em São Paulo, foi a Brasília com o avô. No “cercadinho” do Palácio da Alvorada, o jovem questionou o presidente Jair Bolsonaro (PL) sobre gastos com o cartão corporativo. “Deixa de ser otário. Eu gasto zero com o meu cartão, Pedro”, respondeu Bolsonaro ao estudante. O momento foi registrado em vídeo.
“Quando teve esse episódio com o presidente, eu fui cancelado nas redes sociais. Na verdade, ainda estou sendo. São xingamentos, ameaças. Mas já fui cancelado pelos esquerdistas também”, disse Pedro, que defende pautas liberais. O jovem frequentou no ano passado a Academia MBL, um curso de formação para a base do Movimento Brasil Livre (MBL), grupo que defende o liberalismo econômico e que foi criado em 2014, como oposição aos governos do PT.
A exemplo de Liz e Pedro, a maioria dos jovens está interessada em temas da política, apesar de não frequentar espaços tradicionais de formação, como os partidos. A pesquisa, realizada pelo Ipec a pedido da ONG global Avaaz e da Fundação Tide Setubal, mostrou que, dentre aqueles com até 18 anos e sem título de eleitor, 82% pretendem tirar o documento para votar em outubro. A maior fatia (29%) está motivada a fazê-lo por considerar que “o momento político é preocupante”. Apenas 2% disseram que não pretendem tirar o título de eleitor “porque o meu voto não fará diferença”.
O Ipec – empresa criada por ex-funcionários do Ibope – ouviu, em setembro passado, 1.008 jovens de 16 a 34 anos. A faixa etária representa 50,7 milhões de eleitores, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
51% dos jovens não confiam em partidos
Na contramão do interesse por política, o levantamento apontou que apenas 4% dos jovens ouvidos disseram “confiar muito” nos partidos, 41% afirmaram “confiar pouco” e 51% responderam “não confiar”.
Considerada um dos espaços alternativos onde jovens falam de política, a igreja foi essencial na formação da jornalista Luciana Petersen, de 24 anos, que hoje conduz um projeto social voltado para mulheres evangélicas. Na comunidade da Igreja Batista que ela frequenta sempre houve discussões sobre o tema – como a necessidade de escolher bons representantes, por exemplo.
“Mas era num sentido bem menos partidário do que o que se tornou em 2018”, disse a jovem, que mora em São João del-Rei (MG). “Em 2018, muitas denominações adotaram o bolsonarismo como uma religião. Vi igrejas apoiando Jair Bolsonaro como se fosse Messias. Gente falando que cristão de verdade só votaria nele e coisas assim”, afirmou a jornalista, que é filha de um pastor.
Luciana disse, ainda, que hoje enfrenta menos resistência ao discutir temas como o feminismo. “Eu sou a feminista crente. Então, hoje, não brigam muito comigo. Inclusive algumas portas foram abertas, de falar em igrejas sobre isso”, afirmou a jovem
Na avaliação da coordenadora sênior de campanhas da Avaaz, Nana Queiroz, uma das consequências da “fuga” dos jovens da discussão política nas redes sociais é impedir que eles cometam erros e aproveitem o aspecto positivo do “efeito Anitta”, que é aprender “O que acontece é que esses jovens entram na arena para debater e não necessariamente sabem que, se eles usarem o termo ‘o travesti’ em vez de ‘a travesti’, por exemplo, eles vão ser ridicularizados. Há alguns anos, eu também comecei falando ‘o travesti’. E aí alguém foi lá e me avisou que não era adequado, e eu aprendi. Pedi desculpa pelo meu erro”, afirmou Nana.
Para a coordenadora da Avaaz, todo jovem deveria passar pelo que a cantora Anitta passou ao falar de política nas redes sociais. “Errar, ser corrigido e aprender. O problema não é estarmos criando um vocabulário mais inclusivo, mas, sim, como isto está sendo implementado. Com castigo, punição e medo, em vez de convidar para o debate. Estamos tirando dos jovens a possibilidade do ‘efeito Anitta’. Que é a possibilidade de fazer perguntas óbvias, de errar, de pedir desculpa, de mudar de ideia Tudo isso é saudável para o debate político”, observou Nana, que é jornalista, ativista dos direitos das mulheres e autora do livro Os Meninos São a Cura do Machismo.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo. (Por André Shalders e Thiago Faria/Estadão Conteúdo)
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