Na semana passada, a filiação do general Carlos Alberto dos Santos Cruz ao Podemos, partido do presidenciável Sérgio Moro, expôs um movimento que pode rachar o apoio ao presidente Jair Bolsonaro nas Forças Armadas. Em círculos fechados, militares reconhecidos na tropa como formuladores, responsáveis por artigos de viés conservador e despontados com Bolsonaro, se entusiasmaram com a união entre Moro e Santos Cruz. Esses oficiais se reúnem num grupo virtual batizado “3V” – acrônimo ao estilo militar para a “terceira via” eleitoral.
Os contatos do grupo são discretos. O “3V” reúne oito nomes conhecidos nas Forças Armadas, que trocam impressões por meio de mensagens no WhatsApp. Quase todos são oficiais de alta patente da reserva, mas há entre eles um coronel verde-oliva da ativa. As restrições da pandemia de covid-19 impediram muitos encontros presenciais – somente três ocorreram em apartamentos de generais no Plano Piloto, em Brasília.
Os militares acompanham os passos de Moro e acham que ele pode cristalizar apoios e se mostrar viável para derrotar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), atualmente líder em pesquisas de intenção de voto. Esse é um traço que une o grupo: o objetivo de encontrar um nome alternativo a Bolsonaro que possa impedir a volta do PT ao poder. Só não querem apoiar a extrema direita. “A terceira via é uma boa solução para o impasse que vivemos. Há um medo grande da volta do PT, da esquerda”, diz o general de Exército da reserva Paulo Chagas, decepcionado com Bolsonaro, a quem apoiou em 2018. “Não passamos de eleitores engajados, nosso papel é difundir nosso pensamento e mostrar que não existe um caminho só, que a gente pode e deve evoluir. Vejo muitos militares que concordam que Bolsonaro foi uma decepção, preferiu reimplantar o presidencialismo de coalizão. A essência política não mudou nada.”
Além de Santos Cruz e Paulo Chagas, integram o 3V o general Maynard de Santa Rosa, ex-secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência, o general Lauro Luís Pires da Silva, o coronel Walter Felix Cardoso, ambos ex-assessores da SAE. Outro rosto conhecido é o general Marco Aurélio Costa Vieira. Ex-secretário nacional do Esporte, demitido no início do governo Bolsonaro, o general Marco Aurélio é ligado ao ex-comandante-geral do Exército, general Eduardo Villas Bôas – ele dirige o instituto que leva o nome de Villas Bôas. Todos são do Exército. Pela Marinha, participa o capitão de Mar e Guerra dos Fuzileiros Navais Álvaro José Teles Pacheco, conhecido como comandante Pachequinho.
Mensageiro da paz
Santos Cruz é o rosto mais conhecido no “3V”. Na manhã da última quinta-feira, 25, data de sua filiação ao Podemos, ele expôs uma parte do que pensa e discute entre os camaradas. O discurso escrito à mão, em um bloco de papel, defendia o liberalismo econômico, o conservadorismo e a “paixão” às causas sociais. O general pregou a eliminação de “privilégios imorais”, a redução de “desigualdades vergonhosas” e o fim da reeleição, do culto à personalidade e do aparelhamento de instituições.
O general entrou no auditório de um hotel na capital federal de mãos dadas com a mulher, Dora. Vestia terno preto e gravata vermelha, com um escudo do Internacional espetado na lapela do paletó – o ex-ministro da Secretaria de Governo é gaúcho. Não sorriu nem quando incentivado pelos novos colegas de partido. Santos Cruz foi apresentado pelo senador Álvaro Dias (Podemos-PR) como um “mensageiro da paz” que já enfrentou tiroteios, referências ao currículo do general de quatro estrelas como comandante dos capacetes-azuis das Nações Unidas, no Congo e no Haiti.
Moro elogiou o currículo do general e fez um aceno à caserna. Disse que Santos Cruz não representa as Forças Armadas, mas arrasta consigo a credibilidade da carreira militar. Num sinal de trégua, o ex-juiz ponderou que a sociedade brasileira precisa superar a divisão entre civis e militares, uma herança da ditadura que incomoda os oficiais, temerosos por exemplo de que um governo de esquerda volte a fomentar investigações de crimes.
“Essa separação que não faz nenhum sentido, entre militar e civil, nós temos que superar. Somos todos brasileiros, estamos no mesmo barco. Não existe oposição, como se quis fazer em governos anteriores, colocando o militar com viés negativo, e nem no atual governo também, querendo colocar o militar como superior aos brasileiros em geral. Somos todos irmãos, somos todos iguais”, discursou Moro.
Discretamente, um grupo de amigos de Santos Cruz, parte deles da caserna, acompanhou os discursos no fundo do salão e posou depois para fotos. Na reserva, eles passariam despercebidos em trajes civis, não fossem alguns símbolos na lapela. Um dos presentes era o general de Exército da reserva Ítalo Fortes Avena, ex-conselheiro da Missão do Brasil nas Nações Unidas, em Nova York.
Amigo de Santos Cruz, o general Avena concorda que a adesão a Moro sinaliza, para a caserna, um flanco político alternativo ao Palácio do Planalto. “O meio militar é livre para escolher o caminho que quiser”, diz o general Avena. “Pela nossa formação, somos liberais, legalistas e anticomunistas.”
Santos Cruz filiou-se ao diretório do Podemos no Distrito Federal, mas a direção ainda vai decidir se o transfere ao Rio, conforme conveniências eleitorais. O partido deseja que ele seja candidato a senador, embora especule-se que possa inclusive ser candidato a vice-presidente na chapa de Moro, caso a campanha falhe em preencher esse espaço com um nome de outro partido aliado. Ao Estadão, o general disse que seu movimento é de apoio a Moro e não a busca por um cargo público. “Estou me filiando para apoiar o movimento do Moro, não para ser candidato Isso vamos ver mais à frente”, disse Santos Cruz durante a cerimônia. Ele negou que exista uma mobilização para que militares ingressem no partido. “Minha decisão é individual”, disse.
Almoço
No entanto, seu exemplo será seguido e já aproximou de Moro até de generais que preferem a discrição. Horas depois da cerimônia, Moro e Santos Cruz almoçaram com o general Otávio Santana do Rego Barros, ex-porta-voz de Bolsonaro e do Centro de Comunicação Social do Exército, também escanteado pelo governo e hoje um crítico dos desmandos bolsonaristas. Pelo menos mais um general do grupo “3V” está a caminho do Podemos, Paulo Chagas.
Outro entusiasta de Moro é o general Guilherme Theophilo, que trabalhou como secretário nacional de Segurança Pública no governo Bolsonaro, quando Moro era o ministro da Justiça e Segurança Pública. Ex-PSDB, partido pelo qual concorreu ao governo do Ceará em 2018, Theophilo está filiado ao Podemos e foi ao lançamento da pré-candidatura de Moro.
Alguns generais mais experientes ainda preferem acompanhar à distância o jogo da pré-campanha. Um deles é o ex-secretário de Assuntos Estratégicos do governo Bolsonaro, general Maynard de Santa Rosa. Ele afirma que não pretende se filiar, mas reconhece em Moro “potencial” para afetar a predileção por Bolsonaro na tropa, mas pondera que o ex-juiz da Operação Lava Jato precisa de assessoramento político.
“A decepção com JB, cujo discurso agradava aos militares, mas que não se mostrou capaz de honrá-lo, aconselha prudência e cautela”, disse Santa Rosa. “Se surgir uma terceira via viável, pode incomodar. Estou aguardando os próximos passos de Sérgio Moro, para identificar quem e quais são as suas afinidades. Ele pode crescer, se fizer as apostas certas. Ele se mostrou obstinado e competente no combate à corrupção. Infelizmente, não demonstrou habilidade política. Vai depender de boas assessorias “
Um general de Exército que passou pelo Palácio do Planalto acompanhou a ressalva de Santa Rosa. Para ele, o País precisa de um presidente com experiência política, não de “neófito” ou “salvador da pátria”.
Capitão
Desbancar a preferência por Bolsonaro no meio militar não é considerado fácil nem pelos aliados de Moro. O presidente, capitão do Exército, tem uma carreira política de três décadas como porta-voz do segmento. Já no governo, os militares tiveram seu orçamento da Defesa preservado ou reforçado, espalharam-se por cerca de 6 mil cargos na administração pública federal e chegaram a comandar 11 ministérios. Assumiram a chefia de algumas das principais estatais do País, como Petrobras, Correios e Itaipu Binacional. Até mesmo nomes da ativa ocuparam funções políticas.
O presidente levou adiante uma reforma das aposentadorias militares acompanhadas de reajustes que deram vantagens remuneratórias, algo que nenhuma outra categoria recebeu, bloqueou vetos aos aumentos mesmo durante a calamidade pública da pandemia e ainda autorizou o recebimento de vantagens acima do teto constitucional, o que fez com que ministros com vencimentos antes abatidos, agora possam acumular remunerações na faixa dos R$ 65 mil. Insatisfeitos com a reforma, parte da base da tropa quer ainda mais e espera ser inserida no reajuste que Bolsonaro prometeu aos servidores a partir da aprovação da PEC dos Precatórios.
Não há ainda pesquisas conhecidas que mostrem predileção por um ou por outro nas Forças Armadas. Oficiais de baixa patente da ativa, ouvidos reservadamente, ponderam que Bolsonaro é bem-quisto na base da tropa, ainda visto como defensor dos interesses pecuniários e sindicais. O presidente trabalha para reforçar esses laços como fez em todas as vésperas de campanha de sua carreira política e continua viajando o País para prestigiar formaturas e cerimônias militares como nenhum outro presidente desde a redemocratização.
Um oficial da Marinha, no entanto, confirma que no generalato da ativa, das três Forças, há conversas frequentes sobre a entrada de Moro na campanha e que ele pode ser uma alternativa a Bolsonaro no primeiro turno. O que mais os atrai é o histórico do ex-juiz, a imagem de “herói” prendendo a cúpula política e empresarial. Ele é visto como alguém de “coragem” que tentou levar adiante a agenda contra a impunidade, o que segundo esse oficial agrada muito ao meio militar. No segundo turno, seja Moro ou Bolsonaro, eles votam em quem for a opção para derrotar Lula.
O coronel Marcelo Pimentel, punido três vezes na reserva por declarações contra a politização no Exército, rejeita o movimento de Santos Cruz e companhia. Para ele, existe uma articulação de um “partido militar” informal influente no governo e que deseja se desassociar de Bolsonaro e manter o oficialato no poder. Ele opina que, num cenário com Bolsonaro candidato, a dupla Moro-Santos Cruz seria uma espécie de manobra para “apagar a flagrante associação dos generais do Alto Comando ao governo Bolsonaro, que foi montado por eles nos mínimos detalhes”. “Moro e Santos Cruz foram dissidências fabricadas para o desembarque, espécies de baleeiras de naufrágio”, diz Pimentel.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo. Por Felipe Frazão e Vinicius Valfré – Estadão Conteúdo
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