Em 31 meses de governo, já deu para perder a conta das estocadas que o presidente Jair Bolsonaro desferiu no ministro da Economia, Paulo Guedes, turbinando especulações intermitentes sobre a sua saída do cargo e gerando turbulências no mercado.
Apesar de intercalar os golpes com juras de amor eterno, no melhor estilo “morde e assopra”, e de dizer que tem certeza de que Guedes “vai continuar até o último dia” no governo, Bolsonaro bombardeia em público as suas propostas e defende medidas que vão na direção oposta de sua pregação liberal. O presidente também não se constrange de pedir à luz do dia a cabeça de integrantes da equipe econômica ou de gente indicada por Guedes para tocar estatais, sem preveni-lo de suas intenções
Mas, ainda que os torpedos disparados por Bolsonaro sejam exemplos emblemáticos de sua forma de governar e estejam em linha com as ideias nacional-desenvolvimentistas e corporativistas que marcaram a sua trajetória de 30 anos na política, muito do que ele fala e faz à revelia de Guedes, criando crises em série na economia, não tem o seu DNA.
Segundo apurou o Estadão, boa parte das declarações e posições de Bolsonaro contra propostas do ministro é “assoprada” a ele por um grupo de “conselheiros” de seu círculo mais próximo, que tem forte influência em suas ações. “É difícil influenciar o presidente com as teorias econômicas do Paulo Guedes, mas o contrário é absolutamente verdadeiro”, diz um ex-auxiliar do ministro.
Casamento de conveniência. Guardadas as devidas proporções, o grupo exerce um papel semelhante ao que atuou à margem do Ministério da Saúde no auge da pandemia, de acordo com investigações da CPI da Covid, defendendo o “tratamento precoce” apoiado por Bolsonaro, à base de cloroquina, em oposição às orientações de técnicos do órgão e dos ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, que comandaram a área na época.
Talvez, na economia, o grupo atue de maneira mais informal do que o “gabinete paralelo” que existiu na Saúde, segundo a CPI. Talvez, também, não tenha a mesma força para ditar os rumos da política oficial sem o aval do ministro. Embora tenha perdido espaço, Guedes ainda detém a chave do cofre e mantém, pela lealdade que demonstra ter ao presidente e pela resignação com que absorve os “tocos” que leva, certa capacidade de influência sobre as suas decisões.
É preciso levar em conta também que, hoje, o ministro tornou-se parte da engrenagem e está envolvido de corpo e alma no projeto político de Bolsonaro e em sua reeleição, abraçando medidas vistas como eleitoreiras, como o adiamento do pagamento dos precatórios, para abrir espaço no orçamento para o aumento de gastos do governo. Por acreditar que, mesmo limitado em seus movimentos, ainda pode dar a sua contribuição para transformar e impulsionar a economia, Guedes assimilou as regras do jogo e acabou deixando de lado, na visão de alguns analistas, muitas de suas propostas e convicções.
“Com o tempo, aconteceram duas coisas: por um lado, o presidente diminuiu o espaço para acontecer qualquer coisa que tivesse a ver com um programa liberal; por outro, ele (Paulo Guedes) foi ficando muito parecido com aqueles do grupo em que se inseriu”, afirmou recentemente o economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e sócio da Rio Bravo Investimentos. Franco chegou a ser indicado pelo ministro para a presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), mas foi vetado por Bolsonaro por ter participado da gestão FHC. “Ele era um casamento de conveniência e agora está integrado à família”, acrescentou.
Entourage do Planalto
Como uma espécie de “filho bastardo”, porém, que muitas vezes sofre o preconceito do núcleo familiar, Guedes continua a ser alvo do “fogo amigo”, que se expressa com frequência incômoda por meio do próprio presidente. Sua metamorfose pode até ter amenizado os disparos feitos contra ele – “já foi pior”, tem dito aos amigos que o questionam sobre o assunto. Mas não foi suficiente para neutralizar totalmente a artilharia do “gabinete paralelo” que atua na economia.
Ainda hoje, os integrantes do grupo procuram aproveitar as oportunidades que surgem para sugerir mudanças nas propostas de Guedes e tentar convencer Bolsonaro de que a condução da economia está equivocada. Mesmo que, em alguns casos, o presidente volte atrás em suas posições, o vaivém acaba criando ruídos inconvenientes e minando a credibilidade da equipe econômica.
Formado pelo entourage do Palácio do Planalto, por ministros, secretários de ministérios, militares e políticos, o grupo é mais numeroso do que se poderia imaginar. Entre os colegas de Guedes na Esplanada dos Ministérios, fazem parte da lista, de acordo com as fontes ouvidas pelo Estadão, os ministros Onyx Lorenzoni, que passou pela Casa Civil e pela Cidadania e agora responde pela pasta do Trabalho e Previdência Social, recém-desmembrada do Ministério da Economia; Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, que foi auxiliar de Guedes e depois tentou emplacar um plano de R$ 150 bilhões em investimentos públicos; Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura, que circula com Bolsonaro pelo País afora; Walter Braga Netto, da Defesa, que passou pela Casa Civil; e Gilson Machado, do Turismo, ex-presidente da Embratur (Agência Brasileira de Turismo), além do secretário da Aquicultura e Pesca, Jorge Seif Júnior, que beijou o presidente numa de suas lives.
Do grupo que despacha no Palácio do Planalto, destacam-se o general Luiz Eduardo Ramos, agora ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, que também passou pela Casa Civil e pela Secretaria de Governo; o almirante Flávio Augusto Viana Rocha, secretário Especial de Assuntos Estratégicos, que acumulou o comando da Secretaria de Comunicação (Secom) e é considerado a “sombra” de Bolsonaro; Célio Faria Júnior, chefe do gabinete pessoal e ex-chefe da Assessoria Especial da Presidência; e Pedro Marques de Souza, subchefe de Assuntos Jurídicos do governo, que ocupou de forma interina a Secretaria-Geral da Presidência, antes da posse de Ramos e após a indicação do ex-titular da pasta, Jorge Oliveira, para o Tribunal de Contas da União (TCU). Apesar de ter deixado o governo, Oliveira continua a ser uma voz ouvida por Bolsonaro nas questões econômicas e em outras áreas. Também faz parte do grupo o deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), líder do governo na Câmara.
Voo de galinha
Alguns “influenciadores” são mais ouvidos do que outros pelo presidente, mas, de um jeito ou de outro, todos dão os seus “pitacos” na economia, ainda que a maioria tenha pouca ou nenhuma familiaridade com o tema. No geral, com uma ou outra exceção que confirma a regra, os integrantes do grupo compartilham a visão desenvolvimentista e corporativista de Bolsonaro, mas costumam atuar em duas frentes distintas. Os militares movimentam-se mais para defender a preservação de benefícios e a criação de novas benesses para a corporação. Os políticos concentram-se mais na liberação de verbas e querem resultados de curto prazo na economia, mesmo que seja mais um “voo de galinha”.
Em maior ou menor grau, conforme o caso, eles cultivam um desprezo obsceno pela austeridade fiscal, defendem fartos investimentos públicos para alavancar a atividade econômica e querem “furar” o teto de gastos, que limita as despesas do governo num ano ao nível do exercício anterior corrigido pela inflação.
Eles se opõem também a uma reforma administrativa ampla, geral e irrestrita, que inclua não apenas os futuros, mas também os atuais servidores, e atuam para excluir categorias profissionais, especialmente as chamadas “forças de segurança”, das medidas de contenção salarial e corte de privilégios. Na área social, apoiam propostas como a concessão de benefícios que estão além da capacidade financeira do governo. “Eles ficam irritados com o Paulo Guedes porque não têm dinheiro para investimento”, diz um ex-integrante da equipe econômica.
Tratados de psicologia
Procurado para falar sobre a questão, Guedes não quis se manifestar. A quem lhe pergunta por que continua no cargo, ele costuma dizer que, nas grandes decisões, como a que manteve o teto dos gastos e a privatização dos Correios e da Eletrobras, Bolsonaro no fim o apoia, assim como no caso dos marcos regulatórios do saneamento e do gás. “O presidente nunca me deu sinal de desagrado e sempre me apoiou na hora decisiva”, afirma o ministro, de acordo com um ex-assistente.
Embora Guedes diga que Lorenzoni “é como se fosse parte da equipe econômica”, que Braga Netto (ex-colega de seu irmão na escola) e Gomes de Freitas são seus “amigos” e que os militares “gostam” dele, alguns de seus ex-colaboradores tiveram outra percepção durante as suas passagens pelo ministério. Em reuniões reservadas, segundo eles, o ministro admite que a ação dos “conselheiros” de Bolsonaro traz “muita chateação”. “Estão me chutando a bunda toda hora”, desabafou a certa altura, de acordo com um ex-assistente.
Talvez, um dia, alguém decifre o enigma que cerca o “casamento hétero” de Guedes e Bolsonaro. “Acho que, no futuro, vão escrever muitos tratados de psicologia e sociologia e outras ciências mais exóticas sobre o relacionamento entre Paulo Guedes e o presidente, uma das grandes complexidades dessa presidência”, diz Gustavo Franco. Por ora, o mistério deve continuar a assombrar quem acompanha de fora o dia a dia do “casal”.
‘Conselheiros’
Olhando retrospectivamente, é possível detectar as digitais do grupo de “conselheiros” do presidente Jair Bolsonaro em diversas medidas que o ministro da Economia, Paulo Guedes, teve de “agasalhar”. Uma delas foi a decisão de subsidiar o gás de cozinha e o óleo diesel, em troca do aumento dos tributos pagos pelos bancos. Outra foi o atraso no envio da reforma administrativa ao Congresso, inicialmente previsto para o fim de 2019, sob a alegação de que o “timing político” era inadequado. Depois, quando a proposta foi finalmente enviada ao Legislativo em setembro do ano passado, integrantes do grupo agiram para excluir os atuais servidores da proposta oficial.
Também é possível identificar as suas digitais no Plano Pró-Brasil, elaborado com o aval de Bolsonaro pelo ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, chamado de “fura-teto” por Guedes, por defender a flexibilização do limite de gastos. No fim, o plano não foi implementado, mas gerou muita confusão na praça e escancarou a oposição feroz enfrentada por Guedes dentro do próprio governo.
O mesmo aconteceu com as demissões dos presidentes da Petrobras, Roberto Castello Branco, e do Banco do Brasil, André Brandão. O primeiro, indicado por Guedes, apesar de a empresa ser ligada ao Ministério das Minas e Energia, por defender uma política de preços para os combustíveis com base nas variações de mercado. O segundo, diretamente ligado a Guedes, por propor o fechamento de agências deficitárias da instituição.
De certa forma, é natural que o presidente discuta os principais assuntos da República com o grupo que lhe é mais próximo. O problema é que Bolsonaro, talvez mais do que os seus antecessores no Planalto, parece ser mais suscetível a tudo o que lhe chega aos ouvidos. Além disso, nem ele nem seus interlocutores mais frequentes compartilham com Guedes uma visão liberal da economia, ainda que, em público, muitas vezes, procurem demonstrar o contrário.
É certo também que, em Brasília, não é de hoje que o ministro da Economia (ou da Fazenda, até 2018), por ter a chave do cofre, torna-se alvo do “fogo amigo”. Foi assim no governo Lula, quando a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, atracou-se com Antonio Palocci, seu colega da Fazenda, por causa de seu programa fiscal.
Foi assim, também, no governo FHC, quando o então ministro do Planejamento, José Serra, torpedeava o ministro da Fazenda, Pedro Malan, por sua política fiscal austera, e até no governo militar, quando o então ministro da Agricultura, Antônio Delfim Netto, se estranhava com o seu colega da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, por não liberar recursos para a pasta. A diferença, agora, é que o próprio Bolsonaro “põe pilha” nos ataques de seus colaboradores mais próximos à política econômica – e ainda faz isso publicamente, sem qualquer embaraço.
Diante das adversidades, porém, Guedes está mostrando que prefere contemporizar, para fazer o que for possível no governo, em vez de se manter fiel às suas ideias e convicções fora do ministério. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo (Por José Fucs/Estadão Conteúdo)
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