A Agência Pública colheu declarações de diversos servidores da Funai (Fundação Nacional do Índio) na região de Atalaia do Norte (AM) impactados e emocionados com a confirmação, anunciada pela polícia, do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips.
O crime destampou uma panela de pressão que vinha crescendo desde o assassinato impune e sem solução do colaborador da Funai Maxciel Pereira, ocorrido em 2019 numa rua da vizinha cidade de Tabatinga (AM). No começo da manhã desta sexta-feira (17), alguns servidores fizeram um protesto-relâmpago na frente do órgão em Atalaia. Ataram suas próprias mãos e pés e colocaram sacolas plásticas na cabeça.
Os servidores dizem que o atual presidente do órgão, o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier, desde que tomou posse no cargo, há três anos, nunca apareceu na região que concentra o maior número de registros de povos indígenas isolados do mundo e que detém a segunda maior terra indígena em extensão do país, com 8,5 milhões de hectares.
Ao contrário de Xavier, Bruno era muito conhecido na região, tanto por autoridades quanto por moradores comuns, comerciantes e políticos. Ele coordenou, por cerca de cinco anos, os trabalhos da Funai em Atalaia até 2016 e era amigo de praticamente todos os servidores do órgão indigenista na região, para onde voltou em 2021 a fim de auxiliar a Univaja, principal organização dos povos indígenas na região, a realizar o trabalho de organização de equipes de vigilância indígenas. Era uma forma de tentar ocupar os vazios deixados pelo governo federal na repressão aos crimes ambientais.
Falando sob a condição de não ter seus nomes publicados, os servidores desnudam as péssimas condições de trabalho e a falta de apoio institucional, material e político. Pelos relatos fica claro que o atual cenário é devastador e o futuro, sombrio.
A Funai, que chegou à região durante a ditadura militar, no começo dos anos 1970, hoje mantém uma CR (Coordenação Regional) em Atalaia do Norte, que cuida de cinco terras indígenas, e uma FPE (Frente de Proteção Etnoambiental) na Terra Indígena Vale do Javari, que por sua vez é responsável por cinco bases dentro do território, localizadas nos rios Jandiatuba, Quixito, Figueiredo, Coari e Ituí-Itaquaí, a mais antiga e maior base do gênero do país, construída ainda nos anos 1990, logo após a demarcação da terra indígena. A CR está há quase um ano sem um coordenador titular.
A FPE é administrativamente vinculada à coordenação dos índios isolados e de recente contato da direção da Funai, em Brasília. Nos últimos seis anos, a frente nunca teve um coordenador efetivo, só temporários, com exceção de um curto período de três meses.
São territórios imensos – apenas o da terra Vale do Javari é do tamanho de Portugal – e cerca de 14 mil indígenas que vivem em mais de 134 aldeias localizadas ao longo de mais de duas dezenas de calhas de rios, mas a força de trabalho da Funai é irrisória. Na CR de Atalaia há apenas 12 servidores, dos quais apenas cinco são do quadro efetivo.
Para atender 7 mil indígenas de outros quatro territórios fora do Javari, há apenas três servidores.
O auxiliar de indigenismo deveria ser o cargo mais relevante nas atividades das cinco bases que funcionam 365 dias por ano e 24 horas por dia dentro do território Javari voltadas para atividades de monitoramento, controle de embarcações e fiscalização de ilícitos ambientais. Nas cinco unidades, contudo, de um total de dez servidores apenas dois são auxiliares de indigenismo.
“Temos dois auxiliares especializados para cinco bases. Não temos sequer um servidor para cada uma das bases, para se ter ideia do nível da precariedade”, disse um servidor.
Recentemente pressionado por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), o governo federal contratou temporariamente cerca de 85 pessoas para atuar junto às bases como responsáveis por barreiras sanitárias de combate à Covid-19. Contudo, são cargos de baixa remuneração, em sua maioria ocupados por indígenas do próprio Javari. Cerca de 80% dos contratados, dizem os servidores, recebem pouco mais de um salário mínimo mensal. Foram contratações temporárias por seis meses que podem ser prorrogadas por, no máximo, dois anos.
A degradação dos cargos pode ser vista a partir da comparação histórica. Em 2010, quando a Funai realizou um concurso público, 25 auxiliares de indigenismo foram enviados para a FPE do Vale do Javari. Na época, havia apenas duas bases em funcionamento. Daqueles 25 novos servidores, restaram na região apenas dois, e agora dedicados a cinco bases.
“Esse declínio de servidores é inclusive anterior ao governo Bolsonaro, mas agora se aprofundou. Ele está sobretudo relacionado às precárias condições de trabalho dos servidores no Vale do Javari. Não temos plano de carreira, adicional de fronteira, de periculosidade, nada. Isso faz com que servidores cheguem aqui e na primeira oportunidade vão fazer outra coisa da vida. Não querem ficar aqui porque o Estado brasileiro não forneceu as mínimas condições de trabalho”, disse outro funcionário da Funai.
Em 2009, o governo federal realizou uma chamada “reestruturação” da Funai, eliminando as unidades instaladas diretamente nas aldeias e então chamadas de “postos indígenas”. Com a eliminação dos postos, os servidores passaram a atuar mais nas cidades, o que provocou, em uma reação em cadeia, a ida de mais indígenas aos centros urbanos atrás dos serviços oferecidos pela fundação.
“Hoje no Juruá para atendermos 70 aldeias temos apenas quatro pessoas. É uma queda vertiginosa de pessoal, resultado da falta de concurso, da falta de política de recursos humanos, ninguém se interessa para vir para a Amazônia, não há atrativos. Para chegar a uma aldeia, os servidores têm que viajar quatro, cinco dias numa canoa junto com galões de gasolina. Agora estamos proibidos de receber diárias se estamos dormindo dentro de uma terra indígena, como se estivéssemos num hotel do governo.”
O deslocamento dos servidores da Funai por todos esses locais, hoje visados pelas quadrilhas de assaltantes de recursos naturais e de narcotraficantes, é considerada uma atividade de risco, mas nada é feito para amenizá-lo.
“O Javari faz fronteira com o Peru, uma área de grande plantio de drogas. Nosso trabalho é passar por esses locais e não temos nenhuma agência do Estado conosco, Exército, Marinha, Polícia Federal, nada. Ficamos viajando sozinhos nesses locais. Apesar de termos poder de polícia administrativa, por exemplo, temos a capacidade de aprender uma canoa, mas não temos o poder de Polícia Judiciária. Temos o poder de apreensão, mas não o de portar arma, numa região onde todo mundo anda armado.”
O rio Curuçá, um dos principais dentro do território Javari, é invadido frequentemente por pescadores clandestinos e embarcações ligadas às atividades do narcotráfico. A base da Funai no rio fica a apenas uma hora e meia de barco de um pelotão do Exército. Mas isso não garante nada, conforme desabafam os servidores. Os pescadores ilegais estão cada vez mais empoderados e abusados.
“O pelotão do Exército várias vezes foi chamado e eles não vão até nós, alegando que não tem efetivo, que não tem combustível, que é necessária ordem de cima. Também já pedimos que o governo nos dê um efetivo qualificado. Não temos esse treinamento de fiscalizar posse de armas, de deter pessoas. Não temos uma estrutura adequada, só há pouco tempo, três meses, colocamos um sinal de internet. Fazemos várias viagens para lá e vamos com a cara e a coragem. Pois o Estado de fato nos abandona completamente aqui.”
Na Funai em Atalaia do Norte há um cargo importante que está vago desde 27 de maio de 2021. Conforme o regimento interno do órgão, o titular chefe do Segat (Serviço de Gestão Ambiental e Territorial) da CR da Funai tem por atribuição acompanhar as ações de proteção territorial e ambiental de terras indígenas e dos povos em isolamento e de recente contato. O chefe do Segat “poderia exercer o papel de articulação com Ibama, Polícia Federal”, segundo os servidores, para fazer frente “à situação gritante de invasão” da terra indígena. Contudo, a CR indicou um servidor de carreira para ocupar a chefia do Segat mas o comando do órgão rejeitou o nome por “oportunidade e conveniência”. Nenhum servidor foi colocado no lugar.
A Univaja, a principal entidade representativa de povos indígenas do Vale do Javari, tem denunciado a inação da Funai no sentido de conter as invasões. “Por que a Funai aqui não faz nada com essas informações que recebe da Univaja? É que nós estamos sozinhos no Vale do Javari. Só a Funai. E a obrigação de proteger esses territórios não é só da Funai. Crimes ambientais, quem cuida é o Ibama. Mas o Ibama é ausente do Vale. Crimes contra patrimônio da União, é a Polícia Federal. A PF está ausente do Vale. A terra está na região de fronteira, mas o Exército é ausente no Vale. O rio Javari é um rio de águas internacionais, cadê a Marinha? Não ‘fazemos nada’ nesse sentido porque a Funai está sozinha, estamos sozinhos, abandonados aqui. Por isso que não conseguimos fazer nada e temos nossas limitações.”
A Funai tem divulgado notas para defender sua atuação na região. Na mais recente, publicada em seu site na internet nesta semana, ela diz que “realiza ações permanentes e contínuas de monitoramento, fiscalização e vigilância territorial na Terra Indígena Vale do Javari em conjunto com órgãos ambientais e de segurança pública competentes”. Argumenta que “o investimento da Funai em ações de proteção a indígenas isolados e de recente contato chegou a R$ 51,4 milhões entre 2019 e 2021 em diferentes regiões do país, superando em 335% o total investido entre os anos de 2016 e 2018, cujo aporte foi de R$ 11,8 milhões. Os recursos foram empregados principalmente em ações de fiscalização territorial e combate à covid-19 em áreas habitadas por essas populações”.
Os servidores explicam que o grosso desse dinheiro foi utilizado para aquisição de cestas básicas, o que inclusive tem provocado profundas e preocupantes alterações nos hábitos alimentares dos indígenas de recente contato.
Um outro complicador para as atividades da Funai na região tem relação com as falas do presidente Jair Bolsonaro que “enfraquecem o nosso trabalho”, dizem os servidores.
“Da Presidência vem um discurso aberto, público e notório anti-demarcação de terras indígenas, falou que não iria demarcar nada e cumpriu. Também um discurso aberto notoriamente negacionista sobre a destruição da Amazônia. Por fim, um discurso de aproximação com garimpeiros, madeireiros e outras práticas que devastam a Amazônia. Esse governo tem feito esforço para regulamentar garimpo em terra indígena, arrendamento de terra indígena. Tudo isso nos fragiliza. O discurso do presidente se aproxima do dos invasores que estamos combatendo. Esses invasores muitas vezes se sentem protegidos pelo presidente da República.”
Não há uma política de substituição dos servidores, que passam às vezes anos nas mesmas atividades de campo, já normalmente cansativa e estressante na Amazônia, mesmo sob ameaças. Quando um servidor passa a ser alvo de ameaças, nada é feito para retirá-lo do perigo.
“Não há nenhuma política de segurança voltada aos servidores que aqui atuam. Vai chegar uma hora em que, para preservar minha vida, eu vou fechar meus olhos.” (Por Rubens Valente, Ciro Barros, José Medeiros, Avener Prado – Agência Pública).
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