O agora ex-presidente da organização social civil (OSC) que assumiu a Maternidade Célia Câmara, administrando repasses públicos na casa de R$ 5 milhões por mês, presidiu a Santa Casa de Misericórdia da cidade de Cerquilho – vizinha a Herculândia, no interior de São Paulo, e sede da OSC -, quando a Santa Casa teve contas rejeitadas pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP). Um mês depois, ele assinou contrato com a Prefeitura de Goiânia.
A rejeição ocorreu em 4 de julho último, por indicação do Ministério Público de Contas (MPC). O órgão de controle apontou graves falhas na execução do contrato com a Prefeitura de Cerquilho cidade onde Juliano Aparecido Fidelis – ex-presidente da Santa Casa daquele município e agora ex-presidente da OSC que expandiu para Goiânia -, continua residindo, é chefe de gabinete do prefeito e onde disputou as eleições para vereador em 2024 pelo MDB, ficando na segunda suplência.
No mês seguinte, em 18 de agosto, na condição de diretor-presidente e responsável legal pela Sociedade Beneficente São José de Herculândia (SBSJ), Juliano assinou o termo de colaboração com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Goiânia para gerir a Maternidade Célia Câmara.
Quando celebrou o contrato, ele respondia plenamente como presidente da SBSJ em Herculândia, distante 387 kms de Cerquilho, e a 403 kms de Tupã – onde foi registrado o Estatuto Social do Hospital São José de Herculândia, ligado à SBSJ, no Cartório de Registro Civil, em 15 de março de 2024 -, e distante 812 kms de Goiânia, onde Juliano presidia a gestora da Maternidade Célia Câmara.
Na tarde de sexta-feira (31) a reportagem do Diário de Goiás tentou falar com ele por telefone na Prefeitura de Cerquilho, a respeito das contas da Santa Casa e o fato de ocupar cargo público lá, ainda que a legislação possa não impedir por se tratar de outra cidade e estado. A secretária do gabinete do prefeito informou que naquele horário Juliano estava acompanhando um secretário municipal em agenda externa. Ele não retornou à mensagem deixada com a secretária, que não passou o contato pessoal de Juliano.
Em Herculândia, na sede da associação que responde pelo Hospital Beneficente São José, a pessoa que atendeu a ligação não quis confirmar se Juliano era presidente da instituição, exigindo um e-mail para responder. Ao ouvir que isso não se justificaria se ele não fosse o presidente, ela apenas desligou o telefone sem passar o endereço para o envio da mensagem.
Nesta segunda-feira (3), enviaram notas a SBSJ, a SMS e Juliano, que afirma ter se desligado da sociedade em setembro. Ele negou que tenha tido contas rejeitadas pelo TCE-SP (leia a íntegra das notas ao final).

Entretanto, o Tribunal enviou ao DG, nesta segunda, o acórdão da conselheira Cristiana de Castro Moraes, relatora do processo na Segunda Câmara do TCE-SP, onde cita nominalmente os agentes públicos da cidade, além de Juliano e um outro presidente do hospital. A conselheira reforça os apontamentos feitos pela fiscalização e pelo MPC-SP e determina à Santa Casa que devolva mais de R$ 60 mil à Prefeitura de Cerquilho.
Fiscalização relatou irregularidades
Na sua manifestação a conselheira reforça as falhas citadas pelo MPC no contrato que envolvia os dois gestores da Santa Casa de Cerquilho:
- Uso de funcionários da Santa Casa em atividades fora do objeto do convênio (caracterizando contratação indireta de pessoal sem concurso);
- Despesas incompatíveis com o ajuste (ações cíveis e trabalhistas, encargos de FGTS e protesto de título);
- Movimentações bancárias irregulares e falta de aplicação dos recursos;
- Falhas no controle de agendamentos médicos (consultas em tempos inexequíveis);
- Ausência de metas e comparativos de resultados;
- Passivo financeiro elevado e pendências tributárias;
- Ausência de pareceres dos conselhos fiscal e deliberativo;
- Participação de agente político na direção da entidade e contratação de empresa ligada a vereador.
Como consequência, o TCE-SP determinou:
- Devolução de R$ 60.760,45 pela Santa Casa aos cofres públicos;
- Reconhecimento da irregularidade da prestação de contas de 2018;
- Prazo de 30 dias após o trânsito em julgado para o Município informar as providências adotadas.
Além disso, foi citada falta de certidão de regularidade fiscal e trabalhista diante da incapacidade de comprovação cabal de viabilidade da recuperação econômico-financeira pela entidade.
Diante das constatações da fiscalização, o procurador de Contas do MPC junto ao TCE-SP, Rafael Neubern Demarchi Costa, chegou a pedir a restituição ao erário de R$ 122.590,95 – o contrato somava mais de R$ 5 milhões -, mas a conselheira indicou o valor de R$ 60 mil, além de um “saldo pendente de R$ 10.410,30 que integra a prestação de contas do exercício de 2019”.
Responsáveis não se justificaram na época
Na época, a prefeitura de Cerquilho se defendeu, mas Juliano e o outro presidente do hospital não. “Apesar de regularmente notificados (eventos 46.1 e 76.1), nenhum dos responsáveis pela entidade conveniada [Santa Casa de Cerquilho] apresentou justificativas”, destacou o procurador em seu parecer, ao qual o DG teve acesso.
Contrato emergencial de R$ 15,3 milhões com SMS
A SBSJ foi uma das três organizações credenciadas pela Prefeitura de Goiânia em agosto último para gerir as maternidades Célia Câmara, Nascer Cidadão e Dona Iris. Elas celebraram termo de colaboração emergencial durante um trimestre.
A SBSJ ficou com o maior contrato – o valor total dos três meses chega a R$ 15,3 milhões. Foi quando Juliano assinou como “representante legal” da SBSJ.
As organizações substituíram a Fundação de Apoio ao Hospital das Clínicas da UFG (Fundahc), após queda de braço com a atual gestão. A SMS alegava valores elevados de contrato e ineficiência de serviços, enquanto a Fundação apontava milhões em repasses não feitos pela gestão anterior como causa do estrangulamento, após 13 anos de serviços.
SMS diz que não há impedimentos legais
Em nota enviada nesta segunda-feira, a SMS afirma que Juliano “nunca fez parte do quadro de pessoal da maternidade Célia Câmara”. Também reforça que “não há nenhum impedimento de ordem legal para a celebração de termos de colaboração entre a organização [SBSJ] e o poder público”.
Já a SBSJ enviou nota destacando que passou a ser presidida pelo engenheiro Rubens Sinsei Tanabe. A destituição de Juliano e a substituição por Rubens ocorreram em assembleia no dia 11 de setembro conforme documentos enviados pela organização. A nota da gestora da maternidade enfatiza que não tem mais ligações com o ex-presidente e nunca teve ligação com a prefeitura de Cerquilho.
Procurado na sexta-feira e no domingo, nesta segunda-feira Juliano enviou nota também, o que fez através da SBSJ, a pedido dele, segundo a assessoria. Além das notas, o ex-presidente encaminhou cópias de certidões de nada consta contra ele e contra a Santa Casa de Cerquilho. Juliano acrescentou ainda certidão da SBSJ, a OSC que ele não preside mais.
As certidões foram todas emitidas com a data desta segunda-feira pelo sistema do TCE-SP, onde o processo já transitou em julgado (não cabe mais recursos), mas onde foram feitos vários encaminhamentos pela relatora, os quais ainda estão em andamento, conforme a assessoria do Tribunal.
Nota de Juliano Aparecido Fidelis
“O Sr. Juliano Aparecido Fidelis vem, por meio desta nota, prestar esclarecimentos sobre informações solicitadas a respeito de sua atuação profissional.
Durante o período em que representou a Santa Casa de Cerquilho, entre 2016 e 2018, não houve qualquer conta rejeitada ou apontamento que desabonasse sua gestão junto aos órgãos de controle competentes.
À frente da presidência do Hospital Beneficente São José de Herculândia, todas as ações administrativas e financeiras são conduzidas com transparência, responsabilidade e plena conformidade legal, em alinhamento às boas práticas de gestão pública.
Em relação à Sociedade Beneficente São José (SBSJ), o Sr. Juliano esclarece que não integra mais o seu Estatuto Social ou quadro diretivo, não possuindo, portanto, qualquer vínculo administrativo, jurídico ou operacional com a entidade.
Quanto à alegação de possível incompatibilidade entre o cargo de Chefe de Gabinete da Prefeitura de Cerquilho e a presidência do Hospital, o Sr. Juliano reforça que não existe qualquer impedimento legal, estatutário ou administrativo.
O Estatuto do Hospital Beneficente São José de Herculândia apenas veda que membros de sua diretoria exerçam funções vinculadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), o que não se aplica ao caso, uma vez que sua função na Prefeitura não possui relação com o SUS.
O Sr. Juliano informa ainda que disponibilizará as certidões comprobatórias oficiais, que demonstram de forma clara que não há contas rejeitadas em suas gestões e que nem ele, nem as instituições que presidiu ou preside possuem impedimentos para participar de licitações, contratos, chamamentos públicos ou celebrações de parcerias.
Reitera, por fim, seu compromisso com a ética, a transparência e a boa gestão pública, princípios que sempre orientaram sua atuação nas instituições que representou e representa.”
Nota da SMS
“A Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia (SMS) informa que o alvo do processo nunca fez parte do quadro de pessoal do Hospital e Maternidade Célia Câmara e que, desde setembro de 2025, a Sociedade Beneficente São José (SBSJ) é presidida por Rubens Tanabe.
A SMS destaca que a contratação da SBSJ seguiu todos os trâmites legais, estabelecidos pela Lei 13.019. Até o presente momento, não há nenhum impedimento de ordem legal para a celebração de termos de colaboração entre a organização e o poder público.”
Nota Oficial – Maternidade Célia Câmara
“A Maternidade Célia Câmara é uma unidade pública de saúde vinculada à Prefeitura de Goiânia e gerida, mediante contrato de gestão, pela Sociedade Beneficente São José (SBSJ), atualmente presidida pelo Sr. Rubens Sinsei Tanabe.
A maternidade atua sob supervisão direta da Secretaria Municipal de Saúde e segue rigorosos protocolos de transparência, controle e prestação de contas, conforme previsto em contrato e na legislação vigente.
Em relação aos questionamentos apresentados pela jornalista Marília Assunção, o senhor Juliano Fidelis não responde mais pela SBSJ.
A Sociedade Beneficente São José reitera que não existe qualquer relação entre a Prefeitura de Cerquilho (SP) e o trabalho atualmente desenvolvido em Goiânia (GO), no âmbito da gestão da Maternidade Célia Câmara.
Questões referentes à vida política ou a gestões anteriores do ex-presidente não têm vínculo com a administração atual da organização, nem com as atividades realizadas na maternidade.
A Maternidade Célia Câmara reafirma seu compromisso com a transparência pública, a boa gestão dos recursos e o respeito à população goianiense, mantendo-se dedicada à sua missão de oferecer acolhimento e assistência segura às mães e aos recém-nascidos.”
Leia mais sobre: Juliano Fidelis / Maternidade Célia Câmara / Ministério Público de Contas / SBSJ / SMS / TCE-SP / Cidades / Direito e Justiça / Goiânia / Saúde

