“O instrumento mais violento que o homem possui é a palavra. Veja, por exemplo, como os grandes homens da história foram também grandes oradores. A palavra tanto pode ser usada para destruir algo, como para construir.” É com esta frase que a ex-deputada estadual e escritora goiana Ana Braga resume, a um só tempo, o seu profundo fascínio e reverência pelo universo do conhecimento, da cultura e da política.
Sendo a terceira mulher a ocupar uma cadeira nesta Casa de Leis, essa goiana do Norte (hoje Estado do Tocantins), como tanto se orgulha em lembrar, é memória pulsante não apenas da história deste Parlamento, mas também da história de Goiás e do Brasil. Sendo a mais antiga deputada viva de nosso Estado (as outras duas que lhe foram contemporâneas, Berenice Artiaga e Almerinda Arantes, faleceram em 2012 e 1996, respectivamente), Ana Braga foi pioneira numa época em que participar da vida pública e política era algo, digamos, ainda pouco receptivo às mulheres (o que parece, no entanto, não ter mudado muito).
“Ganhei fama política porque, quando veio a Revolução de 1945 (fim do Estado Novo, de Getúlio Vargas), e o Brasil se redemocratizou, não havia mulheres que quisessem ir para a tribuna. A democracia estava gritando, pelejando, sabe? Mas, que mulher queria subir no palanque, naquele tempo, me diz? Aí sobrou para mim”, conta-nos, rindo.
Nesta Casa Legislativa, Ana exerceu seu mandato, pelo PSD, entre os anos de 1959 e 1963 (quarta Legislatura). Ao seu lado estava outra mulher, Almerinda Arantes (in memoriam), veterana da Legislatura anterior e que aqui permaneceu também durante o mandato seguinte. “Não era uma convivência, era uma revolução ali dentro. E naquele tempo não era fácil”, lembra Braga, ao comentar a relação estabelecida com a colega, em sua passagem pelo Parlamento Estadual.
Ana também destaca o respeito conquistado junto aos demais parlamentares (todos homens). Respeito este, no entanto, que ela fez questão de cobrar desde o início de seu mandato. “Eu não posso dizer nada dos meus colegas. Até mesmo porque ninguém ousava brigar comigo. Essa é que é a verdade. Ninguém na Assembleia! Todos me admiravam e eu a eles, todos! Porque, também, eu nunca deixei (discussão) de sábado para domingo, não”, observou, séria.
Ela cita um desentendimento que teve, certo dia, com um colega deputado, integrante da bancada de oposição ao governo, que Ana, por sua vez, defendia (ambos os governadores que atuaram durante o seu mandato, José Feliciano Ferreira e Mauro Borges, eram seus correligionários). “Ele, que já é falecido, era um homem inteligentíssimo (foge-lhe o nome). Mas me fez uma grosseria, que não lembro bem o que foi. Aí eu acabei com ele lá dentro mesmo da Assembleia. No outro dia, ele fez um discurso: “, comentou, rindo.
Antes de ser deputada estadual, Ana Braga já havia, no entanto, se destacado, juntamente com Julieta Fleury e Maria José Oliveira, por terem sido as primeiras vereadoras eleitas em Goiânia. Filiada, na época, à UDN (partido que ajudou a trazer para Goiás), a jovem Ana Braga, que tinha, naquela ocasião, apenas 24 anos, exerceu seu mandato junto à Câmara de Vereadores desta capital entre os anos de 1947 e 1951.
Com 95 anos, ela relembra agora essas histórias de uma vida marcada por muitas provações e por notáveis fatos históricos. Tendo provado o gosto amargo das ditaduras (a do Estado Novo e a Militar), Ana nos conta como aprendeu a amar e defender a nossa instável democracia. E comenta, por exemplo, como o fato de ter sido deputada contribuiu para trazer mais visibilidade e força para as mulheres goianas.
“Não houve uma cidade no Estado de Goiás, ou mesmo arraiais e fazendas, aos quais eu não fosse, em nome das mulheres, lutar pela democracia. Fiquei conhecida justamente por essa razão”, observa, com franco orgulho pelo legado impresso na história deste Parlamento.
Primeiras palavras, ilustres olhares
Ana Braga nasceu em 1923, na pequenina Peixe Canguçu, então Norte de Goiás, hoje Peixe, Estado do Tocantins. Dada as precárias condições educacionais ali existentes, ela se muda para o município de Trindade, em 1935. A finalidade: concluir seus estudos primários. “Foram quase três meses de viagem, a cavalo!”, suspira ao lembrar da extensa jornada que a trouxe para os arredores da recém-fundada capital de Goiás (Goiânia foi inaugurada em outubro de 1933). Em sua companhia vieram seus pais (Anísio Braga e Edetina Nunes), seus irmãos e o seu querido avô paterno, Joaquim Nunes Pinheiro, que foi responsável por sua alfabetização, aos 5 anos de idade, e a quem ela devota particular admiração.
Refazer, hoje, os passos dessa experiente e vivida senhora é captar a força e ousadia presentes numa mulher que, tendo nascido pobre, lá nas “brenhas” do Norte, “filha de pai carpinteiro”, numa província assombrada pelo impaludismo (malária) e carente de escolas e hospitais, viria a se tornar, poucos anos mais tarde, referência não apenas na política, mas também no Magistério, na Magistratura e, por fim, na própria literatura, destacando-se, portanto, assim, entre os mais ilustres intelectuais de sua época.
“Só havia naquele tempo no Norte de Goiás inteiro um único médico, Dr. Francisco Aires. Agora você veja a nossa situação: não havia (sequer) farmacêuticos formados. Todos aqueles que necessitassem de algum tratamento de saúde tinham que ir para Porto Nacional. Havia muitos casos de impaludismo naquela época. Disso sofriam muito as crianças lá do Norte. Elas eram quase todas amarelas, doentes. Enfim, era uma região de muito sofrimento, que acabava sendo prolongado e aumentado pelas distâncias e pelas dificuldades de comunicação. Era uma luta! Mas, eu não, fui uma menina que a doença poupou. Não houve febre que pudesse comigo. Nunca tive maleita, nem doença nenhuma”, relata.
Dos traumas das doenças (que levou-lhe, inclusive, um irmão ainda jovem) e de outras mazelas vividas, nasceu a fome pela erudição. Esta mesma que, outrora, fora negada a seus pais e, sobretudo às mulheres de sua família. “Minha mãe era inteligentíssima, mas, tendo nascido e crescido lá no Norte, coitada, morreu sem estudar nada”, lamentou, em certa altura.
O estímulo aos estudos fora, então, cultivado pelo citado avô paterno. Ana informa ser ele o único da família que, naquele tempo, tinha logrado alcançar algum prestígio material (possuía uma pequena propriedade rural) e certo nível de instrução (“escrevia muito bem e sabia muito sobre a história do Brasil, devido ao fato de viajar bastante”). E relembra a nobreza daquele homem que, embora “sem diploma algum”, comprava dicionários ilustrados (artigos considerados de certo luxo, na época) para contribuir com a formação dos netos. “Eu sempre o acompanhava em suas idas à fazenda. Chegando lá, ele me botava para estudar. Eu deitava no couro, que ele havia botado para curtir, e ele me trazia os livros para ler. Ele me inspirou muito, sabe?”, continua, agradecida.
Uma formação que, no entanto, não se encerrava apenas no mundo erudito dos livros. “Então, quando criança, no norte, eu viajava muito com o meu avô. Viajava na garupa pelos gerais, me embrenhava por tudo que era mato. Era afoita mesmo. Por isso eu tenho apreço. Porque eu cresci sendo uma menina corajosa. Gostava de conhecer as coisas que eu não conhecia. Viajava para conhecer aldeia de índio. Era destemida, e ele me instigava a ser assim. E me amava, sobretudo, porque eu era a sua única neta”, recorda com carinho.
Dessas primeiras aprendizagens e letras escritas é que nascia a grande oradora e escritora que Ana Braga, anos mais tarde, viria a ser. Outra contribuição importante para esse processo, conta-nos ela, foram as aulas de califasia, frequentadas durante o ginásio (antiga denominação para o segundo grau escolar), no Colégio Santa Clara, em Campinas. “A gente tinha uma hora, todos os sábados, para aprender a falar bem, falar de cor, falar de improviso. Inclusive, eu acho que isso podia continuar a existir nas escolas de hoje. Porque há muitas autoridades que sobem à tribuna atualmente e falam tanta besteira, que a gente às vezes nem tem vontade de ouvir”, observou, com expressão grave.
O destaque de Ana Braga fora tão proeminente nessas aulas, que, em função disso, ela acabaria sendo eleita para se tornar a oradora oficial da turma e até mesmo do colégio, sobretudo em cerimônias especiais. É, assim, que, Ana, a filha do carpinteiro, foi ganhando, pouco a pouco, já na adolescência, prestígio e notoriedade entre as mais ilustres pessoas autoridades da época.
“Eu entrei lá (no Santa Clara) aos dez anos, e, não sei porque, logo me destaquei no colégio. Talvez por eu ser a menina mais pobre que entrou lá naquela época. Aquele era então um colégio rigorosamente de ricos, digamos. A sua população estudantil, toda do interior do Estado, era, em sua maioria, de filhas de grandes fazendeiros. Inclusive, tinha também gente de fora de Goiás, de outros Estados como São Paulo, por exemplo. Eram cento e tantas internas e não sei quantas externas e semi-internas (que passavam o dia na escola e iam para casa à tarde). Eu era do grupo das externas, porque meu pai, carpinteiro, não tinha condições de pagar o internato (risos)”, conta-nos ela.
E relembra também, com orgulho, a dedicação e as dificuldades enfrentadas, diariamente, para concluir os estudos. “Eu me esforçava tanto. Levantava de madrugada, tomava meu cafezinho só com pão e manteiguinha pouquinha e lá ia eu para o colégio, com os livros todos debaixo do braço. Até que, um dia, meu pai arranjou uma malinha de couro e eu passei a usá-la. Era bem mais de meia légua de caminhada, eu acho (mais de 2 km, aproximadamente). Sabia que era longe, mas eu ia. Chegava lá, era rigorosíssimo: fila para entrar (e tudo o mais). Era um verdadeiro regime militar (risos). Aos sábados, era feita uma vistoria: na cabeça, para ver se tinha piolho; examinavam tamanho de unha. Era um colégio rigoroso sobretudo. Inclusive na conversação”, observa.
Dentre aquelas ilustres figuras a quem Ana Braga despertou, então, a atenção estavam nomes como o do ex-senador Alfredo Nasser, e de Floranci Aires, filha do notável professor Zoroastro Artiaga.
“Ela, Dona Floranci, havia me descoberto numa festa do colégio onde eu havia feito discurso, e fez questão de que eu fosse visitá-la na casa dela. E tinha que ser todos os dias, porque quando eu não ia, ela vinha atrás para saber o porquê (risos). Então ela, que era uma professora renomada, me adotou intelectualmente, digamos. Ela e Dr. Zoroastro. E assim eu fui adquirindo interesse pela intelectualidade. Escrevia muito discursinho, carta e tudo. E comecei aí, sendo oradora da minha turma, discurso que eu guardo até hoje. De tão tola, eu escrevia em letra verde, que era para dar esperança (risos)”, comenta.
Uma conquista para gerações
Ana Braga era ainda uma criança (dez anos incompletos) quando o voto feminino foi liberado no Brasil (1932). Mal podia imaginar, no entanto, que, quase 15 anos mais tarde, seria ela a se lançar nas aventuras e desafios da vida política. Feito este que marcaria, portanto, para sempre sua história e de tantas outras mulheres que passaram, a partir dali, a terem o direito de participar ativamente da vida política do país, não apenas como eleitoras, mas também como candidatas a cargos eletivos.
Sempre atenta às transformações em curso, Ana comenta, então, como o advento do sufrágio feminino brasileiro reverberou na sociedade de sua meninice. Evento que era ainda um tema quente quando ela deixou sua terra natal. “Essa foi uma conquista que veio de gerações anteriores. Nada como o tempo que evolui! Nessa época a mulher já queria voar um pouco”, diz, ao lembrar peças sobre o tema encenadas pelo Grêmio Teatral de Padre Pelágio, na Matriz de Trindade, durantes os anos de 1930. “Otavinho Arantes (um expoente do teatro goiano) era mocinho da minha idade”, diz.
Ela recorda também o quanto a notícia impactou a sociedade de seu tempo. “Muitos maridos não queriam que suas mulheres fossem eleitoras e, por isso, muitas delas acabaram não votando naqueles primeiros períodos. Lá em casa foi, no entanto, um pouco diferente, porque minha mãe era uma mulher evoluída e tinha em meu pai um grande amigo e companheiro. O problema é que ela não tinha curso nenhum, o que a impedia de votar. Mas, não fosse isso, ela tinha liberdade para fazer o que quisesse, inclusive ser eleitora”, comentou. Importante lembrar, que o voto para analfabetos (sufrágio universal brasileiro), só foi alcançado com a promulgação da atual Constituição, em 1988.
Porém, a experiência vivenciada pela mãe de Ana Braga parecia ser uma excepcionalidade aos padrões culturais, morais e à mentalidade até então vigentes. “A coisa não era fácil, não. Porque o homem era mais machista do que hoje e queria que a mulher fosse subjugada a ele. Esse era o pensamento da época. E até hoje ainda há homens que pensam assim. Por isso há tanto feminicídio e outras violências contra as mulheres. Porque a mulher ainda não conseguiu a liberdade que precisa”, observa.
Para Ana, essa é uma questão que poderia, no entanto, ser facilmente contornada caso houvesse, aqui, o que ela chama de “educação familiar”: “com isso, eu acredito, que as famílias seriam mais tranquilas”. E defende também, nas escolas, o ensino de matérias como sociologia, a qual considera ser “um estudo mais evoluído”, deixando aí uma dica para a nossa controversa Reforma do Ensino Médio, que deixou de exigir a obrigatoriedade dessas disciplinas no currículo básico.
Uma jovem bem ousada
A vida continuava não sendo fácil para Ana, mesmo após concluir seus estudos como normalista, em 1941. Com o espectro da pobreza ainda a espreitar-lhe pela porta, ela decide, assim, dar com as pernas no Palácio do então Interventor do Estado, Pedro Ludovico Teixeira, a quem já conhecia desde as célebres festas do Colégio Santa Clara. “Dessa entrevista é que eu gosto”, diz ela, à nossa equipe, com empolgação, ao que achamos muita graça. E passa a repetir o diálogo travado na ocasião.
Ela começa comentando o espanto do interventor, ao ver-lhe entrar em seu gabinete. “Uai, menina, você já veio pedir emprego?”, reproduz Ana a fala de Pedro Ludovico, entre gargalhadas. Ao que a jovem responde: “Exatamente. O senhor adivinhou. Foi isso que eu vim fazer, e não quero sair daqui com um não como resposta, porque eu sou pobre e preciso trabalhar”.
Deste ato de ousadia e coragem, Ana conseguiria, aos 19 anos, seu primeiro trabalho como funcionária pública do Estado. Isso se deu, segundo ela, coincidentemente, no dia 1º de maio de 1942. O cargo conquistado foi o de subchefe da Seção de Redação Oficial da Secretaria da Fazenda. “E eu não me incomodei (em ser chefe), porque os que estavam lá não sabiam mais do que eu mesmo (risos)”, arremata, sem falsa modéstia.
O caráter forte da jovem Ana Braga ficaria marcado ainda em outro episódio, que ela relembra com dignidade. Trata-se de um desentendimento que teve com seu chefe superior, Nicanor Albernaz (pai de Nion Albernaz, ex-prefeito de Goiânia e deputado federal Constituinte, por Goiás). “Eu era então encarregada de redigir os ofícios, que passam todos pela revisão dele. Um dia ele riscou lá algo que eu tinha escrito. E eu fui saber o por quê. E perguntei (ofendida): . Ele respondeu (aparentemente ríspido): . E eu então respondi: , defendeu Ana Braga.
Ela então refez o documento exatamente como estava no original. E o chefe assinou. “E assim acabou-se a inimizade”, finalizou, honrada.
Um negócio nobre, mas arriscado
Ano de 1945. O Estado Novo anunciava seu fim, após quase dez anos de vigência no país. O Brasil começa a já respirar o frescor da redemocratização. As atividades políticas para a reconstrução dos parlamentos, fechados desde a ascensão da chamada ditadura de Getúlio Vargas, em 1937, recobravam aí seu mais intenso vigor.
Foi nessa época que Ana Braga recebeu o convite para ajudar na fundação da UDN em Goiás, sigla que reúne expoentes opositores das políticas getulistas, ditas populistas, em todo o território nacional. Ela participa ativamente da constituição do Comitê Feminino do partido.
“Junto a mim, estavam, entre tantas outras, mulheres como uma irmã de dona Gercina (primeira-dama do Estado, esposa de Pedro Ludovico, exímio apoiador e amigo pessoal de Vargas). Muita gente foi aparecendo depois, sobretudo aquelas que estavam magoadas com a ditadura. E quem foi a oradora, então? Ana Braga. Porque ninguém queria encarar essa função. É que, naquele tempo, ser orador de um partido político não era coisa assim muito fácil. Porque era um xingatório vivo. Qualquer um subia na tribuna. Uns tinham educação, outros não. Era uma violência. Tanto que morreu muita gente. Prova disso foi terem matado Getulino, anos mais tarde. Então, corria sangue mesmo”, ilustrou.
As conturbações do momento causavam certo pânico em Ana e mais ainda em sua família, que temia que ela também acabasse sendo, por fim, uma de suas vítimas. “Um dia minha mãe chegou a dizer: . E eu disse isso para o povo do diretório (da UDN Goiás), mas eles foram lá em casa conversar com meu pai e deram garantia a ele que nada de ruim aconteceria comigo. Em função disso, eu vivia cercada de gente o tempo todo, para me proteger”, relembra.
É assim que Ana se elege, em 1946, dentre as primeiras vereadoras por Goiânia, exercendo, então, seu mandato durante a primeira legislatura da Câmara Municipal desta capital.
Após isso, como seria natural pensar, Ana Braga começa a sonhar com uma vaga no Parlamento Goiano. Mas o desfecho trágico da campanha de 1950, envolvendo o assassinato de Getulino, pusera freio em seus planos, quando esta teve que ceder lugar à Berenice Artiaga, esposa do candidato morto.
“Quando assassinaram Getulino Artiaga, o Dr. Pedro Ludovico (que havia se desincompatibilizado do cargo de senador para ser candidato a governador pelo PSD, em chapa com o PTB, de seu parceiro Getúlio Vargas), me chamou e me pediu para renunciar. Eu era candidata a deputada, nesse tempo. . Isso foi uma grandiosidade do espírito de Pedro Ludovico, não foi? Então eu renunciei e ela foi eleita”, informou.
Ana comenta ainda como o clima de insegurança, na época, era algo comum a todo o Estado. “Naquele dia em que Getulino foi assassinado, eu fui fazer um comício em Buriti Alegre. Na hora que eu subi no palanque, o meu companheiro, na ocasião, que era um grande orador, falou assim: . E eu respondi: . Daí subi no palanque, falei e fui aplaudida. Era desse jeito”, alerta.
Nos anos seguintes, Ana continuou atuando ativamente na política, ainda na expectativa de se eleger deputada estadual. “Muita gente achava, inclusive, que eu já devia ser candidata a deputada federal. E olha que eu ia (risos). Mas aí é onde eu vi a ingratidão humana, coisa mais dolorosa que tem no mundo. Ninguém nem lembrou de mim para isso não, no final. Acabou a política e eu continuei sendo professora”, ressente-se ela, em suposta referência ao pleito de 1954, quando seriam eleitos os membros para a terceira legislatura da Alego. Dentre eles estaria, novamente, Berenice Artiaga.
Ana passaria, então, os próximos anos absorvida pela vida familiar (ela casara-se, em primeiras núpcias, em 1951, com seu primo, Luiz de Queiroz) e pelas funções do magistério. Esta última atividade, sua verdadeira paixão, Braga já vinha exercendo, com maestria, desde 1942. Isto porque, após a breve passagem citada pelo departamento de redação do Palácio das Esmeraldas, Pedro Ludovico a designaria professora da Escola Isolada de Paraúna. Dali ela passaria por muitas outras experiências na área, até chegar ao Lyceu de Goiânia, em 1951, por aprovação em concurso público.
Mas — como sempre existe um mas —, nas vésperas do pleito seguinte, os ofícios da política voltaram a bater em sua porta. “Aí nessa época em que lecionava no Lyceu, o então presidente da UDN foi novamente lá em casa com a turma toda. Alfredo Nasser e todo mundo. E vieram me convidar para voltar a atuar junto ao partido. Mas isso tudo porque eu eu havia sido oradora antes”, disse.
Porém, seu notável inconformismo com a postura, segundo ela, elitista, de alguns membros do partido, teria possivelmente conduzido sua candidatura junto ao PSD, sigla que seria, então, a principal oponente nas urnas da legenda pela qual ingressou em sua carreira política.
“A UDN era um partido de gente ilustre, estudiosa, meio elitista. Hoje eu não sei mais porque estou há tanto tempo afastada da política (o partido foi extinto em 1965). Os outros eram uma mistura. Todo mundo servia. Por isso, tinham a globalização humana, que a UDN nunca teve. E, em política, quem quer ganhar, tem que botar a chinelinha no pé e andar na lama. Tem que ser popular. Conhecer o pobre, o rico, o bonito, o feio. Mas, não, a UDN só tinha gente metida”, avaliou.
E, para selar tal veredito, citou um episódio ocorrido na época, que parece ter lhe tirado do sério. “Para você ter uma ideia, não sei se estou falando demais. Mas vou contar uma coisa. Um dia nós fomos fazer um comício em Guapó, que hoje é uma cidade. Mas, naquele tempo, era um arraialzinho atrasado. A mulher do presidente da UDN de Goiás, que já morreu também e eu não vou citar o nome, disse que ia botar luva. Eu disse a ela: “, comentou, inconformada.
E assim, Ana Braga se elegeria, finalmente, deputada, pelo PSD, no ano de 1958.
Ela lembra, inclusive, como as ameaças, que a perseguiam durante as campanhas, também perduraram durante o seu mandato. “Lá (no antigo prédio da Alego, que ficava na Avenida Goiás) era onde queriam me matar. Daí juntou gente que veio, não sei dizer nem de onde, para me defender. Inclusive, eu via de lá da tribuna, cabo de revólver na cintura de tudo o que era homem. , diziam (pelos cantos). E eu fui à tribuna assim mesmo. Eu me lembro como se fosse hoje quando comecei a falar. “, disse ela, destemida, na tensa ocasião.
Durante seu mandato, ela afirma ter apresentado muitos projetos, cuja lista diz ainda manter guardada. Dentre os mais memoráveis, ela destaca um que impunha restrições ao livre funcionamento de bordéis.
“Esse projeto deu muito o que falar, por isso eu sempre me lembro dele. Porque os bordéis, aqui em Goiânia, ficavam de porta aberta, em qualquer canto. Uma imoralidade! E eu acabei com isso. Precisou de uma lei. Com ela, as mulheres passaram a ter suas casas de promiscuidade em lugares reservados, não no centro da cidade e muito menos próximo do Lyceu, onde havia muitos estudantes menores de idade”, comenta, com riso meio desajeitado.
Informações coletadas junto ao site da Câmara Municipal de Goiânia, por exemplo, citam ser, da autoria da então vereadora Ana Braga, “importantes projetos para a Capital, como a construção do primeiro necrotério, do albergue municipal, da usina de luz para o distrito de Grimpas (atual Hidrolândia) e da edificação da Estação Rodoviária de Goiânia, além do pedido de verbas para o Teatro Otavinho Arantes (Teatro Inacabado), para os estudantes de artes plásticas e música, as bibliotecas e outros benefícios para a área cultural.
Um dos maiores desafios de seu mandato como vereadora foi uma campanha em defesa dos filhos das vítimas da hanseníase, conseguindo atrair a atenção da sociedade e da imprensa, que deu total apoio à causa.
Na Alego, registros específicos sobre sua atuação enquanto parlamentar estão sendo agora levantados e deverão ser reunidos posteriormente em página oficial do projeto (especificado mais adiante).
Uma mulher em muitas
“Diante de sua multifária atuação nos mais variados setores da atividade humana e social, vislumbra-se nela não apenas uma mulher, mas uma multidão agindo e interagindo sob o seu nome, como zelosa mãe de família, educadora, jurista, administradora, política, literata”.
A frase, emprestada do advogado e professor Licínio Barbosa, é aqui reproduzida na tentativa de se tentar resumir a trajetória de uma mulher, cujos tantos feitos jamais se esgotariam nessas linhas. Em nossa entrevista, que levou mais de uma hora, muitos outros importantes assuntos foram ainda abordados, como sua contribuição na transferência da Capital ?Federal para Brasília, em 1960; seu protagonismo à frente da fundação e condução da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás (Aflag); sua passagem pela magistratura e suas várias outras formações, dentre as quais ela fez questão de incluir também o curso de Enfermeira de Guerra, surgido em decorrência da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial.
Formada em História, Filosofia, Geografia e Direito, Ana é também autora dos seguintes livros: “A Comunicação no Médio Norte Goiano”, 1973; “Nelly:a Escritora Amiga”, 1983; “Nossa Senhora da Natividade, Padroeira do Tocantins” e “Um Nome de Mulher na História de Goiânia”, 1999; “A Força do Regionalismo na Obra de Juarez Moreira Filho”, ensaio, 2001; “Retalhos” e “Discurso de Posse”, 2006.
Foi igualmente professora por mais 25 anos e Diretora do Ensino Básico na Secretaria da Educação, dentre outros vários cargos públicos por ela ocupados. Além de tudo é mãe de sete filhos e foi primeira-dama nos municípios de Tocantinópolis e Porangatu. Em suma, “uma multidão”, numa única mulher.
Mas, diante de tudo isso, a lembrança que Ana talvez guarde com o mais profundo carinho e com aguda nitidez é a do avô paterno. Ele, que, quando ela ainda era criança, ia para São Paulo vivenciar a efervescência cultural daquela que já se destacava como uma grande metrópole brasileira, para que, ao regressar, pudesse contar, a Ana e seus irmãos, as histórias acontecidas por lá.
Histórias que lhe eram inimagináveis, como a chegada de três aviadores ao Brasil. Isto porque os anos em que Ana Braga era criança e exercia seus estudos primários, intervalo entre as duas grandes Guerras Mundiais, são reconhecidos como o período áureo da aviação mundial, tendo episódios célebres também no cenário nacional.
“Ah não, vovô! Isso não acontecia, não. Eu nunca vou ver isso”, dizia Ana.
Ao que o avô respondia: “Ah! Minha neta, você vai”.
E com essas memórias, que vem e vão, Ana, com sorriso na fala, como se estivesse, de fato, vivenciando aquele momento novamente, encerra a nossa conversa.
Em decorrência de sua avançada idade e das memórias que, por vezes, se embaralham, esse texto se constitui numa livre reconstrução da história de Ana Braga, feita à luz da entrevista citada e de outras fontes de referência a ela relacionadas.
Mulheres no Legislativo
A entrevista de Ana Braga foi concedida à Agência Assembleia de Notícias e à TV Alego, no dia 2 de abril de 2019, e compõe a série “Mulheres no Legislativo”, que foi criada para homenagear as célebres trajetórias de todas as mulheres que cumpriram mandatos nesta Casa de Leis. Lançada neste 12 de abril, o programa reflete nova produção da Assembleia Legislativa de Goiás (Alego). Além dos dois setores citados, a iniciativa conta também com a parceria das Seções de Assessoramento Temático e de Publicidade, Imagem e Identidade Corporativa deste Poder. Ação que reforça, portanto, o caráter integrado de todo o projeto, uma marca forte nos trabalhos da Alego.
A partir dessas entrevistas, o projeto tentará reconstruir, portanto, o legado feminino deixado na história do Parlamento Goiano. Um legado que tem início em 1951, quando Berenice Artiaga (in memoriam), após eleita no pleito do ano anterior, ocupa uma cadeira no antigo Plenário da Alego. Tal marco seria responsável por coroar, agora também em Goiás, o direito conquistado por todas as mulheres brasileiras quase duas décadas antes. Trata-se do voto feminino, que foi instituído durante o governo do então presidente Getúlio Vargas, pelo Decreto 21.076, de 24 de fevereiro 1932.
Dona Berenice, como ficou popularmente conhecida, exerceu seus mandatos durante as segunda (1951-1955) e terceira (1955-1959) Legislaturas da Alego. Seu pioneirismo, embora nascido de uma fatalidade (o assassinado do marido, Getulino Artiaga, em plena campanha à reeleição para deputado estadual), acabaria por abrir espaços para que outras mulheres viessem a se eleger parlamentares, em Goiás, nos anos seguintes.
Importante notar que, passadas quase sete décadas do referido pleito, apenas outras 30 mulheres lograram alcançar, na condição de deputadas eleitas, vez e voz na história da Alego. Sendo três delas já falecidas (além das duas já citadas, inclui-se também aqui, in memoriam, Conceição Gayer), nesta série o leitor poderá conhecer um pouco mais sobre a história de vida e luta das demais 28 deputadas e ex-deputadas que passaram, até então, por este Parlamento.
O cronograma de publicações se estenderá ao longo de todo o ano. Com isto, visa-se reafirmar, também agora (há pouco mais de um mês das comemorações e manifestações que marcaram o Dia Internacional da Mulher, no último 8 de março) que a luta por mais visibilidade, maior representatividade e igualdade de condições para a mulher goiana é uma pauta permanente. Vale refletir, desde já, o fato de que, à semelhança da época de Ana Braga e das demais pioneiras que lhe foram contemporâneas, apenas duas cadeiras, das atuais 41 existentes neste Parlamento, estejam sendo atualmente ocupadas por deputadas (Delegada Adriana Accorsi/PT e Lêda Borges/PSDB).
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