23 de dezembro de 2024
Tecnologia

Especialista em inteligência artificial diz que tecnologia serve ‘apenas’ para auxiliar artistas

Foto: Ilustração
Foto: Ilustração

Há pouco mais de um mês, o especialista em inteligência artificial para criação musical François Pachet, 53, viu seu nome circular pelo noticiário ao receber uma oferta de emprego do Spotify, serviço digital de música sob demanda.

Para a mídia especializada, o francês seria a cabeça por trás de experimentos como faixas para adormecer ouvintes ou que se transformassem conforme os períodos do dia.

“Certamente há novas tecnologias muito interessantes, mas as pessoas fantasiam achando que é o fim da humanidade”, disse Pachet à reportagem. Segundo ele, sua pesquisa visa impulsionar a criatividade de artistas, e não gerar músicas automatizadas.

O francês passou duas décadas na Sony, onde coordenou o projeto Flow Machines. O sistema permite, por exemplo, a criação ou transposição de músicas emulando artistas ou gêneros. Ele esteve no Recife para lançar a opção do estilo brasileiro, feita em parceria com músicos e produtores do Porto Digital.

Pachet está prestes a soltar seu primeiro álbum de composições criadas com recursos de inteligência artificial.

Pergunta – Que tipo de ferramentas digitais o sr. projeta?

François Pachet – Ainda é necessária muita pesquisa. Há um paradoxo. Ao mesmo tempo em que a inteligência artificial para a criação de música é nova e empolgante e, talvez, em certo sentido, revolucionária, não há nada realmente novo.

Nos anos 1980, houve duas revoluções na área: o avanço dos sintetizadores digitais, e outra, ainda mais importante, dos samplers digitais [softwares que armazenam áudios digitais de instrumentos].

Você poderia comprar um sintetizador, pressionar uma tecla e ter o som perfeito de piano, violão ou orquestra.

– O temor atual é uma repetição?

Diziam que seria o fim da música, que máquinas substituiriam músicos. Aconteceu exatamente o oposto. Sou músico, toco guitarra o dia inteiro, sei o que é música. A única questão é se poderemos criar música um pouco diferente e audaciosa. Quero ver a reação do público. Ele a acha interessante ou boa? É a pergunta mais importante e complexa.

– É possível criar hoje uma máquina automatizada de música?

Não e nem queremos. Isso vem sendo feita há muito tempo, mas não é interessante, ninguém liga para esse som. As pessoas querem fazer música que seja atraente, que as outras ouçam e fiquem viciadas, que não saia da cabeça.

Fazer isso é muito difícil até para humanos. Talvez nunca cheguemos lá. Não sabemos se poderemos construir um sistema com alguma consciência. Posso citar um pesquisador que diz que deveríamos nos preocupar antes com a superpopulação de Marte do que com uma guerra da inteligência artificial contra humanos.

– Especulou-se que sua ida ao Spotify visava a criação de músicas elaboradas sob medida para playlists.

Não quero falar sobre isso. O ponto principal é dar às pessoas uma ideia precisa do que se trata a inteligência artificial.

Posso pegar uma peça de Bach e colocar no estilo de reggae. Esse processo ela pode fazer, mas não vai decidir que arquivo cai bem com o outro.

É claro que a IA poderia escolher os arquivos aleatoriamente, mas se você o faz assim não há chance de que chegará a algo interessante, a probabilidade é ínfima. Não há hoje nenhuma ideia da receita para o que é bom. Talvez não haja, no sentido de que uma boa música é um objeto social.

Não há nada que seja intrinsecamente bom. É bom porque a sociedade o considera assim por algum motivo estranho que não conhecemos. Isso tange um outro assunto que comentado há anos, que é a ciência do hit, o que faz uma música se tornar um hit. É como astrologia, uma pseudo-ciência.

– No que se baseiam então as pessoas que dizem ser capazes de prever um fenômeno?

A gente tem hits o tempo todo, que acontece é que, de repente, um cara vem com uma música completamente diferente e faz um sucesso.

Lembro-me de quando Dire Straits surgiu com “Sultans of Swing”. Era muito estranho e parecia impossível porque a música com vários minutos de duração. Foi um grande sucesso. Depois, é claro que muitos tentam copiar esse tipo de coisa, e, entre as cópias, algumas serão sucesso devido ao efeito da semelhança.

Assim, você pode prever as imitações que terão alguma chance de ser populares, mas não o verdadeiro hit, porque isso depende da reação das pessoas que o escutarão.

– Chegar a uma fórmula de hit nunca foi um objetivo a ser atingido com suas pesquisas realizadas dentro da Sony?

O objetivo não era criar um hit, mas ferramentas para ajudar pessoas a criarem músicas interessantes. O hit, por definição, é raro. Ter uma máquina que gere quantos hits você quiser é uma contradição nos termos.

– Quais foram os resultados mais interessantes atingidos com esse projeto chamado Flow Machines?

Fizemos o Flow Composer, que ajuda a compor partituras. Também criamos um sistema em que você dá uma melodia e ele produz a harmonização. Há alguns anos mostrei o sistema ao Ivan Lins. Mostrei-lhe “Começar de Novo” com uma harmonia no estilo do [grupo a capella] Take 6. Fiquei muito feliz de ver que um bom compositor pode achar isso interessante.

– Como a inteligência artificial é alimentada de informações?

O que o Flow Machines faz é, basicamente, um quadro geral de aprendizado de máquina. Você concede ao computador muitos exemplos de algo, como todas as melodias de Antonio Carlos Jobim. O sistema vai analisar e extrair todos os padrões e regenerá-los como algo que seja semelhante, mas seja diferente.

– Não há chances de plágio?

Plágio é uma palavra tabu. Nós nos certificamos de que será diferente do original, porque não queremos fazer nenhuma cópia. Pelos algoritmos, você pode obrigá-los a não fazer uma cópia. Você exclui todos os padrões subsequentes, mas retém o padrão abstrato. Não só é possível, como é compulsório.

– Como fica a questão dos direitos autorais e royalties dessas músicas criadas digitalmente?

A questão de legalidade é uma história completamente diferente. Estamos em um tipo de uma zona cinzenta, porque o que a IA está fazendo é gerar algo inspirado, mas não um plágio. Isso não se enquadra em nenhuma categoria legal.

Ainda há uma necessidade de evolução das leis de direitos autorais. E, a menos que você faça uma cópia, não deve pagar royalties por se inspirar. Essa é a forma como os artistas trabalham em geral.

Se eu acordar de manhã, pegar minha guitarra e compor uma música, tenho na cabeça todos as minhas referências e, obviamente, sou inspirado por elas. O sistema vai fazer o mesmo, mas não vou pagar royalties aos Beatles porque escrevo algo no mesmo estilo.

(FOLHA PRESS)


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