26 de dezembro de 2025
MEMÓRIA E HISTÓRIA • atualizado em 26/12/2025 às 12:58

Entre o abandono e a memória: antropólogo alerta para o apagamento da história nos cemitérios de Goiás

Cemitérios antigos de Goiânia, como o da região da Campininha das Flores, são apontados por antropólogo como símbolos do apagamento da memória coletiva
Jorge Cordeiro afirma que descaso com espaços cemiteriais reflete exclusão social e falta de políticas públicas. Foto: Reprodução.
Jorge Cordeiro afirma que descaso com espaços cemiteriais reflete exclusão social e falta de políticas públicas. Foto: Reprodução.

Falar de cemitérios é, antes de tudo, falar de memória, história e da forma como uma sociedade escolhe lembrar ou esquecer o próprio passado. Em uma série de vídeos publicados nas redes sociais, o antropólogo Jorge Cordeiro chama atenção para o abandono de antigos espaços de sepultamento em Goiânia e Goiás e usa os cemitérios como ponto de partida para uma reflexão mais ampla sobre exclusão social, poder público e antropologia urbana.

Segundo ele, a negligência com esses locais não é apenas uma questão de infraestrutura, mas um sintoma de como determinadas histórias e grupos sociais são sistematicamente apagados. “Cemitérios bem cuidados e cemitérios abandonados dizem muito sobre quem uma cidade decide lembrar e quem ela prefere esquecer”, afirmou no perfil @antropologiaurbana no Instagram.

Antes de 1939: onde estavam os mortos esquecidos da cidade

Jorge Cordeiro questiona a ideia, difundida entre muitos moradores, de que o cemitério mais antigo de Goiânia seria o inaugurado em 1939. Ele lembra que a história da cidade é bem mais antiga e passa pela região da antiga Campininha das Flores, que tem mais de 200 anos.

“Muitas pessoas acreditam que o cemitério mais antigo de Goiânia é o de 1939, mas esquecem que a nossa querida Campininha das Flores tem mais de 200 anos”, afirma. Segundo o antropólogo, antes da organização urbana formal, a lógica dos sepultamentos refletia a estrutura social da época. “Enquanto a elite era enterrada em volta da igreja, a população mais pobre, os ‘excluídos’, tinha seu destino final na região da Praça João Rita, no chamado Cemitério Velho.”

Hoje, o que resta desse espaço é, segundo ele, um cenário de abandono. “O que vemos é o apagamento da história: placas ilegíveis, lixo e abandono total por parte do poder público”, diz.

O apagamento da memória dos excluídos

Para Cordeiro, o descaso com esses cemitérios não é um fato isolado, mas parte de um padrão histórico. “Como sociedade, temos o triste costume de apagar a memória dos excluídos, talvez como uma estratégia para não percebermos que nós também somos deixados de lado”, afirma.

Ele compara a situação dos cemitérios antigos ao estado de abandono de outros equipamentos públicos marcados pela exclusão, como as ruínas do antigo Hospital Psiquiátrico Adalto Botelho. “Esse apagamento gera esquecimento e impede a nossa revolta”, avalia.

Cemitérios como patrimônio material e imaterial

Em outra reflexão, o antropólogo reforça que os cemitérios vão além de locais de sepultamento. “Eles não são apenas espaços para os mortos, mas repositórios de narrativas pessoais e coletivas, que conectam gerações e reforçam os laços sociais”, explica.

Segundo ele, a conservação desses espaços é fundamental para a manutenção da memória coletiva e das identidades comunitárias. “Quando esses locais são negligenciados, perde-se não apenas um patrimônio material, mas também um legado imaterial que dá sentido à vida daqueles que ainda estão vivos.”

Para Cordeiro, o abandono revela um desrespeito que atinge tanto quem já morreu quanto quem permanece. “A degradação desses espaços reflete uma sociedade que desvaloriza sua própria história e, consequentemente, as pessoas que a constroem no presente”, afirma.

Antropologia urbana: a cidade como espelho da sociedade

Ao tratar do tema, Jorge Cordeiro se apresenta como antropólogo urbano e explica que a antropologia urbana busca compreender a cidade como um organismo social. “O cemitério é como uma pequena cidade: ele espelha a nossa sociedade, mostrando tanto a riqueza quanto a pobreza”, diz.

Nesse sentido, os cemitérios funcionam como documentos vivos da desigualdade social. Jazigos preservados, túmulos abandonados, nomes apagados e placas destruídas revelam quem teve reconhecimento em vida e quem sequer teve direito à memória após a morte.

Cobrança por políticas públicas e responsabilidade do Estado

Nos vídeos, o antropólogo faz um apelo direto à sociedade e às autoridades. Ele defende a criação de políticas públicas específicas para a preservação dos cemitérios e sugere a criação de um fundo estadual em Goiás para apoiar os municípios.

“Que tal chamar o seu deputado, senador ou governador para ver de perto a realidade dos nossos cemitérios e pedir uma atitude?”, provoca. Para ele, o Estado precisa assumir um papel ativo. “Não podemos aceitar que o lugar do descanso eterno seja apenas um cenário de abandono e esquecimento.”

Cordeiro conclui que preservar esses espaços é uma escolha política e simbólica. “A morte é o único destino certo, mas a forma como a ressignificamos é uma escolha nossa. Preservar os cemitérios é valorizar a vida, a dignidade e a memória do nosso povo”, afirma.


Leia mais sobre: / / / / Cidades / Geral / Notícias do Estado