Para a psicanálise, o medo nos é tão intrínseco que habita o primeiro afeto que experimentamos ao nascer: o desamparo. Essa emoção está na nossa escalada evolutiva, na forma como nos organizamos como sujeitos e assumimos riscos. Tanta intimidade merece atenção, não acha? Compreenda mais profundamente o que lhe causa temor e retome a coragem de fazer escolhas
Importância do medo para nossa sobrevivência
É difícil senti-lo nos ossos, tremelicantes. No entanto, o medo talvez tenha sido e ainda seja, mais que qualquer outra emoção, crucial para a sobrevivência da nossa espécie, segundo o psicólogo Daniel Goleman, autor do best-seller Inteligência Emocional (Objetiva). O fato é que, sem ele, provavelmente estaríamos extintos. Quer ver?
Imagine-se agora sozinha ou sozinho, andando à noite na rua. De repente você escuta passos próximos a você. O que na sequência acontece em seu cérebro é um caminho absolutamente fantástico que ilustra o curso da evolução humana no desenvolvimento de estratégias de defesa, a partir do momento em que nos demos conta da nossa vulnerabilidade.
Ação do medo no cérebro
Nessa circunstância, o primeiro circuito neural a entrar em ação é o que capta o som e o bifurca para diferentes áreas cerebrais. Sua amígdala, localizada no sistema límbico, responsável pelas emoções, soa o alerta. Você, então, fica atento, mesmo sem ter plena consciência do perigo, se real ou não. O hipocampo, guardião da memória, também entra em jogo para checar se aquele barulho lhe é familiar.
Enquanto isso, outro feixe de projeção caminha para a região do córtex. Ali, uma análise mais racional é feita: é o vizinho ou o funcionário da loja, que fecha tarde? É o entregador de aplicativo? Se alguma hipótese tranquilizadora se confirma, o sistema de alerta cessa e você relaxa. Do contrário, a engrenagem continua interligando a amígdala e áreas relacionadas para o disparo de uma cascata neuro-hormonal que concretiza o medo em seu corpo.
O coração acelerado, a pupila dilatada, a contração da musculatura, tudo prepara você para correr ou lutar – ações natas de preservação – ou para escolhas mais sofisticadas, como gritar por ajuda e ter engajamento social. Tudo em um segundo! O tempo que impulsiona a decisão da melhor estratégia de sobrevivência.
Talvez esse incrível circuito neural tenha sido forjado no passado, em nossos ancestrais, a partir de situações de perigo tão tangíveis quanto essa. Acontece que hoje, em nossa sociedade, lidamos também com subjetividades. “O medo é a emoção que passou pela razão e deu significado ao risco, mesmo que ele não seja real, presente e concreto. Basta que seja interpretado como algo intimidador, o que depende do repertório de cada um e nem sempre é consciente”, diz Ediane Ribeiro, psicóloga pela Universidade de Brasília, com formação em psicotraumatologia.
Assim, hoje a fisiologia do medo dá conta também de ameaças, digamos, mais abstratas e sutis, como o julgamento alheio, a solidão, falar em público, amar, ou só uma ideia, um pensamento posto no futuro, que nem aconteceu, mas já amedronta, no que chamamos de ansiedade. Atualmente a coisa é mais complexa, porque, para além de sobreviver, queremos é viver.
Irmãos gêmeos
E viver, como disse o poeta Fernando Pessoa, não é preciso, não tem precisão, regra ou amparo garantidos. E isso mete medo e faz pensar que essa emoção nos é tão intrínseca, pois é parte não apenas da nossa escalada evolutiva, mas também da forma como nos organizamos como sujeitos.
“Para a psicanálise, o primeiro afeto que experimentamos é o desamparo, o irmão gêmeo, o núcleo do medo”, explica Fernanda Samico, psicanalista membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise. É o que Freud nomeia “desamparo fundamental”, que introduz em nossa psique, ainda na infância e inconscientemente, a angústia ligada ao receio de perder a proteção do outro.
“Nascemos sem nenhuma autonomia, precisamos do outro para nos cuidar, para fazer a contrapartida ao desamparo, no que chamamos de amor. O medo é a elaboração em cima dessa angústia, inerente à nossa condição humana. E angústia é medo difuso, sem objeto”, completa.
Quem de nós já não viveu este desassossego? De sentir medo sem saber direito do quê – ou por quê? As crises de ansiedade e também as fobias podem ser respostas a isso.“Viemos de fábrica preparados para entrar e sair de situações de ameaça, e não para permanecer nelas por muito tempo”, diz Ediane. Quando o medo é angustiante, não tem borda ou rosto, é como se a descarga neuro-hormonal que prepara nosso corpo à ação não tivesse endereço, porta para escoar.
Isso rompe com a função adaptativa do medo e da ansiedade, que é boa, pois nos faz antever cenários para agir, e encapsula o sintoma, gerando mais sistema de alerta no cérebro, num ciclo sensorial que se fecha no medo de sentir medo e de sucumbir, morrer mesmo. Quem já viveu uma crise, sabe.
Diferença entre fobia e medo
As fobias têm mecanismo diferente. “Elas são desfechos traumáticos. O trauma também decorre de um profundo sentimento de desamparo e causa angústia. Muitos sintomas fóbicos são uma maneira de dar lugar a essa angústia, de inconscientemente construir e sobrepor a ela um medo tangível”, explica Ediane.
É por isso que nem toda fobia de cachorro, por exemplo, tem a ver com uma mordida catastrófica. Assim, talvez mais que com qualquer outra emoção, investigar e encarar nossos medos revele muito sobre nós. O medo nos dá pistas sobre como nos estruturamos internamente, sobre nosso senso de self.
Ninguém é uma ilha
O oposto do medo não é a coragem. É o amor, o amparo. É poder operar na fisiologia da segurança, suportado na autoaceitação e na ideia de uma rede de acolhimento, não infalível, porque isso não existe e frustrações acontecem, mas fortalecedora da nossa existência e impulsionadora da criatividade e exploração dos nossos ambientes interno e externo. No livro Medo da Vida – Caminhos da Realização Pessoal pela Vitória Sobre o Medo (Summus Editorial), Alexander Lowen, psicoterapeuta norte-americano, alerta: “Em nossa tentativa de evitar os desfiladeiros da experiência, acabamos eliminando os seus picos. Achatamos a vida”.
Muitas vezes, é isso o que o medo do desamparo faz conosco.“Se no passado havia uma alteridade, um ‘grande outro’, mais forte e presente, no qual podíamos confiar, como o Estado, uma grande liderança ou a Igreja, hoje vivemos em uma sociedade cuja cultura privilegia o individualismo e deixa bem claro que sou eu quem tem de dar conta da minha vida e felicidade. Isso tem um lado bom, pois nos dá a autonomia, liberdade e responsabilidade para gerir nossas escolhas, mas também pode ser extremamente solitário, e nos remeter ao desamparo inicial”, pondera Fernanda. E é sob o medo do desamparo que abrimos mão da nossa autenticidade para pertencer.
No entanto, é preciso lidar com os dois lados da moeda. “Acredito que um caminho é o resgate de conexões, das relações verdadeiras e afetuosas, em casa, no trabalho, com amigos, que nos deixam mais seguros não necessariamente para superar medos, mas para reconhecê-los e negociar com eles, saber qual quero bancar e arriscar com criatividade”, diz Ediane. Quando entendemos que, de um jeito ou de outro, o medo fará parte da nossa jornada, crescemos. Porque ele nos faz olhar para nós e nossas relações com honestidade.
Por Vanessa Costa – revista Vida Simples
Jornalista, escritora e, depois deste texto, promete encarar seus medos para não converter a vida numa monótona e triste linha de montagem.
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