27 de novembro de 2024
Brasil • atualizado em 13/02/2020 às 09:44

Decisão do STF impõe desafio para não discriminar fés minoritárias

Foto: Lula Marques
Foto: Lula Marques

Não é trivial definir com clareza o papel do ensino religioso confessional (declaradamente voltado à explicação das crenças de uma religião específica) num país laico, em que há separação oficial entre a fé religiosa e o Estado.

Essa dificuldade, aliada a ambiguidades do próprio texto da Constituição, ajuda a explicar por que a maioria dos ministros do STF deu parecer favorável ao ensino confessional nas escolas públicas.

Ao mesmo tempo em que estabelece o ensino religioso como disciplina facultativa do ensino fundamental, a Constituição estabelece a liberdade de crença e proíbe que o Estado estabeleça “relações de dependência ou aliança” com “cultos religiosos ou igrejas” -a não ser que esse tipo de colaboração seja “de interesse público”.

Essa ressalva abriu a portinhola conceitual para o ensino religioso confessional no sistema público, embora a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) proíba o proselitismo (ou seja, a pregação com o objetivo de obter novos adeptos para uma crença) e preveja que diferentes denominações religiosas deverão ser consultadas para definir os conteúdos da disciplina.

ARMADILHA

A ação de inconstitucionalidade contra a interpretação de que é possível manter o ensino confessional e ainda assim fugir da armadilha do laicismo, agora derrotada no STF, defendia um modelo que apresentasse aos alunos a história e os fundamentos de uma grande variedade de crenças –e também do ateísmo e do agnosticismo.

Contra essa ideia, membros do tribunal apresentaram argumentos que, apesar da vitória, soam questionáveis.

“A ação pretende criar, de forma artificial, uma doutrina religiosa do Estado”, declarou o ministro Alexandre de Moraes. A proposta de ensino não confessional, porém, falava em exame crítico das diferentes vertentes religiosas, e não de uma “visão de consenso” entre todas.

Além disso, é difícil escapar à impressão de que a ironia utilizada pelo ministro Gilmar Mendes para justificar seu voto em favor do ensino confessional é um daqueles casos clássicos de comparação descabida.

Ao insinuar que uma visão mais estrita sobre a laicidade republicana pode levar à demolição do Cristo Redentor ou à transformação dos Estados de São Paulo em “Paulo” e de Santa Catarina em “Catarina”, Mendes se esquece de que elementos desse tipo (como os crucifixos dos tribunais, que também poderiam ter sido citados) são, para todos os efeitos, fósseis culturais.

Assim como não é preciso ser católico para exclamar “Nossa!” (seguido ou não de “Senhora”) em momentos de espanto, elementos como os citados pelo magistrado são pano de fundo quase imperceptível da cultura nacional. Não há equivalência entre eles e a oferta de instrução nos dogmas de uma fé específica.

FÉS

Aliás, “fé específica” ou “fés específicas”? O próprio acordo assinado entre a Santa Sé (o “governo” da Igreja Católica, sediado no Vaticano) e o governo brasileiro, que entrou em vigor em 2010 e foi um dos motivos da ação de inconstitucionalidade, menciona um ensino religioso que seja “católico e de outras confissões religiosas” e que assegure o respeito à “diversidade cultural religiosa do Brasil”.

No modelo aprovado pelo STF, a única maneira de atingir esse objetivo seria disponibilizar diferentes opções de aulas de religião para os alunos, com espaço para todas as denominações, e não apenas para as igrejas cristãs que hoje são majoritárias.

Além do desafio logístico de dimensões mastodônticas e dos custos envolvidos, há o desafio da convivência.

É inevitável que os cerca de 90% de brasileiros cristãos acabem sendo privilegiados por esse modelo, graças ao peso demográfico, institucional e mesmo econômico de suas denominações.

Como garantir que confissões de fé minoritárias (e quem não professa fé alguma) não acabem tendo na escola mais um espaço de discriminação, como foi (e continua sendo) no caso das religiões afro-brasileiras fora do espaço escolar?

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