19 de novembro de 2024
Mundo

Crise no Brasil e linha dura nos EUA fazem haitianos vagarem pelo continente

FABIANO MAISONNAVE, ENVIADO ESPECIAL – TIJUANA, MÉXICO, E PORTO PRÍNCIPE, HAITI (FOLHAPRESS) – Em Tijuana, quase 3.000 haitianos fugidos da recessão brasileira enfrentam o dilema de escolher entre cruzar a fronteira ilegalmente para os EUA, permanecer no México ou regressar ao Brasil.

Em Porto Príncipe, cerca de 1.100 haitianos se candidatam por mês a um visto brasileiro, enquanto voos fretados partem diariamente para Santiago, a porta de entrada dos cerca de 90 mil haitianos que desembarcaram no Chile desde o ano passado.

Em Saint-Bernard-de-Lacolle, no Canadá, uma cidade de tendas recebeu parte dos mais de 6.000 haitianos que cruzaram ilegalmente neste ano vindos dos EUA, onde o governo Donald Trump ameaça fazer uma deportação em massa.

O fim da missão de paz da ONU, em outubro, e os quase oito anos desde o terremoto de 2010 deixaram o Haiti em segundo plano no cenário mundial. Mas o país mais pobre do hemisfério, além de incapaz de absorver seus imigrantes de volta, continua exportando milhares de cidadãos pelo mundo.

“Muita gente se arrependeu de sair do Brasil, muita. O destino final eram os Estados Unidos. Agora, estão ficando no México porque sabem que a situação do Brasil não está boa”, diz Christopher Faustin, 36. Ele está há um ano parado em Tijuana após morar por quatro anos na região Sul, onde trabalhou como pintor automotivo.

Em setembro do ano passado, após meses desempregado em Blumenau (SC), ele concluiu que não dava mais para continuar no Brasil.

Com a mulher e a filha, que é cidadã brasileira e completaria dois anos na estrada, raspou as economias, emprestou dinheiro de parentes e começou uma longa viagem para os Estados Unidos.

O périplo atravessou dez países e durou 96 dias.

Após chegar ao Acre de avião, a família cruzou para o Peru por terra, invertendo a rota de entrada da imigração haitiana ao Brasil. De lá, quase sempre de ônibus, passaram por Equador, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras e Guatemala até chegarem a Tijuana, na fronteira mexicana com os Estados Unidos.

O trecho mais perigoso foi no Panamá, onde entraram ilegalmente pela Colômbia a pé e caminharam por seis dias em uma região montanhosa de floresta.

Pegos, se identificaram como congoleses para não serem deportados de volta para o Haiti.

“Os policiais nos trataram como animais”, lembra Faustin, que carregou a filha no colo todo o tempo.

Sísifo

Os Faustin não eram os únicos haitianos pelo caminho. Só no ano passado, 17.078 haitianos ingressaram no México, segundo o Instituto Nacional de Migração (INM). A grande maioria fugia da recessão brasileira.

Foram tantos que, quando a família chegou a Tijuana, já era tarde demais. Em 22 de setembro do ano passado, para interromper o fluxo de haitianos vindos do Brasil, o então presidente Barack Obama revogou uma medida adotada após o terremoto de 2010 que suspendeu a deportação automática de haitianos que entravam nos EUA sem visto.

Mesmo os haitianos que haviam entrado sob a garantia dessa medida passaram a ser deportados pelos EUA para o Haiti, onde têm cidadania, principalmente após a chegada de Trump ao poder, em janeiro. Desses, alguns voltaram ao Brasil para mais um recomeço.

Mais recentemente, em 22 de novembro, veio outro revés com a decisão do governo de revogar o Status de Proteção Temporária (TPS, em inglês) de 59 mil haitianos que chegaram após o terremoto, cujo saldo foi de ao menos 200 mil mortos e 1,5 milhão de desalojados. Caso não deixem o país até julho de 2019, ficam sujeitos a deportação -daí a fuga para o Canadá.

O endurecimento dos EUA deixou os haitianos em Tijuana com opções difíceis: cruzar ilegalmente pelo deserto, se estabelecer numa das regiões de baixos salários e entre as mais violentas do mundo ou voltar para o Brasil. O governo mexicano tem custeado as passagens aos que querem regressar.

Em abril, a reportagem encontrou a família Faustin junto com outras dezenas de haitianos em um abrigo improvisado no galpão da igreja Embajadores de Jesus, na periferia de Tijuana. Outros se alojaram em casas e albergues insalubres no centro, região de alto consumo de drogas parecida à cracolândia de São Paulo.

Oito meses depois, em conversa por telefone, Faustin explicou que continua em Tijuana, onde foi nomeado cônsul para os cerca de 3.000 haitianos que permanecem ali.

Mas ele está só: a mulher e a filha entraram nos EUA em setembro com um visto temporário e atualmente moram na Flórida, a centenas de quilômetros de distância. Ele não sabe quando voltará a vê-las.

Porto Príncipe

Em vários lugares da capital haitiana, o desejo de abandonar o país é bastante visível. No aeroporto, a fachada de uma empresa oferece pacotes de viagem para lugares como Cascavel (PR) e Macapá (AP). Perto do saguão de entrada, centenas esperam sob árvores a hora de embarcar para o Chile. No centro, formam-se grandes filas para solicitar passaporte.

Perto do aeroporto, está o Centro de Solicitação de Vistos para o Brasil (BVAC, na sigla em inglês), que funciona no marco de um convênio com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), uma agência da ONU.

Segundo a coordenadora do BVAC, Shauna Martin, cerca de 1.100 pessoas entram com solicitação de visto por mês -a decisão cabe ao consulado brasileiro no Haiti.

Recentemente, explica ela, tem havido um número crescente de solicitações vindas de familiares de imigrantes já estabelecidos no Brasil.

Estabelecido em meados de 2015, o convênio foi renovado recentemente até julho do ano que vem. Desde 2012, o Brasil emitiu cerca de 60 mil vistos por razões humanitárias para cidadãos haitianos.

Atualmente, são concedidos mensalmente entre 1.000 e 1.500 vistos. Os números são do Itamaraty.

Maria Louis, 35, é um caso típico dessa nova leva de haitianos. No final de agosto, ela foi ao BVAC buscar o visto dela e de seus dois filhos. Em algumas semanas, eles se mudariam para Florianópolis (SC), onde o marido é carpinteiro há um ano.

“Ele fala que é bonito, faz frio e tem muita comida por lá”, diz. E a crise? “Não tenho medo, vou trabalhar. Quando alguém trabalha, ganha o que precisa.”

Voltar ao Brasil, por enquanto, está descartado para Faustin, que fala um português quase perfeito. Assim como muitos haitianos em Tijuana, ele espera uma improvável mudança na política imigratória norte-americana.

“O governo mexicano já ofereceu a [passagem de] volta para o Haiti e o Brasil, mas eles querem ficar perto dos Estados Unidos, à espera de um milagre”, diz o pastor Gustavo Banda, que administra o abrigo da igreja Embajadores de Jesus.

“Esta é uma viagem que só se faz uma vez na vida. Alguns haitianos morreram no Panamá e na Nicarágua. Eles dizem: ‘Não quero passar por isso de novo’.” (Folhapress)


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