Ninguém se entende mais. Mais, eu disse. Ninguém se entende. Tá faltando ouvido na vida de hoje. Aquele ouvido que, enquanto escuta, perscruta, lembra, pensa, tem coração à frente da razão. Ninguém se entende e ninguém se ouve como convém ao mundo que todos queremos, um mundo bom, de pessoas boas e sentimentos melhores ainda. Uma utopia mas um Porto Seguro. Um lugar distante, ao alcance das mãos e daqueles abraços.
Minha mãe é uma mulher de muita paciência. Ela olha pra mim, fica atenta e, enquanto falo, respira lentamente, me olhando séria. Se eu a desagrado, ela responde com outro assunto, pronto, tá resolvida a briga que eu me esforçava pra comprar. Minha mãe não me confronta, só ama. Estamos precisando de mais ouvidos de mãe e menos argumentos de filho delas. Essa coisa de suspirar no contrapé da piscadela de vó, mãe com doce no dedo. Tão risível por dentro.
Tento isso com meus filhos, tento com meus amigos, tento o tempo inteiro. Não consigo o quanto ouso, mas consigo conversar inteiro. Nem conversando a gente se entende mais? Nem tanto. Eu tento. Queria que tentassem mais comigo, porque tem hora que não vem palavra da alma, só da boca pra fora, com o ardor de quem não aguenta mais me ver pintado, pintando o entendimento perdido, pau na moleira sem dó. Eu quero paina no travesseiro. Você quer? Quase ninguém sequer suporta o outro. Dorme com o pesadelo, acorda com o desassossego.
Vejo, e ouço também, como tem uns que nem se entendem no rabo do fogão, então como vão entender o pingo da chuva no olho, o risco de sangue do capim riscado na mão, o cisco esborrifado na camisa branca, o latido do cão serelepe na rua? Como? Vão. De oco. Tudo que se transforma em luta, em combate armado de argumentos e desaforos, contra os pássaros, as lesmas lentas, os veados, contra as onças, os marimbondos, tudo é arco e flecha pra abater os desavisados, e bate e volta, se debate.
Ninguém está pronto para o incompreendido, o inesperado da reação insurgente. Uma seresta é desagravo, uma serenata é espalhafato, meus fios de cabelo molhados me adoecem de repente e as chamas labaredam, não chamam. Veja você que aquele prato com bolo deixou de ser gesto de carinho, paz e amor, gentileza, virou cena, ato na cara pra desmoralizar e pra desagravar e pra aparecer nas redes de exposição das vísceras e pra matar simplesmente. Ninguém quer se comprometer com o sentido exato das palavras, as frases balançam com o vento das narinas, os ecos desabam, os pássaros sobrevoam sob os rios e quedam.
Olha que o mundo tem centenas, milhares, milhões de anos, Deus está antes e depois para os que creem Nele, Deus escreve. Agora não há salvação? Agora, neste exato instante em que nos olhamos e nos desafiamos, expira o tempo? O fio de água que se derrama no cerrado é o mesmo do oceano, só que leve nos lábios e na língua adentro. Não entendo que eu queira ser compreendido e me faça de desentendido, que você não me entenda e que se desentenda mais comigo sem razão de ser, e que todos sejam assim, ninguém mais nessa vida. Que sejam ninguém hoje e, quem sabe, amanhã.
Vamos fazer o seguinte. Eu te espero na curva do caminho para Muquém, vamos falar com Nossa Senhora d’Abadia, vamos reunir as almas dos escravos fugidos naquela geografia de morros e brejos, os prantos das matas arriadas, vamos combinar uma fogueira lá na beira do córrego, ouvindo os bichos noturnos, vamos traçar uma linha reta até o despenhadeiro, direta ao céu, e vamos falar por falar, falar um com o outro, conversar diante da fogueira, dialogar sem julgar, sem apedrejar, com a cara e a coragem de ouvir e sorrir, e gargalhar. Ouvindo os pastos, escutando os galhos das fruteiras, deixando entrar no corpo o ar do desprendimento e o suspiro do mistério dad corujas, quem sabe assim recuperemos o mistério divino e a magia das fabulações, quem sabe assim retornemos à origem do fim dos tempos, quando viver era só passar o tempo. Quem sabe assim viveremos. Quem sabe assim morreremos para contar a história.
Está no miolo mole o meu pulsamento? Vamos conversar antes.
Vassil Oliveira
Jornalista. Escritor. Consultor político e de comunicação. Foi diretor de Redação na Tribuna do Planalto, editor de política em O Popular, apresentador e comentarista na Rádio Sagres 730 e presidente da agência Brasil Central (ABC), do governo de Goiás. Comandou a Comunicação de Goiânia (GO) e de Campo Grande (MS).