07 de agosto de 2024
Publicado em • atualizado em 23/11/2023 às 15:37

Sob o olhar da morte

Foto: Luana Cardoso/Acervo pessoal
Foto: Luana Cardoso/Acervo pessoal

O sol ardia na nuca. Em silêncio, observei o cortejo se aproximar. O caixão foi colocado em cima de um túmulo vizinho, que serviu de suporte para o último adeus. O homem de uniforme azul abriu a tampa, a colocou apoiada de lado e se afastou vindo em minha direção. Ao meu lado ele fofoca: “é uma mulher, parece que tem uns 60 anos, um pouco mais velha que eu”. Eu sorrio e ele me olha satisfeito, como quem auxilia contente em alguma tarefa, já nos sentimos amigos após 3 horas de mútua companhia.

O grupo começa a cantar hinos e louvores evangélicos em tons desafinados e chorosos, se demoram na despedida. No sol quente, 10 minutos parecem uma eternidade para quem espera. “Prefiro quando está chovendo, eles vão embora mais rápido”, confessa o homem de uniforme azul. Impaciente, ele confere o relógio. “O horário marcado era às 11h”. Não gosta de atrasos e logo se apressa em buscar o companheiro de trabalho, que se aproxima com o restante dos utensílios: uma pá, um carrinho de mão com cimento e tijolos. Alguns instantes depois, alguém acena e consente para que ele feche o caixão. A essa hora já estava preocupada, com esse sol quente, a pele da defunta exposta já mudava de cor. É o fim, caixão fechado, seis homens carregam o corpo em direção ao túmulo, aberto e limpo mais cedo, que será sua última morada. 

O silêncio absoluto é quebrado por uma música pop festiva que começa a tocar de fundo e vai aumentando conforme os homens de uniforme azul fecham o sepulcro. De repente, me dou conta de que a senhora evangélica está sendo enterrada ao som de Side To Side, de Ariana Grande. “Estive aqui a noite toda/ Estive aqui o dia todo/ E, garoto, você me deixou de pernas bambas”. Quem ficou de pernas bambas fui eu, que quase não me aguentei segurando o riso. Uma mistura de constrangimento com toque cômico. 

Em meio aos olhares confusos dos familiares, alguns de reprovação, outros sem saber o que estava acontecendo, o homem de uniforme azul permanecia plácido, jogando a terra com a pá, depois tapando o buraco com cimento e tijolos. A terra escorria de suas mãos sem luva, assim como o suor escorria em seu rosto, desprotegido e exposto ao sol. Para ele, tudo em total normalidade.

A música parou quando o companheiro de uniforme azul, agora com as mãos livres, conseguiu desligar o celular. Todo o procedimento não deve ter durado mais que um minuto, tempo menor que o de uma música inteira. É esse o tempo do último adeus, longo demais para quem faz isso diversas vezes no dia.

Aos poucos o grupo de familiares foi se dissipando. Me aproximo junto dos de uniforme azul e do cachorro adotado do cemitério, que chega para conferir o serviço e pedir um carinho. Pergunto de onde veio a música e se eles sabem qual era. O colega me confessa que deu bobeira ao não desligar direito o rádio, nem fazia ideia de quem cantava. Imagino que a defunta e a família dela também não. “Já aconteceu outras vezes?”. Para minha surpresa, eles respondem que sim, e ainda bem que dessa vez não foi o radialista falando. 

Pelos detalhes, percebo que, claramente, muito mais do que morbidez e tristeza, o clima é de normalidade. Enquanto observava o enterro, me identifiquei com o coveiro, que durante toda a manhã me apresentou cada canto do cemitério e aos poucos foi me fazendo entender que “a gente se acostuma a tudo nessa vida”. Em poucos minutos, para mim, aquilo também foi natural. 

Chico Souza, o homem do uniforme azul, meu novo amigo, trabalha como coveiro no Cemitério Municipal há 15 anos. Conhece o cemitério como a palma da própria mão. É ele quem guia as famílias para o reconhecimento dos jazigos antes dos enterros, quem orienta e acompanha os visitantes que procuram a localização dos túmulos e quem  faz os sepultamentos. Cerca de cinco por dia, mas já chegou a enterrar 12 na época da pandemia. “Os carros faziam fila lá de fora”, ele conta.

A pele queimada de sol e as mãos calejadas e grossas entregam o ofício. Chico, ou Baixinho, como é chamado pelos colegas de uniforme azul, tem 59 anos e começou na profissão por insistência da esposa, que o incentivou a prestar o concurso público municipal. Ao ser questionado sobre o motivo da escolha, ele responde que era o mais fácil, com mais chances de passar. Bem pensado! Por causa da esposa, hoje ele tem plano de saúde, emprego estável e trabalha em regime de 12 por 36. Nos dias de folga ele faz trabalhos como serralheiro e pega algumas obras extras para completar a renda. 

Ao falar da família, enquanto caminhamos pelo cemitério em busca de um túmulo cujo enterro ele nunca esqueceu, Chico se emociona pela primeira vez, em 2 horas falando sobre morte. Quem o ajuda nas obras que faz em casa é o filho de 30 anos, que nasceu surdo. “Minha filha tem 32, é professora de libras e já é casada”. A moça escolheu a profissão por causa do irmão. “E o senhor fala libras também?”, pergunto. “Não!”. “E como se comunica com seu filho?”. “Por gestos. Eu aponto e ele entende”. Os olhos lacrimejaram e ele não precisou dizer mais nada, no silêncio eu também entendi. 

Em meio a tantas histórias vividas diariamente, Chico confessa que não costuma guardar na memória as coisas que presencia no cemitério. Quando a última pá de terra cai e o portão de grades se fecha, não há mais o que ser lembrado. Mesmo sem fazer questão, ele acaba sabendo um pouco de cada corpo que sepulta. Também faz parte do trabalho ouvir quem se lamenta, mesmo em silêncio, como ele bem sabe. Alguns familiares ficam irritados, falam o que não deve na hora do enterro, exigem coisas que não lhe cabem, mas ele entende. “Prefiro ouvir calado”. 

Dos milhares de corpos enterrados ao longo dos anos, o que ele não se esqueceu tem um rosto, muito bonito e jovem, por sinal. A foto nítida e grande da moça de 18 anos está colada ao túmulo. Ao conversar com a mãe, muito abalada no dia, Chico descobriu que a jovem havia morrido em um acidente de moto. Ele não mencionou ao certo o motivo da lembrança, mas a julgar pela data, à época, a filha de Chico tinha quase a mesma idade da finada. Inevitavelmente, em algum ponto as histórias se resvalam, como as trivialidades da vida. 

São muitos os relatos, afinal, caminhar até o jazigo no sol quente meio que aproxima a gente. Ao acompanhar um familiar para o reconhecimento do túmulo para um sepultamento mais tarde, vivi um pouco do processo. A mãe havia morrido no dia anterior. “Minha irmã deu a ela melão, ela comeu normal, foi dormir e morreu. Morreu dormindo”, conta o rapaz aliviado. No final da caminhada conseguimos arrancar até uma risada do moço. “Nem parece cemitério, foi tão agradável caminhar por aqui”. 

Na maior parte do tempo, há mais vida do que morte no cemitério. São vários bichos. Passarinhos piam e voam no céu. Uns cinco ou mais cachorros perambulam entre os túmulos e dormem na marquise do portão de grades. Borboletas, cobras e escorpiões. Espantando uma cobra-cega que me assustou, Chico lembra que já foi picado, mas não por uma cobra daquelas, que são feias, mas inofensivas, e sim por escorpiões. Dezenas de vezes, inclusive. “Tomou algum remédio, foi para o hospital?”. “Nada, tomei nada não. Já estamos acostumados”, ele responde sorrindo, achando graça de minha pergunta cheia de  espanto. 

Quando começou na profissão, Chico e a leva de outros coveiros que entraram juntos sequer tiveram treinamento. A prefeitura não deu curso de capacitação nem manual de condutas. “A gente aprendeu fazendo”. Os coveiros anteriores, que eram contratados, deram lugar aos novos concursados, então, não tiveram prazo para repassar o serviço nem as condutas do trabalho. 

Tomando mais intimidade ao longo do passeio pelos túmulos, Chico me conta as peripécias de um coveiro recém-chegado. “No começo eu cheguei a enterrar um caixão sem a tampa. Não cabia na gaveta, tive que fazer assim”. Explicou aos familiares que não cabia, retirou a tampa e foi assim mesmo. Também já enterrou no lugar errado. “Era no túmulo da frente e a gente abriu o túmulo de trás”. Quando descobriu a localização errada, alguns dias depois, retirou o caixão e refez o serviço. Isso aconteceu mais de uma vez. 

Como boa parte das pessoas, tenho curiosidade sobre o sobrenatural. “Nunca viu assombração, alguma alma penada andando por aí?”, questiono com humor. Ele responde que não. Chico não acredita em vida após a morte. É evangélico e nem se atreve a chegar perto dos objetos de macumba espalhados pelos túmulos, muito menos das galinhas apodrecidas e mau cheirosas, deixadas nas encruzilhadas do cemitério. “Em respeito”, ele diz. São dezenas de objetos do tipo: garrafas de pimenta, litros de pinga, pratos com farofa, charutos e até dinheiro. Alguns coveiros pegam o dindim, mas ele não. Não se atreve a mexer no que não é seu. O máximo que ele já viu foram velas queimarem sozinhas. “Passei e quando voltei estava acesa. Não teve tempo de ninguém acender, não tinha ninguém por perto”. Mas afirma que, se não viu, não existe. 

Das partes ruins, que todos imaginamos, mas sequer cogitamos presenciar, para Chico, a pior delas é enterrar cadáveres em avançado estado de decomposição. Ele conta que escorre um líquido fétido e que, se a gaveta disponível para enterrar é a de baixo, ele é obrigado a se esgueirar na terra junto da catinga para enterrar o caixão. “E tem lugar para tomar banho e se limpar aqui?”, pergunto, já imaginando a resposta positiva. “Tem nada, aqui mal tem banheiro. Vou para casa fedendo mesmo”, ele diz, sorrindo da minha incredulidade. Me mostra algum túmulo de enterro recente, eu peço. Ele me leva até um que tem cimento aparente e terra recém revirada. “O segredo é esse. Bem cimentado não fede”, se gaba do serviço, aparentemente impecável, já que não havia cheiro algum. 

Muitas das coisas que sabe, ele aprendeu ao longo dos anos, fazendo, e dividiu um pouco comigo. Não pode desenterrar antes de completar cinco anos. Antes desse prazo, o corpo ainda não está totalmente decomposto. Nesse tempo, não é permitido fazer exumação para enterrar outro parente. Na maioria dos túmulos há espaço para três corpos, com duas ou três gavetas, como os homens de azul chamam. Com tanta química que colocam no processo de embalsamento, alguns corpos permanecem inteiros, secos e conservados, com aspectos de múmias, mesmo após os 5 anos. Outros, os mais gordos, me conta Chico, demoram um pouco mais para derreter. 

Depois da morte, o nosso corpo entrega segredos, muitos deles guardados a sete chaves em vida. Os pinos dos ossos, silicones, unhas postiças, cabelos falsos e até marca-passos ficam visíveis na exumação. “Os dentes de ouro alguns coveiros levavam”, brinca Chico ao contar que a prática era comum há alguns anos, quando os dentes de ouro eram colocados no lugar das porcelanas que usamos hoje. 

“Vai ter exumação agorinha, quer ver?”, ele me convida. Meio com pé atrás eu aceito. Não é ele o responsável pela exumação. Na equipe de Chico são dois coveiros que exumam, e outros dois que sepultam. Os dois primeiros abrem e limpam a cova, para que depois ele e outro colega enterrem o próximo familiar. 

Bastaram 15 minutos de conversa com Chico, o coveiro que eu ainda estava conhecendo, para que o convite surgisse. Ele me levou até a cova onde dois outros colegas de uniforme azul faziam a limpeza. Os três me observavam em meio a sorrisos. Um deles explicava cada pedaço de coisa, conforme ia tirando da tumba. Do caixão, sobrou apenas restos de madeira apodrecida, como se cupins tivessem passado anos roendo os pedacinhos. Ainda dava pra ver a espuma colada nas laterais. Me aproximei um pouco até que vi os primeiros ossos. Ele puxou um por um e foi colocando em um saco. Colocou o fêmur, depois puxou uma meia, recheada com os ossos dos pés. “É homem ou mulher, dá pra saber?”. A resposta veio em seguida, quando ele puxou o que seria um pedaço de calça social, ainda com o cinto de couro intacto. No crânio, alguns dentes da frente haviam se soltado com o tempo, mas alguns fios de cabelo ainda permaneciam colados atrás da cabeça. Alguns poucos e de tamanho pequeno, provavelmente era um senhor calvo. 

Tudo que cultivamos na vida, na materialidade, no final das contas cabe dentro de um pequeno saco de lixo azul 60×60. Foi o que gastaram para guardar o que sobrou de um corpo inteiro. O restante da terra, Chico usaria para sepultar a senhora evangélica que se juntaria ao senhor quase calvo algumas horas mais tarde. A mesma terra que decompôs um corpo inteiro, usando a vida para gerar vida, alguns minutos depois escorreria pelas mãos sem luvas de Chico. E eu, que comecei um tanto quanto abalada e incrédula com a tal naturalidade das coisas, mais tarde sorriria ouvindo música pop enquanto observava o último adeus de alguém. Chico faz isso 5 vezes ao dia, 4 vezes por semana, há 15 anos. 

Luana Cardoso Mendonça

Jornalista em formação pela FIC/UFG, Bióloga graduada pelo ICB/UFG, escritora e eterna curiosa. Compartilho um pouco do mundo que eu vejo, ouço e vivo, em forma de palavras, afinal, boas histórias merecem ser contadas