31 de agosto de 2024
Publicado em • atualizado em 13/02/2020 às 00:00

Locomotiva abandonada na Praça do Trabalhador vira casa para morador de rua

Morador de rua fazendo limpeza ao lado da locomotiva (Foto: Samuel Straioto)
Morador de rua fazendo limpeza ao lado da locomotiva (Foto: Samuel Straioto)

Um encontro de dois abandonados na Praça do Trabalhador, bem na região central de Goiânia. A mini locomotiva, apelidada de “Ritinha” pelos ferroviários, deteriorada, enferrujada e um homem, sujo, faminto e necessitado. Ele encontrou abrigo em um dos símbolos da antiga Estrada de Ferro Goyaz.

Histórico

A Estação Ferroviária de Goiânia foi inaugurada em 1950, e não em 1952 conforme placa da Prefeitura da capital que está no espaço e que constantemente a data errônea acaba sendo propagada. 1952 foi o início do funcionamento da Estação, com a chegada de composições ferroviárias ao local.

Com o passar dos anos a praça passou por profundas transformações urbanísticas. Em 1959 foi construído o Monumento aos Trabalhadores. A “Ritinha” durante algum tempo ficou ao lado da edificação, até que foi destruída no período da Ditadura Militar.

A cidade foi crescendo e os administradores tiveram a “brilhante ideia” de retirar os trilhos da parte urbana de Goiânia. A operação da ferrovia foi levada para Senador Canedo. Pra completar os trens de passageiros circularam até a Praça do Trabalhador até o início da década de 1980.

Com a construção da nova Rodoviária de Goiânia, a partir de 1986 a Estação Ferroviária foi ficando isolada, perdendo importância, significado. Os governos: federal, estadual e municipal, pouco fizeram para que o ponto histórico da cidade realmente fosse uma praça, um local de convívio, pelo contrário: a deixaram de lado.

Abandono

A população e os governos que a representam viraram as costas para a Estação Ferroviária de Goiânia, um dos importantes marcos da história da cidade. E quem dúvida ou acha exagero meu, basta circular pela praça e ver o prédio bastante deteriorado. Projetos de revitalização, desde os anos 1980 são discutidos, mas nada saiu do papel.

O mais recente projeto é que está incluso no PAC Cidades Históricas, em que a Estação Ferroviária seria restaurada. Temo de como será a restruturação, caso saia do papel, o que não acredito que aconteça brevemente. A Praça Cívica outra ação que faz parte do mesmo programa até hoje não teve obras concluídas, sendo que a previsão seria outubro do ano passado. Além disso, depois de restaurada, qual seria a ligação com a ferrovia. As ideias que ouvi e que aqui não citarei, pouco tem a ver com a antiga Estrada de Ferro Goyaz.

Sem o cuidado que merece a Praça do Trabalhador com o passar dos anos passou a ser ocupada por aqueles que tiveram as costas viradas pela sociedade e seus governos: moradores de rua, usuários de drogas, ladrões.

Com o passar do tempo, as pessoas em situação de rua saem da Praça, mas voltam. A Polícia Militar tenta dar segurança. Durante o dia homens montados em cavalos passam pelo local. A noite as viaturas passam pelos acessos próximos a Estação, mas a escuridão da noite esconde o uso de drogas e facilita pequenos furtos na região. Fica evidente a fragilidade de uma política de Assistência Social por parte da Prefeitura de Goiânia.

Acordados durante toda a noite, moradores de rua tentam dormir a luz do dia. Nos dias 10,11 e 12 deste mês, observei a rotina de alguns que ali estavam. No primeiro dia vi que cada qual tentava se esconder em diferentes lugares: embaixo das árvores, ao pé da parede da estação e dentro da “Ritinha”.moradores de rua praca trabalhador

Chegando próximo a ela, um forte odor de urina e fezes, alguns dejetos espalhados em volta da locomotiva.

No dia seguinte ao voltar até o local, praticamente no mesmo horário, por volta de 9 da manhã, o mesmo homem que no dia anterior dormia, ele colocava alguns papelões em volta da locomotiva, panos na área onde ficava o maquinista e no pequeno espaço destinado a cargas, alguns objetos pessoais.

Por fim já na quinta-feira, ele improvisou uma faxina e começou a limpar a sujeira que já estava alguns dias em volta da “Ritinha”.

A pobre locomotiva só restou à missão de abrigar um desassistido pelo Poder Público. Vale ressaltar que a assistência das autoridades poderia vir de pertinho. Há poucos metros está a Câmara Municipal de Goiânia, com seus 35 vereadores. No “quintal” do Poder Legislativo tamanha desassistência para com as pessoas e com símbolos da cidade.

Reflexão

Neste mês em que a antiga Estrada de Ferro Goyaz completa 104 anos, infelizmente nem tudo é festa, boa lembrança. O período serve também para reflexão, para nossas autoridades pensarem no bem comum, primeiro nas pessoas, dando assistência a elas, ajudando a ter dignidade, a não ser vítima das coisas ruins que as ruas oferecem.

Depois não pode de se esquecer de proteger o símbolo da cidade, afinal é a memória dos mais antigos, pois ainda há um imaginário que remete a lembranças e que são vivas para os que viveram o iniciar de Goiânia e a história para os mais novos, porque houve um distanciamento da cidade com o patrimônio.

Em relação a críticas feitas aqui neste texto, não faço referência a este ou aquele gestor. Afinal ao longo dos anos todos tem alguma parcela de culpa. A estação é tombada pelo Estado de Goiás e pelo Município de Goiânia como patrimônio cultural. A socidade e me incluo nela, também tem sua parcela de culpa de não cobrar ao longo das décadas dos gestores e por virar as costas para os abandonados, moradores de rua e os bens públicos na Praça do Trabalhador.

O uso do bem público quem dá é o cidadão. Se o Estado não assiste o cidadão e não cuida da Praça do Trabalhador e seus bens o resultado é apenas um para ambos citados neste artigo: abandono.

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Samuel Straioto é jornalista, especialista em História Cultural pela Universidade Federal de Goiás, pesquisador ferroviário, com ênfase na antiga Estrada de Ferro Goyaz