Recém lançada, a publicação da Anfip (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil) pontua uma série de questionamentos contra a Reforma da Previdência proposta pelo governo de Michel Temer.
‘Previdência: reformar para excluir?’ é uma síntese que faz confronto direto com os argumentos da proposta elaborada pelo governo federal, inclusive sobre o tão falado déficit da previdência.
Conheça a publicação, aqui: Reforma da Previdência: Reformar para Excluir?.
Em 14 pontos, os autores apresentam questionamentos com embasamento e informações relevantes para compreender a perversidade da proposta de Reforma da previdência que está em votação no Legislativo. E a conclusão está no título: a reforma visa a exclusão.
A proposta do governo federal sofre críticas de diversos setores e alimentou a conexão entre a oposição e os eleitores prejudicados. O deputado Bohn Gass, do PT/RS, alcançou 2,2 milhões de visualizações no Facebook ao explicar as maldades da reforma da previdência
Resumo da ANFIP:
1. O contexto mais amplo da reforma da Previdência e da Seguridade Social
O debate sobre as reformas na Seguridade Social e no Sistema Previdenciário Brasileiro ganhou novamente destaque no período recente, com a desaceleração do crescimento econômico e a elevação da dívida pública. Essas reformas, segundo o governo, justificam-se pela necessidade de controlar os gastos públicos primários, iniciativa que é vista pelos seus apoiadores como capaz de, num segundo momento, reativar o crescimento econômico, através da recuperaçãodaconfiançadosetorprivado.
1.1. A opção pela austeridade econômica
Ao longo de 2014, à medida que se tornavam mais evidentes a desaceleração do crescimento econômico e a deterioração das contas públicas, e a in ação permanecia em patamares próximos ao teto do regime de metas, cresciam as pressões para uma reorientação da política econômica adotada pelo Governo Dilma, em contexto político cada vez mais acirrado.
Na visão dos críticos, a condução da política monetária era permissiva, no que diz respeito ao controle da in ação; e a política scal era excessivamente expansionista. Deste modo, o diagnóstico era de que uma economia operando muito próxima ao pleno emprego pressionava demasiadamente os custos em- presariais,alimentandoconsequentementeas taxas de inflação. Era preciso, portanto, adotar uma política econômica mais austera, capaz de desaquecer a economia, através da diminuição do consumo, dos salários e do gasto público, e elevar a taxa de desemprego, criando assim cenário favorável para o recuo da in ação, aproximando-a do centro do regime de metas. No nal desse processo, o crescimen- to econômico seria retomado, uma vez que o aumento da con ança dos agentes econômi- cos impulsionaria o consumo e os investi- mentos privados.
1.2. As políticas de austeridade agravaram a crise econômica
O corte nos gastos públicos, sem poupar as políticas sociais e os investimentos, acompanhado por aumento das taxas de juros e por restrição severa do crédito, contribuiu para transformar uma desaceleração em uma depressão econômica. O PIB caiu 3,8% em 2015 e 3,49% (estimativa) em 2016. Queda desse vulto por dois anos consecutivos é fato inédito na série histórica do IBGE. Ademais, uma ele-vação abrupta de impostos e tarifas públicas,no nalde2014,emcenárioderápida desvalorização cambial, impulsionou as taxas de in ação, que praticamente dobraram de tamanho ao longo de 2015. As taxas de desemprego, por seu turno, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua) do IBGE, avançaram celeremente, de 6,5% no último trimestre de 2014, para 11,8% no terceiro trimestre de 2016.
A dívida pública, ao contrário dos objetivos almejados, acelerou a sua trajetória de alta, passando de aproximadamente 56,0% do PIB no nal de 2014 para mais de 70,0% no mesmo período de 2016. No círculo vicioso da “austeridade”, cortes do gasto e O contexto mais amplo da reforma da Previdência e da Seguridade Social do investimento aprofundaram a recessão e debilitaram as receitas, tornando o ajuste scal um processo sem m, fato que não tem passado despercebido, inclusive por instituições internacionais, patrocinadoras das medidas de austeridade.
1.3. O questionável consenso de que o desajuste fiscal seria provocado pelo gasto social
Não obstante a piora praticamente generali- zada dos principais indicadores econômicos, a agenda da austeridade econômica foi aprofundada no país, sustentada por avaliação cada vez mais disseminada de que os gastos sociais “obrigatórios” seriam a causa do desajuste scal. Ignora-se aí que o desajuste scal tem natureza essencialmente nanceira, como consequência dos juros altos e das inconsistências do regime scal e ma-croeconômico.
Com efeito, não se faz referência aos gastos com juros sobre a dívida pública que, em 2015 (R$502bilhões),foram superiores aos gastos previdenciários (R$ 486 bilhões); às desonerações tributárias que totalizaram R$ 280 bilhões em 2015 (o governo federal abre mão de cerca de 20% das suas receitas); e ao fato de que anualmente o governo deixa de arrecadar cerca de R$ 452 bilhões (2015), porque não há políticas e cazes de combate à sonegação scal.
Também não se faz referência ao fato de que o crescimento do gasto social é fenômeno global associado ao avanço do processo democrático em sociedades industrializadas e que o gasto social brasileiro não é elevado na comparação internacional.
Além disso, ignora-se que 1988 representa a inédita conquista da cidadania social no Brasil. Pela primeira vez os tra- balhadores rurais passaram a ter os mesmos direitos previdenciários que o trabalhador urbano; o programa Seguro Desemprego foi introduzido no país; os benefícios sociais passaram a ter um “piso” equivalente ao salário mínimo para evitar a corrosão dos valores pela in ação; e foi inaugurada uma política assis- tencial dirigida para portadores de de ciência e pessoas com elevada vulnerabilidade social (renda per capita igual ou inferior a 1⁄4 de salário mínimo).
1.4. O aprofundamento da austeridade econômica e o Estado Social
As políticas de austeridade têm sido impulsionadas no período recente por duas medidas principais. A primeira é a ampliação da desvinculação de recursos constitucionais assegurados ao gasto social. O Congresso Nacional aprovou em 2016 a majoração de 20% para 30% da Desvinculação de Receitas da União (DRU).
A segunda ação é o chamado “Novo Regime Fiscal” (Emenda Constitucional 95/2016) que cria, por 20 anos, um teto para o crescimento das despesas vinculado à in ação, constitucionalizando a austeridade sobre o gasto social até 2036. O propósito é reduzir a despesa primária do governo federal de cerca de 20% para 12% do PIB entre 2017 e 2036.
A reforma da Previdência proposta recen- temente deve ser compreendida nesse contexto de aprofundamento das políticas de austeridade econômica, sendo a Previdência peça central do ajuste das contas primárias que se almeja com a instituição do “Novo Regime Fiscal”.
Desta forma, coloca-se em xeque o contrato social e o modelo de sociedade pactuado em 1988, fruto da longa luta travada em favor da democracia e contra a ordem autoritária, e da construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
2. Premissas questionáveis: o impacto da Reforma nas finanças da Previdência
A justifcativa do governo para apresentar à sociedade uma proposta de reforma ampla e extremamente austera se baseia na visão de que a Previdência Social seria o maior item do gasto público e seria insustentável nanceira- mente, apresentando dé cits orçamentários sucessivos e crescentes, como proporção do PIB.
Esses déficits seriam explicados pelos impactos deletérios das rápidas mudanças demográficas (em particular o envelhecimen- to populacional e a maior longevidade) sobre a razão de dependência de idosos e que tende a aumentar. Em consequência, para restaurar o equilíbrio nanceiro e garantir a sustenta- bilidade do sistema, no médio e no longo prazo, seriam necessárias mudanças consti- tucionais profundas nas regras paramétricas, sobretudo naquelas que oneram o lado das despesas previdenciárias. O objetivo deste tópico é problematizar estes argumentos do governo, mostrando suas inconsistências e imprecisões.
2.1. A longevidade é desejável
Fazer uma apreciação valorativa do envelhecimento populacional, ou seja, afirmar se ele é bom ou ruim para o país, não é simples. A queda da mortalidade, que é a causa da maior longevidade da população brasileira, é claramente fenômeno positivo e importante indicador de bem-estar. O fato de o brasileiro viver mais mostra que, apesar das desigualdades ainda existentes, as condições de vida melhoraram no país nas últimas décadas. Por outro lado, a avaliação da queda da fecundidade é mais controversa, até porque envolve escolhas individuais e fatores subjetivos. Mas a diminuição do tamanho da população também pode ser vista como algo positivo, na medida em que é fruto, dentre outras coisas, da maior participação da mulher no mercado de trabalho, da modernização dos hábitos e aspirações da sociedade em geral, dos ganhos educacionais, e também dos avanços socioeconômicos do país.
Mas, é fato que a transformação da estrutura etária populacional impõe mudanças nas políticas públicas em geral. Particularmente no que diz respeito à Seguridade Social, o envelhecimento demográfico requer que se tomem medidas nas políticas de Previdência, de Assistência e de Saúde para adequá-las a essa transformação social.
No caso da Previdência, o envelhecimento populacional impacta mais diretamente os sistemas previdenciários que funcionam com base no modelo de repartição, do que os que se apoiam no modelo de capitalização. O Regime Geral da Previdência Social (RGPS), que atende aos trabalhadores da iniciativa privada e aos servidores que não contam com regimes próprios de Previdência, estrutura- se no modelo contributivo e solidário de repartição. Nesse modelo, em uma população mais envelhecida, relativamente menos pessoas (correspondentes aos adultos que trabalham e contribuem) geram os recursos para pagar os benefícios dos que já estão em gozo de aposentadoria ou pensão, contingente que tende a ser maior do que antes.
2.2. Existem alternativas: o problema não é a reforma e sim a ausência de projeto de desenvolvimento
O envelhecimento demográfico não é o “ fim do mundo”. Ele por si só não é motivo suficiente e inexorável para a instituição de condições mais difíceis para dar acesso ao gozo dos benefícios ou para reduzir o valor deles.
No que diz respeito ao financiamento do sistema previdenciário, as variáveis demográficas são “filtradas”, por exemplo, pelas características e pela dinâmica do mercado de trabalho. Ou seja, os impactos das variáveis demográficas sobre a sustentação da Previdência são mediados por variáveis econômicas e sociais, tais como o nível do desemprego, a adesão dos trabalhadores ao sistema e o grau de disponibilidade das pessoas para o mercado de trabalho.
Além disso, do ponto de vista dinâmico, ou seja, considerando o desenvolvimento da economia e do sistema de proteção, o maior peso sobre os trabalhadores ativos para sustentação dos bene ficiários pode ser compensado pela evolução mais acelerada das remunerações de quem está em atividade econômica em comparação com a evolução do valor dos benefícios. Em outras palavras, em contexto de processo de crescimento dos salários diante da evolução do valor dos benefícios, a piora da
relação entre contribuintes e bene ciários pode ser aliviada. Assim, se o sistema econômico tiver uma trajetória favorável do crescimento da produtividade, do emprego e da remuneração do trabalho, alivia-se a carga de se manterem relativamente mais pessoas que recebem aposentadoria, pensão ou auxílio.
Essa análise permite dizer, então, que o principal problema da Previdência Social não é a demografia a em si, mas o fato de que o Brasil não possui projeto econômico compatível com as necessidades do próprio desenvolvimento.
2.3. Existem alternativas: a experiência internacional dos fundos soberanos nanceiros baseados em petróleo e gás
De toda forma, com o envelhecimento populacional, dificilmente apenas as contribuições previdenciárias correntes darão conta de cobrir o total de benefícios previdenciários pagos pelo RGPS. Por isto, do ponto de vista nanceiro, os constituintes de 1988 conce- beram a Previdência Social no interior da Seguridade Social, que conta com base ampla e diversi cada de financiamento. A inclusão da Previdência Social na Seguridade, portanto, amplia as condições favoráveis para seu nan- ciamento a longo prazo.
Podem-se destacar também experiências ino- vadoras como a de diversos países produtores de petróleo que instituíram o Fundo Soberano Incidente sobre as Receitas de Petróleo e Gás que, capitalizados ao longo dos anos, passaram a financiar a Previdência Social. O caso da Noruega é exemplar no reforço do financiamento da Saúde e da Previdência para atender as novas demandas decorrentes do envelhecimento populacional.
2.4. Existem alternativas: mudar a incidência dos impostos, da base salarial para a taxação sobre a renda e riqueza financeiras
Para que as contribuições propriamente previ-denciárias (isto é, aquelas baseadas na remuneração do trabalho aportadas por empresas e trabalhadores) não se descolem muito dos dispêndios previdenciários, também é importante reforçar a scalização sobre as relações de trabalho. A liberação da terceirização, inclusive com a possibilidade de “terceirização em cadeia” e intensificação da rotatividade, e a prevalência do negociado sobre o legislado apontam no sentido contrário, de enfraquecimento da remuneração do trabalho e de expansão das formas informais e ilegais de contratação, e assim fragilizam a sustentação da Seguridade Social.
Ainda com relação à base salarial, é de se repetir também se, a longo prazo, com tantas mudanças tecnológicas em curso e seus efeitos sobre os ganhos de produtividade e o nível de emprego, será razoável continuar jogando tanto peso nesse tipo de renda, como fonte principal de financiamento da Previdência Social. A inovação tecnológica introduzida pela Terceira Revolução Industrial promoveu uma forte corrosão da base salarial da riqueza de muitos países, inclusive do Brasil, nos últimos anos. A automação dos processos produtivos eliminou postos de trabalho e ampliou os ganhos de produtividade. Há 40 anos, para produzir determinada mercadoria eram necessários dezenas de funcionários na linha de produção. Hoje, poucos trabalhadores coordenam processos automatizados. Os empregos foram destruídos, a produtividade se elevou e os ganhos de produtividade alimentaram os lucros das empresas. Mais graves serão os efeitos da Quarta Revolução Industrial na corrosão da base salarial e na perpetuação do desemprego estrutural.
Nessa perspectiva, não é razoável que as projeções do impacto da reforma sobre as contas da Previdência em 2060 sejam feitas com base em relações de trabalho que prevaleciam em 1960. Superar o desa o de financiar a Previdência social no século 21 requer, dentre outras medidas, ampliar as receitas destinadas à Previdência Social mediante novas fontes de financiamento como a vinculação de percentuais de tributos incidentes sobre a renda e a riqueza financeira.
3. Outra premissa questionável: a existência de “déficit” e seu crescimento “explosivo”
A PEC 287 parte de outra premissa questionável: o gasto da Previdência seria “insustentável” e, se nada for feito de imediato, ele vai “implodir” as contas fiscais.
3.1. Sobre a existência de déficit nas contas da Previdência Social
A Constituição Federal de 1988 (CF-88) concebeu o direito à Previdência Social como parte integrante de um amplo sistema de proteção social ao cidadão brasileiro – denominado Seguridade Social – junto com os direitos à Saúde, à Assistência Social e ao Seguro Desemprego. Esse arranjo constitucional foi inspirado no modelo tripartite clássico, encontrado em grande parte dos países desenvolvidos, no qual trabalhadores, empregadores e Estado são igualmente responsáveis pelo financiamento das políticas públicas que integram seus sistemas nacionais de proteção. Como mostra a Figura 1, em 2015, num conjunto de 15 desses países, a partici- pação média relativa do governo no financiamento da Seguridade Social foi de 45% do total, seguida pela contribuição dos empregadores (34,6%) e dos trabalhadores (18%). A Dinamarca é caso extremo, já que a participação relativa do governo no financiamento da Seguridade atinge 75,6% do total das receitas. Isto quer dizer que se não fossem contabilizadas as receitas dos impostos gerais pagos por toda a sociedade, o “rombo” da Previdência dinamarquesa chegaria a 28,5% do PIB.
Com base neste modelo, o artigo 195 da CF-88 institui o Orçamento da Seguridade Social como peça composta com as seguintes fontes de receitas:
• Contribuições Previdenciárias para o RGPS pagas pelos empregados e pelas empresas sobre a folha de salários ou sobre a receita bruta de vendas
• Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL)
• Contribuição Social Para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), cobrada sobre o faturamento das empresas
•Contribuição para o PIS-Pasep para financiar o Programa de Seguro Desemprego e os programas de Desenvolvimento do BNDES, também cobradas sobre o faturamento das empresas
• Contribuições sobre Concurso de Prognósticos
• Receitas próprias de todos os órgãos e entidades que participam desse orçamento.
Antes da Carta de 1988, o ordenamento jurídico já contemplava a “Contribuição da União”.
Desde a década de 1930, o financiamento da Previdência baseia-se no “modelo tripartite” clássico, segundo o qual o Estado, os empregadores e os trabalhadores contribuíam em partes. Desiguais. A CF-88, ao criar a Co ns e a CSLL, aperfeiçoou esse modelo e deu a ele status constitucional.
3.2. O “déficit” é efeito de não se contabilizar como receita da Previdência a contribuição do governo
Apesar de a CF, no §5o do artigo 165, também ter determinado que se apresentem três orçamentos da União (o Orçamento Fiscal, o das Empresas Estatais e o da Seguridade Social), sucessivos governos brasileiros têm incluído na lei orçamentária anual enviada ao Congresso Nacional apenas duas peças: o Orçamento das Estatais e, de modo agregado, o Orçamento Fiscal e da Seguridade. Isso exige que estudiosos e especialistas “reconstruam” o que seria o Orçamento da Seguridade, considerando, por um lado, a diversi cada base de financiamento e, por outro, o conjunto de despesas vinculadas à Saúde, à Assistência e à Previdência. Também são incluídas no Orçamento da Seguridade Social as receitas e despesas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), para viabilizar o Seguro Desemprego e o abono salarial.
O que se tem é que estudos anuais realizados pela ANFIP revelam que a Seguridade Social sempre teria sido superavitária, se fossem seguidos os procedimentos e fontes estabele- cidas pela Constituição para o seu financiamento. A Seguridade Social é superavitária mesmo com a crescente subtração das suas receitas pela incidência da Desvinculação das Receitas da União (DRU) – estimada em cerca de R$ 60 bilhões nos últimos anos e, aproximadamente, R$ 500 bilhões nos últimos dez anos (2006 a 2015) – e com as desonerações tributárias concedidas pela área econômica do governo sobre as suas principais fontes de financiamento (R$ 158 bilhões, em 2015).
Ora, se a Previdência é parte da Seguridade Social, e se o Orçamento da Seguridade Social é superavitário, então de onde vem o déficit apregoado pelo governo?
Esse “déficit” surge porque não se contabilizam as contribuições que são atribuições do Estado para compor a receita previdenciária. Desde 1989, só são consideradas no orçamento da Previdência as contribuições dos trabalhadores e dos empregadores sobre a folha de salário. O que seria a contribuição do Estado no esquema de financiamento tripartite instituído na Constituição, passa a ser então denominado “déficit”.
Considerando, pois, o que reza a CF-88, não faz sentido falar em déficit, porque existem fontes de recursos constitucionalmente asseguradas no Orçamento da Seguridade Social para financiar a Previdência. O suposto “rombo” R$ 85,8 bilhões apurado pelo governo em 2015, poderia ter sido coberto com parte dos R$ 202 bilhões arrecadados pela Co ns, dos R$ 61 bilhões arrecadados pela CSLL e dos R$ 53 bilhões arrecadados pelo PIS-Pasep. Haveria ainda os R$ 63 bilhões capturados da Seguridade pela DRU e os R$ 157 bilhões de desonerações e renúncias de receitas pertencentes ao Orçamento da Seguridade Social.
Mas, em vez de cumprir o que manda a CF, a partir de 2016 a área econômica do governo passou a considerar que também a Seguridade Social é deficitária. Mediante um procedimento contábil “criativo”, o déficit da Seguridade foi estimado em R$ 167 bilhões para 2015, porque o cálculo do governo, também ao arrepio da CF, passou a incluir as despesas relativas ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) da União.
3.3. Discurso recorrente desde 1988
É preciso sublinhar que procedimentos desse tipo não são novidades no debate sobre a reforma da Previdência Social, propostos pelos representantes do setor privado. Ao contrário, eles são recorrentes desde 1988, inaugurados pelo próprio Presidente da República à época, o qual, numa derradeira tentativa para convencer os deputados constituintes, para que eles alterassem o capítulo sobre a Ordem Social, chegou a dizer que, mantido o texto como estava, “o país será ingovernável”.
O discurso da “ingovernabilidade” prosseguiu nos anos 1990 e nos anos 2000. Agora, ele reaparece como premissa questionável para, mais uma vez, infuenciar os rumos do debate. Curioso é que nos últimos 30 anos nenhum daqueles prognósticos foram confirmados. Por que acreditar que eles serão confirmados daqui a 30 anos?
3.4. Quão acuradas e transparentes são as projeções atuariais do RGPS para 2060?
Cabe ressaltar ainda, que a narrativa oficial se baseia em modelos atuariais que preveem o aumento explosivo nas despesas com benefícios, sem paralelo com as receitas de contribuição no longo prazo. Estes modelos, caso existam, são guardados a sete chaves, bem longe do conhecimento público. Na verdade, não se sabe absolutamente nada sobre o modelo atuarial adotado pelo governo e pelos críticos da Previdência que suportam tais projeções. Quais são as variáveis utilizadas? Quais premissas embasam a projeção de cenários para 2060? Quão acuradas são as projeções nanceiras e atuariais do RGPS que servem de base para as profecias dos críticos da Previdência?
Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2002 a 2016, com (ii) os resultados efetivamente observados, extraídos dos Anuários Estatísticos da Previdência Social, da Dataprev e do Tesouro Nacional. Foram esco- lhidos para o teste os anos de 2012, 2013, 2014 e 2015. Esse estudo, que será divulgado em breve, constatou erros de projeção na receita, na despesa e no “dé cit” do RGPS. Concluiu- se que os números apresentados nessas peças orçamentárias, que projetam em 2017 os resul- tados para 2060, são muito imprecisos, porque eles vão acumulando pressupostos duvidosos à medida que se afastam do presente.
Dada a importância crucial dessas projeções para as decisões que serão tomadas no presente, o Parlamento tem o dever de exigir que o governo abra a “caixa preta” e apresente para a sociedade os critérios utilizados para sustentar o seu discurso. Na ausência desse debate, prevalecerá a visão daqueles que, há mais de 30 anos, apontam para a “catástrofe” scal gerada pelas contas da Previdência, com o exclusivo propósito de reduzir gastos e regredir direitos dos trabalhadores.
3.5. A Previdência não é o maior item do gasto público
Segundo o governo, “a Previdência é o maior item do gasto público no Brasil” e é muito elevado, na comparação internacional. Mas, como mostrado neste relatório, o maior item do gasto público no país são as despesas financeiras com o pagamento de juros e amortizações que têm impactos decisivos no ritmo de expansão da dívida pública. Em 2015, o Brasil pagou R$ 502 bilhões de juros e R$ 436 bilhões com benefícios previden- ciários. Uma diferença de 66 bilhões. As despesas com juros consumiram 8,5% do PIB, ao passo que as despesas previdenciárias foram da ordem de 7,5% do PIB.
3.6. Comparações internacionais em torno do tamanho dos gastos previdenciários
Uma proporção das despesas previdenciárias da ordem de 7,5% do PIB não pode, de modo algum, ser considerada elevada na comparação internacional. Muitos países desenvolvidos, com maior taxa de envelhecimento da população, gastam em torno de 14% do PIB com Previdência. Além disto, no Brasil mais de 80% dos idosos têm proteção na velhice, o que corresponde a duas vezes mais que a média da América Latina. Portanto, é natural que o gasto previdenciário no Brasil seja relativamente mais elevado que em nações em desenvolvimento que possuem sistemas mais restritivos.
E não se pode deixar de levar em conta, também, o peso do denominador na relação entre o gasto da Previdência e o PIB. Dado um patamar constante de gasto previdenciário, numa trajetória de crescimento da economia, essa relação se reduz, pela elevação da riqueza. O inverso ocorre em situações de recessão, como a que vivemos em 2015 e 2016 (retração de 3,5% do PIB). Simulações realizadas na versão completa deste documento, para o período 1995-2015, mostram que, mantendo- se constante o patamar de gastos do INSS (despesa efetiva realizada no período), dependendo do comportamento da economia, a relação entre o gasto previdenciário e PIB pode variar entre 8,8% e 3,7% do PIB. Essa diferença de 5,1% não decorre de nenhum centavo a mais na despesa previdenciária.
4. Outros argumentos questionáveis que têm sido apresentados para justificar a reforma
Desde 1989, os críticos da Previdência Social, com o propósito de impor reformas regressivas, alardeiam que o Brasil seria um dos raros países do mundo “que não exigem idade mínima para a aposentadoria”, resultando em regras “generosas” e aposentadorias “precoces”.
4.1. A aposentadoria por idade existe desde 1998
A suposição de que o Brasil “não exige idade mínima” desconsidera o que diz o artigo 201 da Constituição Federal, modificado em 1998 pela Emenda Constitucional n.20, que introduziu a “aposentadoria por idade” aos 65/60 anos para homens/mulheres, no caso do emprego urbano; e aos 60/55 no caso do emprego rural. Atualmente 53% das aposentadorias são por idade, contra 29% por tempo de contribuição e 18% por invalidez. Em 1998, a exigência de 65 ou 60 anos era superior à praticada em diversos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Além disso, os defensores da reforma omitem que a aposentadoria por tempo de contribuição já considerava a idade na fórmula de cálculo do valor do benefício. Isso se dá pelo Fator Previdenciário, que reduz o valor da aposentadoria a depender da idade do segurado e pela “Fórmula 85/95 Progressiva”, introduzida em 2015, que considera a soma de anos de idade e de contribuição como alternativa ao fator. A partir de 2026, a fórmula chegará aos 90/100 pontos como exigência para a aposentadoria integral, numa combinação idade/contribuição muito superior à adotada em muitos países desenvolvidos.
4.2. A aposentadoria é precoce?
A afirmação feita pelo governo e os reformistas de que as aposentadorias no Brasil são muito precoces, para justificar a fixação de uma idade mínima alta para a aposentadoria, baseia-se num cálculo médio que considera o somatório da idade de aposentadoria de todas as modalidades hoje existentes no país: por idade, por tempo de contribuição, rurais, urbanas, homens e mulheres. Chega-se, assim, à média de 59,4 anos, e ela é comparada com a média de países da OCDE (em torno de 65 anos).
Mas esse cálculo agregado mascara situações específicas que precisam ser destacadas. No caso da modalidade de “aposentadoria por idade” do segmento urbano, a média de idade de saída do trabalhador no mercado de trabalho é de 63,1 anos. Os homens, em geral, se aposentam com 65 anos, e as mulheres com 60 anos, que são patamares bem próximos ao das nações desenvolvidas. No caso da aposentadoria rural, a média é de 58,4 anos (60 anos para os homens, e 55 anos para as mulheres). Somando-se essas idades médias de aposentadorias (por idade) rurais e urbanas, o resultado é 60,8 anos, que é número bem razoável, quando se levam em conta as diferenças de condições socioeconômicas e demográficas existentes entre os diversos segmentos populacionais do país (campo e cidade, homens e mulheres, regiões pobres e ricas), e que são incomparáveis com sociedades mais desenvolvidas.
4.3. A Previdência é generosa?
Sendo assim, a tese de que as regras previdenciárias no Brasil seriam “generosas” não se sustenta, pois na prática, como mencionado, a população urbana precisa atingir uma idade para aposentadoria bastante elevada, de 65 anos, os homens; e 60 anos, as mulheres (60/55 anos na Previdência Rural), superiores ao praticado em muitas nações desenvolvidas. No caso da aposentadoria por “tempo de serviço” (35/30 anos) incidia o “fator previdenciário”, que suprimia parte do valor do benefício, e essa reforma foi concluída em 2015.
5. Linhas gerais da reformada Previdência (PEC 287/2016)
A PEC 287 propõe alterações na Constituição Federal que tendem a restringir o direito à Seguridade Social, cuja universalidade passa a estar sob risco. As mudanças afetam o acesso à aposentadoria, o valor dos benefícios previdenciários e assistenciais, a possibilidade de acumulação de benefícios e as contribuições. Um dos traços marcantes é a uni cação das regras entre o Regime Geral e os regimes próprios de Previdência Social dos servidores públicos, alcançando a aposentadoria de homens e mulheres, trabalhadores rurais e urbanos.
5.1. Carência mínima para acesso à aposentadoria “parcial”: 65 anos de idade e 25 anos de contribuição
Com a reforma da Previdência haverá apenas aposentadoria por idade aos 65 anos, que não distinguirá entre homem ou mulher, trabalhador urbano ou rural, servidor público ou trabalhador da iniciativa privada. Além disso, passa-se a exigir do trabalhador o mínimo de 25 anos de contribuição, contra os atuais 15 anos.
5.2. Regras únicas para homens e mulheres, rurais e urbanos
A PEC suprime o direito concedido às mulheres de se aposentarem com cinco anos a menos do que os homens, tanto na idade quanto no tempo de contribuição. Isso é feito mesmo que as mulheres ainda sejam desfavorecidas no mercado de trabalho e continuem tendo de cumprir dupla jornada, a de trabalho e a de afazeres domésticos.
Igualmente, a PEC elimina a redução de cinco anos de idade para a aposentadoria do trabalhador rural, igualando as condições com as exigidas do trabalhador urbano. Com isso, se desfaz a diferenciação que a Constituição Federal prevê em função das condições assimétricas de trabalho e de vida entre o meio rural e o meio urbano.
5.3. Alongamento do tempo de contribuição e redução do valor das aposentadorias
Além de maiores carências de idade e tempo de contribuição, a PEC propõe a redução no valor das aposentadorias ou, mais precisamente, da taxa de reposição. O valor passa a ser calculado em 51% do Salário de Benefício mais um ponto percentual por ano de contribuição, contra os atuais 70% mais um ponto por ano. Com as novas regras, a aposentadoria “parcial” teria patamar inicial de 76%; mas, para alcançar a “aposentadoria integral” (100% do Salário deBenefício),será preciso combinar 65anos de idade e 49 anos de contribuição. Ou seja, o trabalhador só terá direito a aposentadoria integral aos 65 anos, se ele entrar no mercado de trabalho formal aos 16 anos, idade mínima para o trabalho, e contribuir ininterruptamente por 49 anos. Sabendo-se que raramente um trabalhador permanece empregado continuamente por tanto tempo, dados a alta rotatividade e o desemprego prolongado, diminui a possibilidade de aposentadoria, assim como se reduz o valor do benefício (em relação às contribuições que o trabalhador terá de fazer). Nem em países desenvolvidos exigem-se condições tão duras, pois implicariam aposentadoria só aos 72 anos de idade, para uma média de 23 anos de idade, no ingresso no mercado de trabalho.
5.4. Regra de transição só para o acesso à aposentadoria
A única regra de transição presente na PEC 287 refere-se às condições para o trabalhador obter a aposentadoria. Enquadram-se nessa regra o trabalhador com mais de 50 anos, se homem; ou 45, se mulher, que poderão se aposentar antes dos 65 anos, desde que cumpram o restante do tempo de contribuição vigente com acréscimo de 50%. Mas, como não há regra de transição para a fixação do valor inicial dos benefícios, fica na prática reduzido o direito esperado mesmo por quem esteja acima da idade de corte.
Dessa forma, a PEC adota uma interpretação bastante restritiva do conceito de direito adquirido, limitada ao cumprimento integral dos requisitos vigentes na data de promul- gação da eventual Emenda Constitucional. Consumou-se a sinalização do ministro da Fazenda de que direito adquirido é “um conceito impreciso”, desconsiderando a vigência das regras no momento em que foram feitas as contribuições para o sistema.
5.5. Aposentadoria por invalidez: dificultada e com valor reduzido
Com a PEC 287, a aposentadoria por invalidez passa a exigir a incapacidade permanente para o trabalho. Também o valor do benefício é reduzido, pois, à exceção da invalidez por acidente de trabalho, o cálculo seguirá a regra de 51% da média dos salários de contribuição, acrescido de um ponto percentual por ano de contribuição. Nem mesmo as situações de doenças profissionais serão protegidas. As situações de doenças graves, especificadas em lei, resultarão em aposentadorias proporcionais e não mais integrais (100% do salário de benefício).
5.6. Aposentadoria especial
Com a PEC 287, exige-se para a aposentadoria especial o exercício de atividades que efetivamente prejudiquem a saúde, e a periculosidade deixa de ser critério para concessão. Em vez de oferecer proteção, o texto da reforma está exigindo o dano efetivo e a perda das condições de saúde. Ademais, é proposta uma idade mínima de 55 anos para esta modalidade de aposentadoria, independentemente da insalubridade, o que hoje não se exige. A proposta de reforma xa em 20 anos o tempo mínimo na atividade prejudicial para a concessão do benefício, o que representa aumento em alguns casos. Não bastassem esses critérios mais exigentes, a PEC limita ao máximo de cinco anos a diminuição do tempo de serviço do trabalhador exposto às condições prejudiciais à saúde, bem como reduz o valor das aposentadorias, de 100% do salário de benefício, para o percentual calculado segundo a regra geral apontada anteriormente.
5.7. Pensão por morte
A PEC 287 também propõe uma forte redução no valor das pensões a serem concedidas. Além da desvinculação ao salário mínimo, o benefício passa a ser de 60% do valor da aposentadoria que o segurado recebe ou receberia se se aposentasse por invalidez no momento do óbito. A esse benefício será concedido uma parcela de 10% para cada dependente adicional, até o limite de 100%. Como a pensão será xada a partir da regra geral de cálculo da aposentadoria, a renda familiar deverá sofrer uma redução significativa com o óbito do segurado. Provavelmente, uma grande parcela dos futuros pensionistas terá renda equivalente a 60% do salário mínimo. A não reversibilidade das cotas dos demais bene ciários também penalizará o rendimento familiar.
5.8. Proibição de acumulação de aposentadorias
A proposta do governo veda a acumulação de mais de uma aposentadoria por parte do mesmo segurado, salvo casos excepcionais, e proíbe que se recebam aposentadoria e pensão, de mesmo regime ou de regime previdenciários diferentes. Impedir esse tipo de acumulação terá impactos bastante severos sobre a população idosa de renda baixa, como é o exemplo das trabalhadoras rurais que acumulam aposentadoria rural com a pensão deixada pelos seus cônjuges, ambas limitadas ao salário mínimo. Lembrando que a pensão poderá, com a reforma, ser benefício de valor inferior ao mínimo, a renda familiar poderá ser reduzida drasticamente no momento do óbito do segurado.
5.9. Benefício assistencial: carência mínima de 70 anos de idade
Extremamente preocupante também é a elevação progressiva da carência mínima de 65 para 70 anos para a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), dirigido aos idosos e portadores de de ciências socialmente mais vulneráveis (renda familiar per capita de até 1⁄4 do salário mínimo), e que hoje bene cia mais de quatro milhões de famílias (cerca de 16 milhões de pessoas). Com essa elevação da idade, idosos que aos 65 anos não conseguirem se aposentar (por possuírem menos de 25 anos de contribuição), precisarão sobreviver até os 70 anos sem qualquer benefício que lhes garanta renda. Além de restringir o alcance dessa política social voltada para o contingente mais vulnerável da sociedade, cria-se um possível hiato de desproteção e, aos que atingirem a idade exigida, confere benefício com valor arbitrado pelo governo, inferior a um salário mínimo.
5.10. Fim do piso do Salário Mínimo para o BPC e Pensões ameaça seu valor real
O fim da vinculação dos benefícios ao piso do salário mínimo, proposto para o BPC e a Pensão por Morte, põe em risco a manutenção do seu valor. Essa vinculação tem sido importante não só para preservar esse valor, em termos reais, como para elevá-lo, contribuindo para a redução da pobreza na população idosa. A PEC não de ne como serão reajustados tais benefícios, correndo-se o risco de que passem a ser arbitrados em função dos interesses meramente fiscais sem garantir a preservação do poder de consumo da população atendida.
5.11. Previdência dos Servidores Públicos (RPPS)
Além da unificação dos requisitos para a aposentadoria com as propostas para o Regime Geral, no caso dos servidores a PEC 287 traz outras mudanças importantes. A aposentadoria compulsória passa de 70 para 75 anos de idade. Além disso, os servidores com idade abaixo da linha de corte deixam de ser contemplados pelas regras das EC 41 e 47, quanto ao valor de benefício, ainda que preencham as condições garantidas por aquelas Emendas. Ou seja, perdem o direito à paridade e integralidade. Os servidores do Poder Executivo que ingressaram no serviço público anteriormente à instituição da Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo (Funpresp), em fevereiro de 2013, porém, não se sujeitam ao teto dos benefícios previdenciários.
A PEC também obriga estados e municípios a criarem regime complementar de Previdência e, sobretudo, permite que sejam contratados benefícios complementares em planos abertos, oferecidos por entidades privadas do sistema nanceiro. Com isto se evidencia o caráter da privatização deformada que marca o projeto de mudança em curso.
6. A restrição do direito à proteção na velhice: análise crítica da PEC 287
A crítica à proposta de reforma contida na PEC 287 pode ser sintetizada na ideia de que ela reduzirá a extensão e o grau de proteção social assegurado à população brasileira. Além de estabelecer restrições mais duras até que as que se veem em países cujas populações não enfrentam a vulnerabilidade social existente no Brasil, as propostas de mudança agora em estudo podem excluir do sistema de proteção social uma parcela importante dos brasileiros. Além de comprometer a própria sustentabilidade do sistema, tais propostas caminham no sentido do reforço da atuação do setor privado e cam aquém dos compromissos internacionais assumidos pelo país.
6.1. Uma reforma que impõe parâmetros mais duros que os praticados em nações igualitárias
Ao se analisarem a regra de aposentadoria vigente em diversos países desenvolvidos antes da crise nanceira global de 2008 constata-se que a xação de idade mínima para a aposentadoria na OCDE (em torno de 65 anos) “não é o mínimo, mas a referência”. Em geral, a “carência mínima” (para a idade que assegura o direito ao recebimento do benefício básico ou pedido de aposentadoria antecipada) é inferior à “idade de referência” (o limite legal de idade estipulado para o recebimentodapensãocompleta).Emalguns países há diferença de quase oito anos entre “idade mínima” e a “idade de referência”.
Essa mesma distinção verificada no caso da idade ocorre no caso da exigência ou não de tempo de contribuição. Em muitos países, a “carência mínima” (que assegura o direito a receber o benefício básico ou a pedir aposentadoria antecipada) era “tempo de residência”, “tempo de liação” ou “tempo de cobertura”. Em outros casos, exigia-se entre 10 e 15 anos de contribuição. Por sua vez, a “carência de referência” (que possibilita o benefício integral) baseia-se em tempo de contribuição em torno de 35 anos.
Em suma, sendo o Brasil uma sociedade cronicamente desigual, não se pode concordar com a imposição de regras mais estritas que as vigentes nos países desenvolvidos que apresentam indicadores sociais, econômicos e demográficos de melhor qualidade que os brasileiros.
Não é justo, por exemplo, que o trabalhador rural do Nordeste do Brasil esteja submetido a regras de aposentadoria mais exigentes que às aplicadas ao trabalhador urbano da Escandinávia. Uma proposta de reforma que se pretenda justa deve considerar a experiência histórica de cada país, seu estágio de desenvolvimento e as condições materiais de vida do seu povo. O debate tem de ser amplo e a questão não pode ficar resumida unicamente a imperativos orçamentários.
6.2. Uma reforma que ampliará o contingente de trabalhadores sem proteção na velhice
A elevação da idade para acesso ao benefício assistencial pode pôr uma parcela da população mais vulnerável numa condição de total desproteção social. Vale lembrar que atualmente quase 25 milhões de trabalhadores estão fora do sistema de proteção social. O contingente sem proteção previdenciária representa 37,7% do total de trabalhadores. Ao contrário de ampliar a inclusão previdenciária, a PEC pode empurrar para este contingente uma massa de novos trabalhadores que serão expulsos do sistema previdenciário, por não terem capacidade contributiva, por não terem saúde para continuar no trabalho e por saberem que é inútil contribuir por algo inatingível ou apenas atingível quando restar quase nada de vida com alguma dignidade.
6.3. Expulsão de contribuintes, redução das receitas do RGPS e privatização
Poderá haver também impacto sobre a atitude dos jovens em relação à Previdência, redu- zindo o estímulo à Educação, pela necessidade de contribuir para a aposentadoria, ou então, desestimulando a filiação ao sistema, uma vez que a aposentadoria estará mais inacessível e terá menor valor. Isso parece contraditório com o consenso generalizado de que a Educação deve ser a prioridade nacional.
Um dos possíveis efeitos de uma reforma com as características apresentadas é a própria fragilização financeira do RGPS. Tanto os trabalhadores pobres podem deixar de contribuir por entenderem que o sistema não os atenderá no futuro, favorecendo o estabelecimento de arranjos de trabalho informais, como também as camadas de maior renda podem evadir-se em direção a planos privados de Previdência. A privatização deformante parece ser um propósito não manifesto da reforma.
Como visto, a PEC 287 eleva progressivamente a carência mínima de 65 para 70 anos para a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Esse importante mecanismo de proteção social beneficia atualmente 4,5 milhões de pessoas, garantindo renda mensal de cidadania, no valor de um salário mínimo, aos idosos (65 anos ou mais) e pessoas com de ciência com renda familiar per capita inferior a 1⁄4 de salário mínimo. Trata, portanto, da proteção àqueles em situação de miséria e incapazes de garantir sua sobrevivência por meio do Ao lado das aposentadorias e pensões, o BPC concorreuparaqueapobrezaeaindigência nesta população se tornasse fenômeno quase residual. Em 2014, apenas 0,78% dos idosos com 65 anos ou mais viviam com renda familiar per capita de até 1⁄4 de salário mínimo; e 8,7% viviam com renda per capita
Nessa crítica, vale adicionar que a PEC aponta para regras mais rígidas para a aposentadoria por invalidez e menospreza o risco à saúde e integridade física que os trabalhadores encontram no trabalho, mas é silente quanto à reabilitação e readaptação profissional.
6.4. Uma reforma que se contrapõe à Declaração Universal dos Direitos Humanos
Por fim, a reforma parece ir de encontro ao artigo 25 da clássica Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, na medida em que não estará garantido a todos “o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle”. Se se aprovarem as regras agora propostas, o Brasil, um dos países mais desiguais e hete- rogêneos do mundo, caminhará para se transformar em um dos campeões mundiais em regras restritivas para a aposentadoria.
Esse ponto também é percebido no tratamento igual que se pretende dar aos desiguais (rural e urbano, homens e mulheres e bene ciários dos programas assistenciais), como se verá a seguir.
7. Benefícios assistenciais: a desproteção dos mais vulneráveis
7.1. O debate sobre o valor do benefício
Muitas vezes se questiona o pagamento de benefício assistencial, de natureza não contributiva, com o mesmo valor do piso dos benefícios previdenciários, que tem natureza contributiva. Isso estimularia a não contribuição por parte de parcela da população. Mas este argumento não se sustenta já que o BPC garante renda a público reconhecidamente incapaz de garantir sua própria sobrevivência por meio do trabalho remunerado, seja pela idade avançada, seja pela presença de uma de ciência. E a renda assegurada restringe-se ao mínimo previsto para atender necessidades básicas de subsistência, muito inferior ao necessário, conforme estima o DIEESE.
Pesquisa realizada entre os beneficiários demonstrou a grande relevância deste benefício para a proteção contra a pobreza, pois o BPC representa 79% do orçamento das famílias e, em 47% dos casos, ele é a única renda da família (Brasil, 2010). Sendo assim, propostas de redução do valor do benefício ameaçam devolver esse público à miséria. São famílias vulneráveis, com rendimentos afetados pela ampliação de gastos com saúde e cuidados, além da capacidade limitada para obter renda no mercado de trabalho.
7.2. O debate sobre a idade de acesso ao benefício
A ampliação da idade de acesso ao BPC seria justi cada pelo caráter não contributivo do benefício, que desestimula a contribuição previdenciária. Esta suposição pressupõe que os trabalhadores racionalmente abram mão da liação à Previdência contando com a expectativa de receber o BPC na velhice. Adotar este raciocínio é esquivar-se de pensar no mercado de trabalho brasileiro e nos determinantes da informalidade. Convém recordar que, de 2003 a 2012 (e enquanto crescia o acesso de idosos ao BPC), o percentual da PEA com cobertura.
Na verdade, o relativamente baixo nível de liação previdenciária é, sobretudo, uma consequência da baixa capacidade contributiva dos que trabalham em empregos precários. Em 2014, 43,1% dos trabalhadores sem filiação previdenciária possuíam rendimento inferior ao valor do salário mínimo e, portanto, dificilmente teriam condições para contribuir regularmente para a Previdência Social (MINISTÉRIO DO TRABALHO E PREVIDÊNCIA SOCIAL).
7.3. Os efeitos da PEC 287 sobre o BPC
As mudanças propostas na PEC 287, de elevação da carência mínima, reduzirão drasticamente o grau de proteção aos idosos em situação de vulnerabilidade.
A análise prospectiva da mudança da idade mínima de 65 para 70 anos sugere que entre 2023 e 2036, em média 28% da quantidade de bene ciários projetada para receber o BPC Idoso, observando-se as regras atuais, estaria fora deste sistema de proteção, por ter idade entre 65 a 69 anos. Assim, em 2036, em vez de a política de Assistência Social contemplar os quatro milhões de idosos que receberiam o BPC, o sistema de proteção social bene ciará apenas três milhões de idosos.
Outro provável efeito será a redução, pela metade, na duração do benefício. Isso porque a idade média de concessão do benefício, em 2014, foi de 66,5 anos, e o BPC concedido ao idoso dura de usufruto deste benefício será reduzido quase pela metade nos primeiros anos após a reforma. anos; e que 84% das cessações do BPC foram causadas por morte em 2014, o que é bom indicativo da taxa de sobrevida dos bene ciários do BPC, que representa uma população extremamente vulnerável.
Esse cálculo aproximado da expectativa de sobrevida desta população está bem longe da expectativa de sobrevida das pessoas com 65 anos, estimada pelo IBGE, que foi de 18,1 anos. Ou seja, a população a que se destina o BPC, vulnerável pela sua condição social, e com sobrevida reduzida em relação à média da população, perderá a proteção deste benefício até atingir os 70 anos. Alcançando essa idade, terá rendimentos inferiores a um salário mínimo, o que trará como consequências a piora das condições de vida dos idosos e pessoas com de ciência vivendo em famílias em condição de pobreza extrema.
8. As desigualdades brasileiras na comparação internacional
Nem os argumentos que embasam o diagnóstico dos defensores da reforma, nem os parâmetros que estão sendo propostos, con- sideram suficientemente as questões que diferenciam o Brasil de países que têm sido usados como referências de comparação, nor- malmente de níveis de riqueza e de bem-estar muito superiores. Assim, o objetivo dessa seção é o de discutir por que não é adequado inspirar a reforma brasileira em modelos previdenciá- rios de países mais igualitários.
8.1. As desigualdades da renda e da riqueza
Não há país-membro da OCDE com distribuição da renda do trabalho mais desigual que o patamar entre US$ 30.000 e US$ 61.000, duas ou quatro vezes maior que o do Brasil (US$ 15.359,33). Na OCDE, a participação relativa dos salários no PIB (entre 50% e 68%) é bem maior que a do Brasil (43,6%). O salário mínimo (em US$ correntes PPP) aqui (US$ 404) é cinco vezes inferior ao da Alemanha, por exemplo.
8.2. As desigualdades do mercado de trabalho
No terceiro trimestre de 2016, a taxa de desemprego brasileira (Pnad Contínua) foi estimada em 11,8%, quase o dobro da média dos países da OCDE. Aproximadamente metade da população ocupada situava-se no setor informal do mercado de trabalho, em meados de 2016, algo que não se veri ca nos países de maior grau de desenvolvimento.
Em 2015, cerca de metade dos trabalhadores brasileiros recebiam rendimento inferior a dois salários mínimos. A rotatividade no mercado de trabalho no Brasil é elevada. Em 2015, quase 50% dos trabalhadores brasileiros tinham menos de três anos no atual trabalho, enquanto que na Itália esse percentual era de 20%.
Nos países da OCDE, os jovens entram no mercado de trabalho por volta de 23 anos (França) e 26,2 anos (Itália). No Brasil, 45,9% dos homens urbanos e 78,2% dos rurais começam a trabalhar com até 14 anos; e 31,0% e 14,1%, respectivamente, começam a trabalhar entre 15 e 17 anos. Portanto, 76,9% e 92,3%, respectivamente, entram no mercado de trabalho com 17 anos ou menos.
8.3. As desigualdades na esperança de vida ao nascer
No Brasil, a expectativa de vida ao nascer (74,4 anos) é mais de seis anos inferior à veri cada nos países desenvolvidos. Nossa realidade demográfica está mais próxima de sociedades como México, Argentina, China, Peru, Colômbia e Paraguai, por exemplo.
No caso dos homens, a expectativa de vida ao nascer no Brasil (70,7 anos) é quase dez anos inferior à de muitos países da OCDE. No caso das mulheres (78,3 anos), ela também é muito inferior à registrada nesses países (entre 82 e 86 anos). Projeções do IBGE indicam que somente em 2060 o brasileiro teráexpectativadevidaaonascersemelhante àsnaçõesdesenvolvidas(emmédia81anos, para ambos os sexos).
8.4. As desigualdades na expectativa de sobrevida aos 65 anos
Comparados aos países desenvolvidos, os parâmetros de sobrevida no Brasil também são reduzidos. No caso dos homens com 65 anos, a expectativa de sobrevida em 2060 (21,1 anos) é inferior às nações desenvolvidas (entre 23 e 25 anos). No caso das mulheres com 65 anos, a expectativa de sobrevida em 2060 (24,6 anos) é ainda menor na comparação com nações como a Itália (27,7 anos), por exemplo.
8.5. As desigualdadesna “expectativa de duração da aposentadoria”
A “expectativa de duração da aposentadoria” no Brasil é cerca de oito anos inferior à veri cada em alguns países da OCDE. Em termos médios, a expectativa de duração da aposentadoria na OCDE é de 17,6 anos, contra 13,4 anos no Brasil.
8.6. As desigualdades na “probabilidade de não atingir 65 anos de idade”
Estimativas do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para o período 2000-2005 revelam que a probabilidade de um homem não atingir 65 anos de idade no Brasil era 37,3%, enquanto que no Canadá, por exemplo, essa possibilidade era de 15,0%.
8.7. As desigualdades na probabilidade de “vida sem saúde”
Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que, em 2001, 20,2% do período de vida de um homem no Brasil transcorria “sem saúde”, sendo mais que o dobro de muitas nações desenvolvidas, como a Austrália (9,4%), por exemplo.
8.8. As desigualdades na Saúde
Na comparação internacional, a Taxa de Mortalidade Infantil em menores de cinco anos no Brasil, em 2015 (16,4%), era mais de quatro vezes superior à de muitos países desenvolvidos da OCDE.
8.9. As desigualdades na “expectativa de vida saudável”
A “expectativa de vida saudável” no Brasil é de 64 anos, quase dez anos menor do que alguns países da OCDE, como a Itália (73 anos) e mesmo o Peru (67 anos), por exemplo.
8.10. As desigualdades na Educação
As desigualdades da Educação nacional se re etem em diversos indicadores como, por exemplo, média de anos de estudos. A média brasileira é 7,6 anos, semelhante à do Zimbábue e muito inferior aos países
desenvolvidos como a Suécia (11,7 anos) e Alemanha (12, 9 anos), por exemplo.
8.11. As desigualdades no Desenvolvimento Humano
A maior parte dos países da OCDE, que serve de inspiração à reforma da Previdência no Brasil, está classi cada como “IDH muito elevado”, segundo critérios do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O Brasil é classi cado como “IDH elevado”, encontrando-se num patamar inferior a Uruguai, Panamá, Costa Rica, Venezuela e México, por exemplo. Situa-se pouco acima de países como Azerbaijão, Ucrânia, Argélia, Peru, Albânia e Equador, por exemplo.
9. As condições de vida no Brasil vistas a partir das profundas desigualdades regionais e sociais
Além da distância que separa os indicadores de riqueza e de bem-estar do Brasil, e os indicadores apresentados por muitos países que serviram como parâmetro de comparação para embasar a proposta atual de reforma da Previdência, é preciso atentar para as profundas desigualdades socioeconômicas existentes no país; para o ainda expressivo contingente populacional que está em situação de vulnerabilidade à pobreza; e para a débil estruturação de nosso mercado de trabalho.
9.1. A heterogeneidade entre Unidades da Federação e municípios brasileiros
Em país com enorme heterogeneidade regional, qualquer proposta de política pública federal deveria levar em consideração as distintas realidades existentes nas regiões e nos territórios do país. A taxa de mortalidade infantil no Espírito Santo (9,2) é mais de 12 anos inferior à do Amapá (23,5) ou à do Maranhão (22,4). A taxa de urbanização no Distrito Federal (95,3%) contrasta com a encontrada no Piauí (67,1%).
A expectativa de vida ao nascer no Brasil (ambos os sexos) é de 75 anos. Mas em 18 Unidades da Federação, ela é menor do a média nacional. A de Santa Catarina (78,4 anos) é muito maior que a do Piauí (70,9).
A expectativa de vida ao nascer para os homens no Brasil é de 72 anos. Mas em Alagoas é de cinco anos a menos (67 anos). Em mais da metade das Unidades da Federação, a expectativa de vida ao nascer dos homens varia entre 66 e 71 anos.
O mercado de trabalho brasileiro se mostra também bastante diverso regionalmente. Das 27 Unidades da Federação, 15 apresentam taxa de desemprego maior do que a média nacional, com destaques para a Bahia (15,9%), Pernambuco (15,3%), Amapá (14,9%) e Alagoas (14,8%). No outro extremo, doze Unidades da Federação apresentam taxa de desemprego inferior à nacional, sendo a menor observada em Santa Catarina (6,4%).
As diferenças dos graus de informalidade apresentadas pelas 27 Unidades da Federação
são muito acentuadas. De um lado, São Paulo, Santa Catarina e Distrito Federal apresentam graus de informalidade iguais ou inferiores a 40,0%. De outro lado, Piauí, Maranhão e Tocantins exibem informalidade no mercado de trabalho superior a 70,0%. 22 Unidades da Federação assinalam informalidade superior à registrada na média do país.
O percentual de vínculos do mercado de trabalho formal com remuneração de até dois salários mínimos é superior à média nacional em 18 Unidades da Federação, com destaque para os estados da Paraíba e do Ceará, cujo percentual equivalia a 2/3 do seu mercado de trabalho formal.
As heterogeneidades também são observadas entre os 5.565 municípios brasileiros. Dados de 2010 revelam que a expectativa de vida no Brasil para homens era de 73,9 anos. Mas, no município de Cacimbas, na Paraíba, era de apenas 65,3 anos. Em 3.170 municípios (57% do total), o valor do indicador é menor que a média nacional.
Mesmo dentro de uma única Unidade da Federação as disparidades são gritantes. No Maranhão, a expectativa de vida ao nascer (ambos os sexos) era de 70,4 anos em 2010. No entanto, no município de Paulo Ramos, chegava a 65,6 anos, e no município de São Luís atingia 73,8 anos.
Mesmo em uma só cidade, como São Paulo, cuja média de expectativa de vida é de 77,8 anos, as desigualdades entre distritos é imensa. Segundo levantamento na Rede Nossa São Paulo, enquanto no Alto de Pinheiros, o tempo médio de vida está em 79,6 anos, em Cidade Tiradentes, na zona leste, esta média é de apenas 53,8 anos
9.2. As desigualdades de Desenvolvimento Humano entre os municípios brasileiros
Em termos de Desenvolvimento Humano, a análise das informações do IDH dos municípios brasileiros, fornecido pelo Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil12 (dados de 2010) para os 5.565 municípios brasileiros (hoje, são 5.570 municípios), revela que: Como mencionado, a PEC 287 unifica as regras para todos os segmentos: homens e mulheres, rurais e urbanos, trabalhadores privados e servidores públicos. É importante uma detida consideração sobre a validade de propostas que visem a dar tratamento igual a desiguais, dentre as quais se destacam as seguintes.
10. A reforma da Previdência em contexto de desigualdade de gênero e das condições de vida
Como mencionado, a PEC 287 uni ca as regras para todos os segmentos: homens e mulheres, rurais e urbanos, trabalhadores privados e servidores públicos. É importante uma detida consideração sobre a validade de propostas que visem a dar tratamento igual a desiguais, dentre as quais se destacam as seguintes.
10.1. Desigualdades entre homens e mulheres
Ao eliminar o bônus concedido às mulheres no tempo de contribuição e idade de aposentadoria, os formuladores da reforma desconsideram as condições desfavoráveis enfrentadas por elas no mercado de trabalho e a dupla jornada que realizam, tendo em vista a quantidade de horas por semana dedicadas aos afazeres domésticos e ao cuidado com os lhos. Ainda mais grave é a situação da mulher que trabalha no meio rural, submetida a rotinas penosas que interferem na saúde e reduzem sua capacidade produtiva prolongada e a própria expectativa de vida. Agora, a mulher no meio rural também deverá contribuir mensalmente durante 50 anos para
• 40 municípios (0,8% do total) são classi cados com IDH “Muito Alto” (patamar próximo das nações da OCDE).
• 1.989 (34% do total) municípios são classi cados com IDH “Alto” (próximo do IDH do Brasil).
• 2.230 municípios (40 % do total) são classi cados com IDH “Médio” (semelhante ao de Botsuana, Turcomenistão, Gabão, Indonésia, Uzbequistão, El Salvador, Bolívia e Iraque, por exemplo).
• 1.367 municípios (24,6% do total) são classi cados com IDH “Baixo” (padrão veri cado em Zâmbia, Gana, Quênia, Paquistão, Angola, Tanzânia e Nigéria, por exemplo).
• Finalmente, 29 municípios (0,5% do total) são classi cados com IDH “Muito Baixo” (algo próximo do Senegal, Afeganistão, Etiópia e Gâmbia, por exemplo).
Desigualdade no emprego e trabalho
As desigualdades entre homens e mulheres ainda são uma forte característica do nosso mercado de trabalho. Quando se lançam no mercado de trabalho, as mulheres têm maiores di culdades do que os homens para encontrar emprego; e, quando encontram, experimentam menores jornadas, inserções mais precárias e remunerações mais baixas. Essas desigualdades se explicam, como já dito, pela responsabilidade das mulheres no trabalho doméstico não remunerado e pelas atividades relacionadas à reprodução, que as exclui por longos períodos do mercado, di cultando o acesso a empregos e à valorização profissional.
Segundo os dados da Pnad-IBGE em 2014, a parcela da população feminina em idade ativa que trabalhava ou estava à procura de trabalho era 57% (79,2% no caso dos homens). A taxa de desemprego entre as mulheres (8,7%) era superior à dos homens (5,2%). Mesmo sendo mais escolarizadas, as mulheres tinham rendimento médio mensal menor (R$ 1.250,00) que os homens (R$ 1.800,00).
Desigualdade na jornada de trabalho
Cerca de 90% das mulheres ocupadas em atividades urbanas em 2014 cuidavam dos afazeres domésticos (52%, entre homens ocupados). Na agricultura, 96% das mulheres ocupadas cuidavam dos afazeres domésticos (48% dos homens ocupados). As mulheres ocupadas dedicam, em média, 19,21 horas por semana aos afazeres domésticos; os homens, apenas 5,1 horas. Somando a jornada de trabalho e a
jornada de afazeres domésticos, as mulheres trabalhavam mais (54,7 horas semanais) que os homens (46,7 horas semanais), exatas 8 horas a cada semana. A mulher ocupada acima de 16 anos trabalhava, em média, quase 73 dias a mais que o homem, em um ano. Todavia, a jornada de trabalho remunerado das mulheres era inferior à dos homens (35,5 horas semanais e 41,6 horas, respectivamente).
Desigualdade nos benefícios previdenciários
Em decorrência dos piores rendimentos e de inserções mais precárias no mercado de trabalho, 48,3% dos benefícios previdenciári- os concedidos para mulheres são de até um salário mínimo (23,9%, no caso dos homens). A aposentadoria por idade é a modalidade mais acessada por elas, devido à di culdade para acumular anos de contribuição. Em 2014, 64,5% das aposentadorias concedidas para mulheres foram por idade (apenas 36,1% para os homens).
O aumento de 15 para 25 anos do tempo mínimo de contribuição na aposentadoria por idade trará maiores di culdades às mulheres. Num exercício simples com as médias nacionais, podemos pensar em três situações, tomando como base as jornadas totais de trabalho atualmente (Pnad, 2014) de homens e mulheres ocupados/as com 16 anos ou mais de idade:
a. Considerando-se os tempos de trabalho médios semanais dos ocupados e ocupadas, tem-se que, após 35 anos de contribuição, as mulheres teriam trabalhado sete anos a mais que os homens;
b. Numa vida laboral ‘padrão ouro’ – isto é, considerando um primeiro emprego aos 22 anos, depois de terminada a faculdade, e aposentadoria aos 65 anos de idade, após vínculos formais de emprego – as mulheres teriam trabalhado, por conta de sua jornada dupla, 8,6 anos a mais que os homens; e
c. Finalmente, se consideramos as atuais idades médias de entrada no mercado de trabalho de homens e mulheres – 16,1 e 17,1 anos respectivamente –, tem-se que, ao se aposentarem ambos com 65 anos de idade, as mulheres terão trabalhado 9,6 anos a mais que os homens.
Essas diferenças justi cam a atual regra, que de ne que as mulheres podem aposentar- se cinco anos antes dos homens. O exercício evidencia a signi cativa e persistente desigualdade no tempo dedicado ao trabalho doméstico não remunerado por mulheres e homens. A regra diferente reconhece, portanto, umadesigualdademarcanteemnossasociedade, no que diz respeito à divisão do trabalho pelos sexos.
10.2. Desigualdades entre rural e urbano
Além de acabar com o bônus de cinco anos da aposentadoria rural, pelas novas regras o trabalhador rural também deverá fazer contribuições mensais e individualizadas. Esse modelo contributivo con ita com os regimes de safras e a sazonalidade da produção rural e a maioria dos trabalhadores rurais não possuem renda disponível todos os meses para arcar com o encargo previdenciário. Nesse caso, como mencionado, não se exige contribuição mensal, mas um percentual sobre a produção da agricultura familiar.
Redução da pobreza rural
A pobreza caiu, entre 2005 e 2014, de 73,78% a 49,54% entre a população rural. A queda
resulta de um conjunto de melhorias nas condições de vida no campo, como o aumento dos rendimentos do trabalho e a ampliação do acesso à Previdência e às transferências monetárias da Assistência Social. Estima-se que a Previdência rural contribui com ao menos 1/3 da redução da pobreza da população do campo, entre 2005 e 2014.
Redução da pobreza e proteção social da velhice no campo
Do ponto de vista da redução da pobreza e da proteção social à velhice no campo, pode-se dizer que a expansão da Previdência rural de 1993 a 2014 tornou quase residual a pobreza rural: se, em 1993, 61,8% das famílias em que havia ao menos um segurado especial tinham renda domiciliar per capita inferior a 1⁄2 salário mínimo (SM); em 2014 essa proporção reduzira-se a 12,5%, decréscimo relativo de 80%.
Bem-estar das famílias
As rendas previdenciárias rurais aumentaram nos últimos anos sua participação relativa na composição geral da renda per capita dos domicílios rurais considerados em sua totalidade. A Previdência rural constitui hoje a principal fonte de rendimento das famílias rurais, tendo ultrapassado, na última década, os rendimentos advindos do trabalho na agricultura familiar e do trabalho assalariado. Com efeito, embora a Previdência seja paga hoje a 30% das famílias rurais, ela responde por 32% da renda per capita do universo dos domicílios rurais. Isto signi ca que quase 1/3 da capacidade de consumo de toda a população rural vem da Previdência.
Essa renda previdenciária trouxe claros efeitos favoráveis ao bem-estar e às condições de vida e produção das famílias rurais. As
importantes conquistas sociais no campo, entre 1993 e 2014, em termos de melhoria das moradias, de acesso à escolarização dos jovens e de redução de trabalho infantil, foram mais intensas para as famílias rurais comaposentados,sobretudoseforlevadoem contaqueestasúltimaspartiamdepatamares inferiores no início do período.
Fomento à economia dos pequenos municípios
Mas o impacto da Previdência rural não se limita às famílias que a recebem: ele se estende a toda população do campo. Tais estimativas dialogam com os efeitos das rendas previdenciárias rurais sobre a economia de pequenas cidades – com menos de 50 mil habitantes –, que representam 88% do total de municípios do país.
Por que cinco anos a menos?
A diferença de cinco anos na idade mínima de acesso às aposentadorias rurais e urbanas por idade é justificada por duas condições específicas do trabalho agrícola no país: a “penosidade” e o início precoce da atividade laboral.
Informações da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS)-IBGE, de 2013, oferecem indícios de que a saúde dos (as) trabalhadores do campo é, de fato, mais frágil do que a dos (as) trabalhadores (as) da cidade. Aproximadamente 25% dos ocupados em áreas rurais entre 30 e 64 anos a rmaram sentir dor na coluna, enquanto na cidade esse percentual foi 18%. Entre os ocupados com 65 anos ou mais, essas taxas eram de 32% e 26%, respectivamente.
Apesar de parecer razoável pensar que a expectativa de vida em áreas rurais é menor do que em áreas urbanas, o país não dispõe
de informações o ciais que con rmem essa situação, e a proposta de uni carem-se as idades mínimas de acesso às aposentadorias rurais e urbanas parece ignorar esse fato.
As estatísticas publicadas no Anuário Estatístico da Previdência Social sobre a duração dos benefícios previdenciários revelam que os trabalhadores rurais vivem, de fato, menos anos que os urbanos. Na ausência de informações de nitivas sobre o tema, é necessário reconhecer que a uni cação dos critérios de acesso ao benefício previdenciário pode penalizar subgrupos populacionais já bastante desfavorecidos.
Sobre o início precoce da atividade laboral dos trabalhadores rurais
O trabalho infantil ocorre majoritariamente em áreas rurais. Segundo a Pnad-IBGE, das 5,5 milhões de crianças entre cinco e 14 anos com domicílio rural, 479 mil estavam ocupadas, ou seja, cerca de 8% do total; por outro lado, das 25 milhões de crianças da mesma faixa etária com domicílio urbano, 418 mil, ou 1,6% do total, tinham ocupação.
Em 2014, 78,2% dos homens e 70,2% das mulheres ocupadas disseram que começaram a trabalhar antes dos 15 anos. Na cidade, esses valores eram muito inferiores – 45,3% e 34%, respectivamente. Ou seja, o trabalho infantil em áreas rurais ainda é a regra para as gerações que estão ocupadas hoje.
Nas últimas décadas, houve avanços em relação à postergação do início da entrada no mundo do trabalho, no entanto eles foram muito mais expressivos nas áreas urbanas do que nas rurais. Entre 2001 e 2014, o percentual de homens e mulheres urbanos ocupados que começaram a trabalhar antes de completarem 15 anos caiu 26%, enquanto nas áreas rurais essa queda foi de 15%.
Mesmo sem considerar o trabalho infantil, o trabalhador rural inicia-se no mercado de trabalho antes do trabalhador urbano. Enquanto 41% dos jovens rurais de 16 a 18 anos de idade estavam ocupados em 2014, entre os jovens urbanos essa taxa era de 31%.
Concluindo, cabe reafirmar que a PEC 287 uni ca as regras para todos os segmentos: homens e mulheres, rurais e urbanos, trabalhadores privados e servidores públicos. Todos, indistintamente, terão que comprovar idade mínima de 65 anos e 49 anos de contribuição para terem acesso à aposentadoria com valor integral do Salário de Benefício (média corrigida de todos os salários desde julho de 1994). Rea rmando novamente a crítica já feita aqui, os formuladores da reforma fecham os olhos para as profundas desigualdades e heterogeneidades socioeconômicas, demográficas e regionais do país que, em hipótese alguma, recomendam a uni cação, para não agravar ainda mais as diversas faces da desigualdade social.
11. Por que é necessário preservar o piso do salário mínimo?
Como mencionado, a PEC 287 acaba com a vinculação do piso do salário mínimo aos benefícios da pensão por morte e ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). Deste modo, é importante lembrar a importância econômica e social do salário mínimo não apenas para o mercado de trabalho, mas também para a proteção social.
11.1. O piso dos benefícios previdenciários está atrelado ao salário mínimo
Além de xar o patamar básico legal para remuneração do trabalho, a Constituição Federal estabeleceu o salário mínimo como piso dos benefícios da Seguridade Social, uma vez que ele deve equivaler ao menor valor monetário capaz de, em âmbito nacional, assegurar uma vida digna ao trabalhador e sua família. A vigência do salário mínimo no mercado de trabalho e no sistema de proteção social garante uma elevada incidência de rendimentos (de trabalhadores ativos, inativos e segurados) correspondentes a um salário mínimo no Brasil.
Ao vincular o piso dos benefícios ao salário mínimo, também foi possível a correção periódica dos benefícios e das contribuições, para garantir o seu valor real. Com a valorização do mínimo, os benefícios aproximaram-se da remuneração que o trabalhador possuía e retiraram da pobreza milhões de pessoas. Sobretudo, foi suprimido o expediente recorrente na ditadura militar, que corroía o valor real das aposentadorias.
11.2. A importância econômica e social do salário mínimo
Atualmente, há aproximadamente 47,9 milhões de pessoas cuja referência para a determinação de seus rendimentos é o salário mínimo, sendo que, desses, 23,1 milhões são bene ciários do INSS. Por sua vez, os pisos da Assistência, da Previdência e do Seguro Desemprego bene – ciam outros segmentos populacionais pobres.
O salário mínimo teve valorização real de 77% entre 2003 e 2016. Essa valorização contribuiu para reduzir a concentração de renda medida pelo Índice de Gini apontada anteriormente. O valor e os reajustes do mínimo têm re exos sobre a renda do setor informal e sobre o conjunto dos trabalhadores mais pobres. Além disso, ao ser repassado aos benefícios previdenciários e assistenciais, formou uma frente de combate à pobreza e à desigualdade, inclusive regional, e contribuiu para a dinami- zação de regiões mais pobres do país.
O salário mínimo, apesar de muito inferior ao que determina a Constituição de 1988, representa uma renda que dinamiza o consumo interno, ao garantir poder de compra a uma população que tem alta propensão a consumir. Com isso, sua elevação gera estímulos à demanda, ao crescimento econômico e, por decorrência, à geração de empregos. Mais ainda, os aumentos do salário mínimo acabam retornando ao setor público na forma de aumento da arrecadação de tributos sobre o consumo e a folha de pagamentos.
11.3. O impacto do salário mínimo nas receitas previdenciárias
O salário mínimo in uencia mais as receitas previdenciárias do que as despesas. O aumento real do salário mínimo, entre 2003 e 2014, elevou as despesas da Previdência em R$46,0 bilhões (a mais do que se tivesse sido corrigido apenas pelo INPC), mas alavancou as receitas em R$52,5 bilhões. Ou seja, os aumentos reais do salário mínimo ajudaram a gerar equilíbrio para o INSS.
12. Um alerta: é preciso preservar o principal mecanismo de proteção social brasileiro
Como já dito anteriormente, a CF-88 instituiu a Seguridade Social, conceito clássico que resulta da construção histórica dos chamados regimes de Welfare State. Originada na Alemanha do nal do século 19 e desenvolvida na Europa, no pós 2a Guerra, a proteção social passou a ser vista como um direito da cidadania, e os direitos sociais passaram a ser “universais”. Na Constituição, prevaleceu o princípio da “Seguridade Social”, em que todos têm direito mesmo sem ter contribuído monetariamente, ante o princípio do “Seguro Social”, em que só tem direito quem paga. Instituiu-se a forma clássica de financiamento tripartite entre empregados, empregadores e Estado (através de impostos gerais pagos por toda a sociedade).
Este modelo está consagrado por convenções e declarações internacionais de organismos como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a própria Organização das Nações Unidas (ONU). Deve-se registrar a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, cujo artigo 25 reza o seguinte:
“Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu ontrole”. difundir a Seguridade Social como direito universal.
Em linha com as diretrizes consagradas internacionalmente, a Seguridade Social brasileira é, ao mesmo tempo, o mais im- portante mecanismo de proteção social do País e poderoso instrumento do desen- volvimento. Além de transferências mon- etárias para as famílias, da Previdência, do Trabalho e da Assistência Social, contempla a oferta de serviços universais proporciona- dos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), pelo Sistema Único de Assistência Social (Suas) e pelo Sistema Único de Segurança Alimentar e Nutricional (Susan). Em conjunto com a geração de empregos formais e a política de valorização do salário mínimo, as transferên- cias de renda da Seguridade Social tiveram papel destacado na ampliação das rendas das famíliasqueimpulsionaramomercadointerno de consumo de massas, núcleo do recente ciclo de crescimento econômico.
Parte do sistema de Seguridade Social, a Previdência tem por função garantir a cobertura de uma renda substitutiva nos casos de ocorrência de eventos de resultem em incapacidade laboral dos trabalhadores. A Constituição de 1988 criou um sistema universal, estendendo aos trabalhadores rurais os mesmos direitos dos trabalhadores urbanos.
O papel central que cumpre a Previdência Social no sistema brasileiro de proteção social, com a repercussão no mercado interno de consumo de massas vital para o ciclo recente de crescimento econômico, é detalhado a seguir.
12.1. Os benefícios de Previdência e Assistência asseguram uma renda mínima para milhões de brasileiros
O RGPS e a Assistência Social concedem 33,5 milhões de benefícios, dos quais a grande maioria, 23,0 milhões, é de valor igual ou menor do que Salário Mínimo. No segmento rural e no BPC, praticamente 100% dos benefícios corresponde ao piso do salário mínimo, enquanto que no segmento urbano, esse percentual é de 56,7%. Ao contrário da visão corrente, os valores dos benefícios do RGPS e da Assistência Social são relativamente baixos, o que é uma renda mínima contra a pobreza.
12.2. A Previdência mantém quase 100 milhões de brasileiros
Considerando que, em 2015, o RGPS mantinha 28,3 milhões de benefícios diretos e que os aposentados viviam em famílias com mais 2,5 membros, em média, estima-se que indiretamente sejam favorecidos outros 70,7 milhões de brasileiros. Ou seja, o RGPS beneficia 99 milhões de pessoas, quase a metade da população do país.12.3. A Seguridade beneficia mais de 140 milhões de brasileiros
Seguindo o mesmo raciocínio, mas agregando o BPC e o Seguro Desemprego, somam-se outros 40 milhões de beneficiados, direta e indiretamente, por transferências da Seguridade. Ou seja, em 2015 ela transferiu renda para 140,6 milhões de indivíduos, cujos benefícios são próximos do piso do salário mínimo.
12.4. A maioria dos idosos brasileiros está protegida
Também como já dito, no Brasil 82% dos idosos brasileiros tem proteção na velhice, contando, ao menos, com as transferências de renda da Previdência e do BPC.
12.5. A Previdência fomenta a agricultura familiar e combate o êxodo rural
A aposentadoria e as pensões para os trabalhadores rurais funcionam como seguro agrícola fomentando a agricultura familiar e contribuindo para xar a população ao campo. A proporção de jovens que permanece no campo, por exemplo, aumentou de 60% na década de 1980, para 85% na década passada, ou seja, junto com a vigência dos benefícios da Previdência aos trabalhadores rurais pós 1988.
12.6. A Previdência promove a economia regional
As transferências da Previdência ativam a economia local, sendo a principal fonte de transferência de recursos para 70% dos municípios brasileiros.
12.7. O papel redistributivo nos municípios mais pobres
A Previdência social reduz as desigualdades regionais, pois se observa que, quanto mais baixo é o PIB do município, maior é a importância dos montantes pagos em benefícios para a economia local. Ou seja, os benefícios previdenciários promovem também o desenvolvimento municipal.
12.8. A Previdência reduz a desigualdade da renda
Entre 2003 e 2012, houve signi cativa redução do índice de Gini, de 0,581 para 0,527. Segundo o Ipea (2015), quase 30% desta queda decorreu do pagamento de aposentadorias e pensões pelo Estado.
12.9. A Previdência reduz a pobreza
Em 2014, apenas 8,76% das pessoas com 65 anos ou mais viviam com renda menor ou igual a 1⁄2 salário mínimo. Caso não houvesse a Previdência e o BPC, o percentual de idosos pobres aos 75 anos superaria 65% do total.
12.10. Sem a Previdência e a Assistência Social a pobreza extrema seria muito maior
Em 2014, apenas 0,5% da população de 60 anos ou mais estava em situação de extrema pobreza. Sem a Previdência, o BPC e as pensões, uma parcela expressiva dos idosos viveria em situação de pobreza extrema. Diante da importância para a redução da desigualdade e o combate à pobreza e à miséria, qualquer proposta de reforma deveria preservar e reforçar este pilar da proteçãosocial.
13. Como garantir o equilíbrio financeiro (I): aspectos relacionados à Previdência e à Seguridade Social
A Previdência Social no Brasil é deficitária? Está falida? Vai “quebrar”? Seguramente essas palavras têm sido ditas ao cidadão comum há mais de trinta anos. Expressões como a Previdência é uma “bomba” que explodirá com o envelhecimento da população, associadas ao suposto “rombo”, são utilizadas para justi car a Reforma que retira diretos sociais e garantias fundamentais conquistadas pelos trabalhadores no passado recente. Entretanto, o mesmo governo que alarma sobre o suposto “rombo” previdenciário, intensi ca medidas que diminuem a arrecadação dos impostos que financiam a Seguridade Social, da qual a Previ- dência é parte.
Neste tópico, argumenta-se que, ao isolar e tratar a Previdência como a principal causa dos problemas fiscais no Brasil, deixa-se de considerar as possibilidades de garantir a sua sustentação nanceira simplesmente pelo cumprimento da Constituição Federal de 1988 e pelo reforço da scalização e da gestão nanceira e administrativa interna do setor.
13.1. Exigir a aplicação das receitas da Seguridade Social na Seguridade Social
O equilíbrio nanceiro da Previdência Social não requer que se criem novos impostos e contribuições, no curto prazo. Basta que os artigos 194 e 195 da Constituição de 1988 sejam cumpridos, o que nunca ocorreu desde 1989. Só em 2015, com esse descumprimento, deixou-se de contabilizar nas contas da Previdência Social, como “contribuição do governo”, a arrecadação proveniente da Co ns (R$ 201 bilhões), da CSLL (R$ 60 bilhões) e do PIS-Pasep (R$ 53 bilhões). Nesse mesmo ano, a Seguridade Social também deixou de contar com R$ 157 bilhões por conta das desonerações tributárias (incluída a isenção da contribuição patronal para a Previdência) e de uma parte dos R$ 64 bilhões por conta das Desvinculações das Receitas da União (DRU).
Se a Previdência Social é de citária, por que desvincular recursos da Seguridade Social? Seria minimamente plausível retirar tantos recursos de um sistema suposto de citário? Ou estaria o governo propositalmente criando esse dé cit?
Se a Previdência está “quebrada”, por que isentar 59 setores econômicos de contribuir para o seu financiamento, conforme determina a Lei no 13.161/2015, implicando a redução de R$ 25,407 bilhões veri cados em 2015? Por que isentar de contribuições para a Previdência, clubes de futebol, igrejas e toda ordem de entidades lantrópicas que reduziram as receitas da Previdência em R$ 11,393 bilhões, apenas em 2015? Por que o setor do agronegócio (23% do PIB e 52,5% do valor total das exportações brasileiras em 2015) não contribui para o esforço de arrecadação do estado brasileiro (a arrecadação do Imposto Territorial Rural é de 0,01% do PIB)?
Neste sentido, há sim alternativas que passam pelo cumprimento da Constituição Federal e pela preservação do espírito nela consagrado, no que concerne à Seguridade Social, profundamente desvirtuado desde 1989. Será preciso alterar a forma inconstitucional de o Governo Federal contabilizar as receitas da Previdência; extinguir a DRU; acabar com as renúncias tributárias que incidem sobre o Orçamento da Seguridade Social; extinguir as desonerações patronais sobre a folha de pagamento (Lei no 13.161/2015); rever as isenções previdenciárias para entidades lantrópicas e clubes de futebol; e acabar com as isenções e ampliar a contribuição do setor de agronegócio no financiamento do setor.
Ademais, ao isolar a Previdência, ficam sem mencionar as decisões de política macroeconômica que afetam profundamente as receitas da Previdência e da Seguridade Social; não se faz referência à possibilidade de elevar as receitas da Previdência pelo crescimento da economia ou pela inclusão dos trabalhadores informais; não são mencionadas as possibilidades de se ampliar a capacidade nanceira do Estado pela maior equidade na contribuição entre classes sociais; e, sobretudo, nada é dito sobre enfrentar as profundas inconsistências do regime macroeconômico e fiscal brasileiro.
13.2. Reforçar a fiscalização e a gestão financeira e administrativa interna ao setor
Entre 2011 e 2015, o estoque da Dívida Ativa previdenciária passou de R$ 185,8 bilhões para R$350,7 bilhões, montante quase quatro vezes maior que o alegado rombo de R$ 91 bilhões. Apenas 0,32% do montante total da dívida foram recuperados.
A melhoria da scalização interna da Previdência Social poderia ampliar considera- velmente a arrecadação. O montante de recursos que deixa de ser arrecadado anualmente por conta de fraudes praticadas pelos empregadores é bilionário.
Apenas o trabalho assalariado sem carteira implicou desfalque de receita de mais de R$ 47 bilhões para a Previdência em 2015. Outros R$ 43,8 bilhões anuais poderiam ser arrecadados, caso houvesse esforço efetivo de scalização e penalização de empregadores que fazem pagamentos “por fora” da folha de pagamentos; que deixam de se responsabilizar pelo pagamento de acidentes de trabalho e benefícios acidentários; que registram acidentes de trabalho como “doença comum”; e que ocultam acidentes, riscos e Fator Acidentário de Prevenção.
Essa melhoria requer a recriação do Ministério da Previdência Social e, sobretudo, a maior determinação da Receita Federal do Brasil. Em 2008,havia 100 Auditores-Fiscais vinculados à Secretaria da Receita Previdenciária, atuando no combate à inadimplência e à sonegação das contribuições previdenciárias. Hoje, após a incorporação à Secretaria da Receita Federal do Brasil, apesar de se terem alterado os instrumentos e a forma de atuação, concentrados atualmente no combate à sonegação, há somente cerca de 900 Auditores- Fiscais da Receita Federal no trabalho voltado às contribuições previdenciárias.
14. Como garantir o equilíbrio financeiro (II): aspectos relacionados à política macroeconômica
Neste tópico, argumenta-se que, ao isolar e tratar a Previdência como a principal causa dos problemas fiscais no Brasil, deixa-se de mencionar as decisões de política macroeconômica que afetam profundamente as receitas do setor. Nenhuma palavra é dita sobre a possibilidade de elevar as receitas da Previdência pelo crescimento da economia; sobre as possibilidades de se ampliar a capacidade nanceira do Estado pela maior equidade na contribuição das classes de maior renda; e, sobretudo, sobre as inconsistências do regime macroeconômico brasileiro e seus impactos na questão scal.
14.1. A importância do crescimento econômico: ajustar para crescer ou crescer para ajustar?
O crescimento econômico é pré-requisito para o equilíbrio nanceiro da Seguridade Social, pois suas receitas incidem sobre a folha de salário, o faturamento e o lucro das empresas. A recessão deprime as receitas; o inverso ocorre com o crescimento. Nesse sentido, o financiamento previdenciário
re ete fatores externos ao setor, relacionados à política econômica e ao mercado de trabalho. O equilíbrio não pode depender apenas de cortes de gastos e regressão de direitos. Sem crescimento não é apenas a Previdência social que fica “inviável”, mas o Estado brasileiro em seu conjunto, incluindo a União, os estados e os municípios.
14.2. Potencializar as receitas pela inclusão dos trabalhadores informais
Em 2014, 37,7% da população ocupada não estava coberta por algum dos regimes de Previdência social. São quase cinco milhões de trabalhadoresqueestãoforadosistema,não contribuem para a Previdência e não terão proteção na velhice.
14.3. Reforçar a capacidade financeira do Estado pela maior equidade na contribuição das classes de maior renda
Há enormes possibilidades de se ampliar a capacidade nanceira do Estado pela maior equidade na contribuição entre classes sociais, além da já mencionada iniciativa de revisão das desonerações tributárias.
Apenas em 2015, o governo gastou R$ 502,0 bilhões em juros, devido à xação de taxas básicas sem paralelo na comparação internacional. Países que possuem dívida bruta três vezes maiores que a brasileira (como proporção do PIB) pagam menos da metadedejuros. o scal,14 por conta da frouxidão legal e scalizatória, que fez com que o estoque de Dívida Ativa da União atingisse os extraordinários R$ 1,8 trilhão, metade dos quais devidos por pouco mais de 13 mil empresas e pessoas físicas.
Além disso, apesar da grave situação scal pela qual passa o país, medidas tomadas recente- mente debilitam o esforço arrecadatório que a situação presente exigiria. Nesse sentido, destacam-se: (i) o novo programa de parcelamento dos débitos em até 96 meses para empresas e autorização, através da Medida Provisória n° 733, da renegociação das dívidas de produtores transferência de bens dos contribuintes para empresas de telefonia, num valor que pode passar Portanto, apenas o enfrentamento da questão dos juros, das desonerações e da sonegação pode viabilizar, para o governo, um espaço para economizar parcela significativa dos cerca de R$ 1,26 trilhão por ano transferido para as camadas de maior renda, tornando desnecessária a economia de R$ 67,8 bilhões por ano, que supostamente se obteria com a reforma da Previdência hoje em estudos.
14.4. Superar as inconsistências do regime macroeconômico e fiscal brasileiro
A sustentação financeira da Previdência requer, sobretudo, que se enfrentem as profundas inconsistências do regime macro- econômico e fiscal brasileiro.
A crônica desigualdade brasileira se reflete até mesmo nas categorias usadas para classificar os gastos do governo. Convencionou-se que o chamado gasto “primário” (que beneficia a maioria da população de menor renda) seria ruim; e que o chamado gasto “nominal” (que beneficia os detentores da riqueza financeira) não teriam qualquer implicação para contas públicas. Estabeleceu-se que os gastos sociais seriam a raiz do desajuste fiscal brasileiro. E que cortar esses gastos primários seria pré-requisito para a redução dos gastos financeiros.
Ocorre que a realidade aponta exatamente na direção contrária. O déficit nominal no Brasil mais que triplicou, de 3,0% do PIB em 2013 para 10,3% do PIB em 2015, quase o triplo da média mundial de 3,7% do PIB. Como consequência, a dívida bruta aumentou de 56% do PIB (dezembro de 2013) para 70% do PIB em junho de 2016. Assim, em apenas dois anos e meio, a dívida bruta aumentou 14 pontos percentuais do PIB, o que equivale a quase dois anos de despesas previdenciárias.
Esse resultado decorre, fundamentalmente, da conta de juros, que saltou de 4,7% do PIB em 2013 para 8,5% do PIB em 2015. Mais de 8,5% do PIB do crescimento do déficit nominal (10,3% do PIB) ocorrido em 2015 decorre da política de altos juros, que impõe enorme custo fiscal ao conjunto de políticas econômicas ( fiscal, cambial, monetária, industrial). A contribuição do déficit das contas primárias (não financeiras) no déficit nominal de 10,3% do PIB foi de apenas 1,9% do PIB.
Ademais, o Banco Central mantém em caixa recursos vultosos decorrentes de superávits primários realizados nos exercícios anteriores. Essas disponibilidades do governo federal no BC, medidas a preços de 2015, passaram de R$ 394 bilhões, em 2006, para R$ 882 bilhões, em 2015, aumento de 124%. Com essas elevadas quantias retidas na Conta Única, o governo torna críveis as elevadas taxas de juros que remuneram os títulos públicos.
Nesse sentido, equilíbrio financeiro da Previdência no longo prazo também depende de que sejam superadas as enormes inconsistências do regime macroeconômico brasileiro. É preciso desatar o nó da gestão macroeconômica, se o verdadeiro objetivo for equacionar os problemas fiscais. A ideia que se disseminou no Brasil, de que ao governo só compete controlar os gastos primários, não havendo nenhum limite para os custos financeiros, deve ser revista, para não ficarmos eternamente transferindo riqueza pública para os detentores da riqueza privada.
Altair Tavares
Editor e administrador do Diário de Goiás. Repórter e comentarista de política e vários outros assuntos. Pós-graduado em Administração Estratégica de Marketing e em Cinema. Professor da área de comunicação. Para contato: [email protected] .