Esse calor tá de matar. Matar a gente e fazer a gente… deixa pra lá. Tô pra perder as estribeiras. Entro no carro e vejo de cara: 46º. Dentro do carro, lógico. Mas acha que anda diferente na rua? Não anda, e quando andamos, é derretendo os miolos. Lembro da minha vó fritando carne de porco e fazendo pamonha. Eu chegava nela com jeitinho, porque a mulher era bruta feito mula sem cabeça, e limpava a testa. Depois, dava um beijinho e uma esfregadinha de nariz e boca, só pra sentir o cheirinho dela. Ela ficava brava: não vê que eu tô suando, menino!
Eu fugia de casa… pera, nem tanto, né. Eu escapulia de casa, da vigilância da minha mãe, e corria com a meninada lá para os lados do curtume, já contei isso, e a gente caia num poço maravilhoso, de água branca, pastosa, suja, água de chuva acumulada, e a gente caía, saía, pulava de novo, uma alegria sem tamanho. Nessa época, calor não matava a gente, calor era razão de ser da meninada, da molecada, que desaparecia na ribanceira, também ia para o córrego do Dirceu, imagina se não ia, com aquela água geladinha, aquele prazer derramado, tinha que ir. Engraçado que a gente descia um morro sem fim, tomava banho e subia o morro sem fim de volta, mas não tinha calor que nos impedisse, nem sol. Sol era companheiro o dia inteiro.
E ia no Lajeado, todo mundo ia, uns oito saltimbancos, só pra ir e pra banhar onde as mulheres banhavam as roupas quando não tinha torneira na rua do patrimônio. Um amigo conta que estancava o riacho na cidade dele pra fazer represa, uma vez represei uma provisória. O que mais fiz, o que mais a gente fazia, depois e entrar no brejo, correr das cobras, gritar pros passarinhos e ver quem tinha a garganta mais aberta. Era tudo na sombra. Enquanto mais calor, mais sombra. Já entrou numa mata num dia bem quente, dos mais quentes pegando fogo, já entrou e andou quieto por tripeiros pisando em folhas secas, estalando a paz das árvores quieta, as vezes balançando, falando qualquer coisa pra sossegar o espírito nosso? Já sentiu o friozinho da mata do cerrado? Já respirou fundo depois de pisar num espinho ou chutar um toco, mas absorver tanta alegria e nem sentir dor, sentia?
As matas do nosso cerrado só nos matam de saudade, perdoem o que eu disse, mas só assim pra você entender. Nesse calor da cidade, lembrar das noites que começam embaçadas, com bafo dos diabos, e devagarinho vão adquirindo frescor enviado da lua, aquele encantamento das profundezas da escuridão, aquele rio no céu, rio da gente, cheio dos nossos sentimentos, mais as lembranças e os sonhos, esse rio infinito que escorre da gente pra dentro da gente, nesse calor daqui tudo isso embaça, mas prevalece ainda, é o calor do coração se sobressaindo e derretendo o calor desta dura e carcomida realidade de hoje.
Se não fosse o agora imediato e que me tem inescapável, eu estaria no calor dos meus tios, na cozinha, pegando cinco pães de queijo pra sair correndo em direção ao riacho, comendo tudo na pressa antes de chegar lá. Eu fazia muito era andar na rasura da Água Vermelha, aqui é ali pegando um fundira acima dos joelhos pra arrastar as pernas e mostrar a força contra a natureza oferecendo seu conforto em dia quente, de calor, porque só nesse calor a Água Vermelha deixa a gente em paz, senão é frio pra danar, é um congelar de tudo. Nos dias de congestionamento de primos na beira do riacho, a gente fazia simplesmente subir ou descer, mijar na água porque alguns metros depois tudo era água, todos diziam, e naquela temperatura como não fazer o que desse na telha? A telha segurava mais o sol de dentro que de fora.
Este calor que toma conta da gente neste exato momento, resultado não da confraternização do corpo, alma e espírito das matas e córregos, resultado do desleixo com a natureza, esse calor não tem nada, não tem fantasia que o aplaque, não tem imaginação que o amenize, não tem sentimento que o deixe na medida do suspiro de um pequi e uma moita de guariroba, este calo de hoje é calor que mata, calor capaz de cozinhar a razão, calor impossível de ser contido na sua doida desproporção com a vida, este calor é mortal, não passa, se vai embora não deixa lembrança, não deixa marcas senão a marca do fim dos tempos. Os tempos não têm mais calor para compartilhar. Os tempos que temos são de calor de matar. Se eu morrer, foi de desilusão. O calor já me matou faz tempo.
Ah, e nem falei do dia em que entrei na represa e uma cobra veio toda serelepe pro meu lado. Naquela época, acho que me salvei.
Vassil Oliveira
Jornalista. Escritor. Consultor político e de comunicação. Foi diretor de Redação na Tribuna do Planalto, editor de política em O Popular, apresentador e comentarista na Rádio Sagres 730 e presidente da agência Brasil Central (ABC), do governo de Goiás. Comandou a Comunicação de Goiânia (GO) e de Campo Grande (MS).