Era um domingo de sol, tempo bom para caminhar à tarde, horário em que as famílias levam os filhos ao parque ou à casa dos avós. Nesse dia escolhi caminhar no parque acompanhada da minha mãe e tomar um sorvetinho para arrematar.
Até o momento, ao meu ver, não era uma sorveteria de classe alta, apesar de uma mera casquinha com duas bolas sair por mais de vinte reais. Na minha cabeça, mesmo que soubesse que nem todos podem pagar vinte contos em apenas duas bolas, o valor me pareceu normal, o comum praticado naquele tipo de sorveteria de bairro mais tradicional da capital.
Como de costume, entramos, fizemos o pedido e nos sentamos para saborear, trajando nossos looks de caminhada. Até aí, coisa comum. Até que observei algo que não via há tempos. Duas ou três famílias brancas, com filhos branquinhos de cabelos loirinhos acompanhados de mulheres negras trajando uniformes.
Os pais sentados à mesa degustando seus sorvetes, enquanto as mulheres de uniformes de bichinho distraíam as crianças em uma outra parte da sorveteria. Os maiores até chegaram a sentar à mesa, mas os menores foram levados para longe, de modo a serem distraídos para não atrapalharem os pais. Cada família com dois ou três filhos.
Ao meu lado ouvia uma mãe com uma criança da mesma faixa etária da que estava no colo da babá fazendo perguntas sobre o bebê. Perguntas que geralmente unem mães: “quantos meses?”, “essa idade fica pesado, né?!”. A diferença era que quem estava respondendo era a babá, enquanto a mãe do bebê se preocupava apenas com seu sorvete, sem nem mirar os olhos no filho.
Tomamos nosso sorvete, os pais também, as crianças maiores também, mas as babás não. Elas estavam trabalhando. Num domingo. Cuidando das crianças alheias para que os pais pudessem tomar sorvete. Pais estes que não podiam cuidar dos próprios filhos em um dia de domingo de folga e tiveram que pagar alguém para segurá-los enquanto comem.
Babás que precisam cuidar de filhos de ricos, não porque elas querem, mas porque precisam do dinheiro. Não para o sorvete de duas bolas a mais de vinte reais, mas para sustentarem os próprios filhos, que provavelmente estão sem a presença das mães em um domingo de sol, e sem sorvete. Pensei logo que, para estas babás, poder estar ali sentadas tomando um sorvete com seus filhotes num domingo já seria um grande privilégio. Privilégio que os pais ricos pagam os outros para não terem que fazer.
Esperei para ver se as babás ao menos seriam agraciadas com uma casquinha. Mas, não. Elas estavam trabalhando. Esse tipo de gentileza de não conseguir comer algo gostoso na frente dos outros sem oferecer o mesmo a quem está comigo, pelo jeito, é algo que não ultrapassa a minha bolha. “Não é possível que não vão oferecer um sorvete para elas”. “Eu até seguraria meu filho para que a babá comesse”, disse minha mãe. “No mundo real não é assim”, me limitei a responder.
No meu mundo, além da gentileza de oferecer um sorvete a quem me acompanha, não teria babá trabalhando no meu dia de folga. Não teria alguém segurando meu filho para que pudesse comer em paz, como se nem o conhecesse. No meu mundo, de quem convive apenas com pessoas da minha própria classe social, e acha normal pagar vinte reais numa casquinha de sorvete, por vezes, me esqueço que existem os acima, muito acima, e os abaixo, muito abaixo de mim, e que, geralmente, o segundo trabalha para o primeiro.
É assim desde o início dos tempos. Para além da consciência de classe, que me faltou em algum momento, está o racismo, escancarado na cor da pele de quem cuida e de quem é cuidado. Isso eu notei assim que bati os olhos na babá, e na mãe – que carregava uma bolsa importada e não o filho. Uma coisa estará sempre diretamente associada a outra.