19 de novembro de 2024
Publicado em • atualizado em 21/06/2024 às 16:32

Aborto só é importante em uma ocasião 

Ao aguardar minha vez para coletar sangue na clínica, mesmo sem querer, ouço algo que me chamou muita atenção. Geralmente, me atento aos detalhes cômicos do tipo: “Está de jejum por no mínimo 8 horas? – Sim, só tomei um café preto agorinha”, mas, desta vez, algo me tocou diferente. No diálogo entre atendente e paciente ouvi um “já teve aborto?”, seguido de “só um?”. Meu cérebro deu ênfase no “só”. Como se não bastasse um para que a vida dessa mulher mudasse para sempre. 

Dias depois estoura a nova polêmica envolvendo o PL do aborto. Como uma mulher que cresceu cercada de outras mulheres, estou acostumada a ouvir histórias de amigas, familiares, conhecidas e desconhecidas que já tiveram experiência de aborto espontâneo. Em todas elas as mulheres saíram parcial ou totalmente destruídas, mas as pessoas ao redor se limitaram a dizer “foi da vontade de Deus”, “não era para ser, logo você engravida de novo”, “era só um embriãozinho”, entre outras atrocidades que as mães em luto são obrigadas a ouvir. 

Neste casos, o aborto é tratado com tanta naturalidade e necessidade de superação rápida que nem parece que houve uma perda ali. Assim como na pergunta cotidiana da atendente da clínica.  A mulher é submetida a argumentos rasos, procedimentos invasivos e dolorosos, mental e fisicamente, mas com isso ninguém parece se importar, nem mesmo os mais religiosos. 

Quanto a perda gira em torno de uma escolha as coisas mudam de configuração. Independente do tempo de gestação a tal da vida, que até então não significaria nada em outros termos, passa a ser uma dádiva divina que foi ceifada. As pessoas passam a se importar com tanta extremeza, que é cogitado até mesmo punir a mulher de uma forma mais incisiva que a um homicida. 

Se isso é mesmo tão importante, por que não cuidar da mãe que perde um filho com delicadeza e afeto? Por que naturalizar a perda a ponto de diminuir a dor de uma mãe de luto, resumindo o fato a algo cotidiano, comum e corriqueiro? Não que eu defenda o aborto. Imagino que essa seja uma questão muito profunda para que alguém seja capaz de decidir por quem carrega a vida no ventre, mas o que me choca é justamente a diferença de tratamento. 

Ao que me parece, o incômodo não é pela vida que se vai, é pelo direito de escolha da vida que fica. Como se nós, mulheres, estivéssemos fadadas a sofrer, independente de qualquer coisa. Se perdemos por consequência do destino, somos obrigadas a padecer caladas e superar com urgência, como se aquela vida não valesse de nada. Mas se resolvermos tirar, por qualquer motivo que seja, merecemos ser punidas, julgadas como assassinas.

A dualidade existe e não há lei que regulamente, não há teoria que explique. Só estando no corpo de uma mulher para entender que há espaços que doem, independente se há uma vida sendo gerada ali ou não. O medo que carregamos nesta sociedade doente é uma gestação constante, que cresce no ventre e jamais será parido.  

Luana Cardoso Mendonça

Jornalista em formação pela FIC/UFG, Bióloga graduada pelo ICB/UFG, escritora e eterna curiosa. Compartilho um pouco do mundo que eu vejo, ouço e vivo, em forma de palavras, afinal, boas histórias merecem ser contadas