Era final do dia quando recebi uma ligação da minha mãe. Em tempos de WhatsApp e mensagens instantâneas, a gente logo pensa que ligação coisa boa não é. Parece que de imediato senti a tensão do outro lado da linha, a respiração ofegante, repleta de preocupação. “Luana, seu pai sofreu um acidente”. Meu coração palpitou e logo tratou de acalmar. Ela raramente me chama pelo nome. Nessas horas, me vem uma calma surpreendente, como se meu corpo todo soubesse que dentro da minha família, o controle deve vir de mim, e assim ele faz.
Respirei e perguntei as únicas coisas que importavam naquele momento: “Ele está consciente? Foi socorrido?”. Ela me disse que sim e, nesse momento, meu papel foi de cuidar dela, antes que pudesse cuidar dele. Logo eu, que sou a ansiedade em pessoa, a preocupação materializada em um corpo, tive ele todo repleto de calma, feito mágica. Racionalmente me coloco de frente com o problema. Nesse caso, me ative em pedir que minha mãe voltasse do trabalho para casa, enquanto eu ligava para o meu pai para saber para que hospital estava sendo levado, e ao mesmo tempo, finalizava a última matéria do dia e dava conta das minhas obrigações que ficaram pelo caminho.
Como filha única de pai aventureiro e mãe ansiosa, aprendi cedo a domar meus ímpetos quando a vida me exige calma. Curiosamente ela me encontra, e meu lado racional supera qualquer emoção de desespero que possa surgir. Foi assim que já corri para hospitais de trauma por pelo menos três vezes para socorrer ou acudir meu pai ao longo dos últimos anos. Entre fraturas de punho, costelas, clavículas, pernas e braços ralados, eu consegui ser o centro, a parte que conduz e resolve. Fui o que tinha que ser, o que precisavam que eu fosse, sem que conhecesse essa habilidade. Eu mesma tenho todos os ossos do corpo inteiros e nunca sofri nenhum acidente. Rezo para que nunca me ocorra, porque nessa hora a minha maior preocupação sei que não será comigo, mas com eles.
Com o histórico de acidentes dos últimos tempos, entendi que a vida dá habilidades conforme a gente precisa. Não sou, mas me torno quando o momento me exige. É assim que pais aprendem a cuidar de filhos e que filhos aprendem a cuidar de pais. Escrevendo um livro sobre morte, ao ouvir minhas fontes me dei conta do tamanho da força necessária para lidar com uma ligação dessas e tudo que vem depois. Em meio a dor da perda, conseguir lucidez para tratar de trâmites burocráticos, assinar papéis, fazer escolhas, liberar autorizações e só depois viver o luto. É assim que funciona, o corpo em sinal de alerta se prepara para lutar com o que for preciso, para só depois relaxar e descansar.
Ainda bem que nesse dia, às 22h da noite, depois de ir buscar meu pai em um pronto-socorro, ouvir do outro lado da porta o médico colocar o ombro deslocado dele no lugar, passar na farmácia para comprar remédios e avisar a todos os envolvidos que ele estava bem, eu pude enfim, relaxar e ser apenas filha. Voltei para casa, comi a comidinha da minha mãe e senti que eu não mais precisava ser forte. Aí sim, me dei o luxo de desabar e agradecer por, mais uma vez, ter sido só um susto.