A marchinha tocando alto pelos salões nos carnavais de 1986 e 87 dava o tom do escândalo que abalava Goiânia, e assim imortalizava o caso Camaragate. Era o humor recaindo sobre uma das histórias mais controversas do universo político goiano, que “incriminava” quase todos os vereadores da época em que explodiu, no final de 1985.
Um trecho da marchinha apontava para algo assim: “17 espertalhões tirando proveito da cidade”. O tema da letra era associado a 17 vereadores suspeitos de tentarem faturar do então prefeito de Goiânia, Daniel Antônio, Cz$ 1 milhão (o Cruzado era a moeda da época), para cada um, numa negociação que não foi comprovada depois.
O povo tinha transformado em folia algo que algum tempo depois se descobriu ter surgido de uma versão falsa. Versão que causou um turbilhão em Goiânia, tratada com destaque em todos os meios de comunicação da época. Alguns até se retrataram no final dos mais de três anos em que o assunto esteve em evidência e acabou arquivado pela Justiça de Goiás.
“Fake news” da década de 1980
Guardadas bem longe as devidas proporções, mas sinalizando o valor dado para os fatos denunciados na época, o caso foi batizado de Camaragate. Uma ousada comparação com o famoso escândalo Watergate que, em 1972, derrubou um presidente nos Estados Unidos (Nixon), acusado de corrupção.
O que hoje seria chamado de “fake news” – embora tenha quase 38 anos e na época não se fazia juízo sobre essa expressão -, destruiu reputações. Como mostra essa reportagem exclusiva do Diário de Goiás, vereadores tiveram de depor em inquérito da Polícia Civil e foram à Justiça contra a versão que chamavam de mentirosa. Os acusados tiveram que enfrentar um longo período de defesa e de confronto com a opinião pública.
Acabou mesmo desmentida publicamente após muita exposição apenas em 1987. A tal negociação que foi objeto da denúncia foi negada também em juízo, e justo por quem é acusado de tê-la espalhado, Daniel Antônio. Pouco tempo depois ele sofreu intervenção e foi afastado do cargo e substituído por Joaquim Roriz. (leia entrevista com ele ao final).
Desmentido veio após o estrago feito, nacionalmente
Mas quando o desmentido chegou, já era tarde. Como nos dias atuais, a ‘estória’ virou uma verdade por muito tempo, envergonhando e prejudicando ao menos 17 dos 21 vereadores da 10ª Legislatura (1983 a 1987).
Eles foram investigados e acusados de exigirem o dinheiro em troca de aprovar quatro projetos enviados pelo prefeito para apreciação da Câmara. Os projetos eram uma alteração na Planta de Valores Imobiliários, dois criando taxas (do lixo e de iluminação pública), e o quarto para correções no ISSQN.
Almoço em churrascaria foi pontapé
Tudo começou no dia 8 de dezembro de 1985 dentro da Braseiro, uma conhecida churrascaria do Centro de Goiânia, setor onde também ficavam a Câmara Municipal e a Prefeitura, próximas uma da outra. Almoçaram juntos na churrascaria o prefeito Daniel Antônio e os vereadores Ageu Cavalcante, Eurípedes Leôncio e José Eduardo, este já falecido.
Já predominava um clima de festas de final de ano quando, no dia 22 daquele mês, outros três vereadores – Euler Ivo, Etvaldo Alves e Vieira de Melo -, ligados ao prefeito, convocaram a imprensa e acusaram os que estiveram no almoço de uma tentativa de extorsão. Diziam que Ageu, Eurípedes e José, foram porta-vozes dos demais.
Acabaram envolvendo 17 parlamentares. Na versão que teria vindo do prefeito, os colegas afirmavam que, ou Daniel pagava os Cz$ 17 milhões, ou seus projetos não seriam aprovados. A denúncia caiu como bomba nos meios de comunicação.
A imprensa foi atrás da suposta chantagem. No dia 23 de dezembro, foi a vez do próprio prefeito Daniel Antônio conceder entrevista declarando que fora vítima da tentativa de extorsão.
Mas, na versão dos vereadores que estiveram na churrascaria, não houve pedido de dinheiro algum. Um dos acusados, Ageu Cavalcante afirma hoje que os argumentos dos parlamentares que eram alvo das acusações, não eram ouvidos. “Fizeram uma ata arbitrária e deu no que deu”.
Repercussão nacional
Mesmo sendo véspera de Natal, o assunto tomava corpo com novidades diárias e repercutia nacionalmente. Afinal, não era comum quase todos os parlamentares de uma legislatura de uma capital brasileira ficarem sujeitos a uma perda de mandato. No dia 24 de dezembro, Etvaldo Alves divulga que havia uma fita gravada que comprovaria pedidos de dinheiro.
Nos últimos dias de 1985, o jornal Diário da Manhã mostra que a Polícia Civil instaurou inquérito tendo à frente os delegados Getúlio Garcia e José Francisco. Em janeiro de 1986, os vereadores investigados processam Daniel Antônio por calúnia.
O inquérito contra os parlamentares vai ao Judiciário, e alguns dos 17 vão saindo da condição de suspeitos. Permanecem 11, entretanto, conforme cópia de parte do processo ao qual a reportagem teve acesso.
Apagamento
Presente na memória de muitos políticos goianos, por outro lado, o assunto sofreu um grande apagamento na internet. Pouco se encontra disponível nas pesquisas a respeito. O acervo do jornal Diário da Manhã disponibilizado através da Hemeroteca do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, entretanto, retrata vários episódios do escândalo e uma cronologia de algumas etapas.
Mostra, por exemplo, que no dia 1° de janeiro de 1987, em entrevista exclusiva ao DM, Daniel Antônio continuava atiçando a opinião pública contra os vereadores. “Propina eu nunca vou dar”, dizia a manchete da capa na primeira edição do ano. Ele desafiava o grupo a processá-lo, o que já estava acontecendo.
E continuou a agitação por dias seguidas, como mostra o acervo do jornal. Por exemplo, enviou carta ao então ministro da Agricultura, o goiano Iris Rezende, e até para o presidente da República, José Sarney relatando sua versão dos fatos.
Reviravolta
Poucos meses após o governador Henrique Santillo assumir à frente do Estado no início de 1987, o Camaragate continuava em ebulição total, como mostram as reportagens do DM. O assunto incomodava também o governador pela sensação de impunidade que pairava.
Contudo, surpreendendo todos, no dia 30 de junho daquele ano, o prefeito Daniel Antônio procura o Cartório Cândido de Oliveira e registra uma declaração em que nega que tenha havido tentativa de extorsão.
Na reviravolta, chega a dizer que “nem mesmo por brincadeira” aquilo [o pedido de propina] havia ocorrido. Ao longo do tempo passa a atribuir a pressões externas no calor do embate político eleitoral e à “campanha da imprensa contra ele e seus atos”.
Em 6 de julho, já perante um juiz, Daniel Antônio substituiu a chantagem por meros pedidos de apoio dos vereados a demandas típicas entre Legislativo e Executivo, como cargos de assessoramento, obras e melhorias em bairros. A declaração foi fundamental para o fim do processo judicial.
Outro lado
Os denunciantes que contribuíram divulgando a falsa versão de tentativa de extorsão não foram encontrados pela reportagem do DG. Euler Ivo não respondeu aos pedidos de entrevista, Vieira de Melo mora atualmente no Tocantins e seu contato não foi localizado, assim como o de Etvaldo Alves.
Confira entrevista exclusiva de Daniel Antônio ao final desta reportagem!
Morte de vice e intervenção
No intervalo de tempo até que Daniel Antônio fosse a público desmentir a história, algumas situações surpreendentes tinham transcorrido. Uma delas foi a morte do vice-prefeito de Goiânia, Pedro Ludovico Stivallet Teixeira, neto de Pedro Ludovico e filho de Mauro Borges. Ele suicidou em 16 de fevereiro de 1987, vítima de profunda depressão.
Assim, naquele início de 1987, Goiânia convivia com um prefeito temperamental, controverso e investigado, sem um vice-prefeito e com a Câmara em situação delicada. Frente a isso, em 23 de março, o então governador Henrique Santillo, assinou um decreto afastando Daniel Antônio e nomeando como interventor Joaquim Roriz.
Santillo se baseou em investigações de uma Comissão Especial de Inquérito da Câmara apontando improbidade administrativa e corrupção, mas que mesmo assim foi arquivada “em prejuízo dos superiores interesses da administração pública municipal”, diz o decreto.
“Ponte acarpetada” substituiu escândalo na Câmara
Para agravar, Daniel havia perdido outro braço forte na prefeitura, o secretário Paulo de Jesus (Hoje, no PSDB). O importante aliado pediu demissão em meio à confusão com a Câmara e a outros escândalos que se prenunciavam.
Na época, pesava contra Daniel Antônio a contratação de uma empresa por licitação para a construir a ponte da Rua 90, no Setor Sul. A habilitação técnica da vencedora, na ocasião, era para lidar com carpetes e artigos de decoração.
O escândalo da “ponte acarpetada” acabou substituindo o Camaragate rapidamente nas rodas de conversa e manchetes dos jornais, ainda que seja outro tema pouco disseminado no mundo virtual. Fica restrito aos arquivos privados ou de órgãos públicos que não digitalizaram tudo.
Daniel voltou à prefeitura por decisão judicial quando o mandato já estava quase no fim. Cerca de uma década depois voltou à vida política como vereador e deputado estadual.
Justiça inocentou os 17
Enquanto isso, inocentados perante a Justiça em 4 de dezembro de 1987, os vereadores escaparam também de punição partidária. Em 31 de dezembro daquele ano o Jornal de Brasília noticiava que também o Diretório do PMDB havia absolvido cinco do grupo que correram até o risco de expulsão da legenda.
O arquivamento do processo na Justiça foi em dezembro de 1989. No dia 31 daquele mês, o jornal O Popular relembrou o escândalo e o sensacionalismo com que as denúncias do prefeito tinham sido tratadas.
“Um ano novo sem Camaragate” era o título de um texto nas páginas de política. O jornal indicava que o escândalo ficara no passado. Mas alertava que tinha aberto feridas na vida política do município, “instalado a dor moral nas famílias dos acusados e enlameado a honra de pessoas que, com sacrifício, construíram um bom nome na comunidade”.
Sequelas e mágoas
“Deixou muitas sequelas, muitas mágoas, muitas feridas, confirma o ex-vereador Ageu Cavalcante em entrevista ao editor-chefe do Diário de Goiás, Altair Tavares.
Ele guarda reportagens gravadas e publicações impressas sobre o processo e conta que superou politicamente o assunto. “Ficou no passado”. Ageu seguiu na vida pública, inclusive como Secretário do Trabalho, diretor do Dieese, entre outros.
Só não esqueceu dos embaraços do Camaragate. Tanto que se lembrou de um artigo do jornalista Luiz Carlos Bordoni se retratando pelas notícias que enfatizavam a denúncia grave apresentada pelo prefeito.
Linchamento moral aponta Bordoni
Ao DG, também Bordoni definiu como um linchamento moral dos envolvidos “promovido por Daniel Antônio”. Foi uma situação lamentável, segundo ele, porque toda a imprensa acreditou na versão e as críticas foram contundentes.
Um dos apresentadores do popular programa Goiânia Urgente Bordoni afirma que até hoje fica constrangido e que sua “dor volta” ao relembrar o assunto. “Fiquei muito revoltado, envergonhado e indignado porque fomos usados. Por isso escrevi alguns artigos isentando esses vereadores”, salienta.
Em um desses artigos, publicado no Jornal da Segunda em agosto de 1987, ele perguntava: “Como reabilitar a imagem dos vereadores vítimas de uma armadilha chamada Camaragate? Pasmem os senhores, é verdade, o prefeito afastado Daniel Antônio tramou sozinho a degola do Poder Legislativo”.
Segundo o jornalista, os filhos de alguns parlamentares viraram vítimas de chacota na escola. “Fiquei muito triste, mas fiz o que tinha de fazer, me desculpar e reconhecer que pisamos na bola. Diferente da Escola Base, e tantos outros que não reparam [os erros] e permanecem como donos da verdade sem se importar com o que resultou tudo”. Ele se referia ao grande erro de investigação policial e de Jornalismo que expôs uma família em um caso de abuso sexual em uma escola paulista. Mas um abuso que não existiu.
Temperamento de Daniel gerou o escândalo, diz Macalé
Em entrevista ao DG, o ex-vereador Sebastião Macalé lembra ainda hoje com tristeza a perseguição que os acusados no Camagate sofreram em Goiânia. Macalé atribuiu ao temperamento de Daniel Antônio todo o imbróglio gerado com a denúncia.
Para exemplificar os problemas gerados por este temperamento, ele citou três casos emblemáticos lembrados por poucos, mas dizem muito sobre as reações do ex-prefeito.
“Certa vez, quando era vereador, Daniel Antônio jogou um microfone na direção do então presidente da Câmara. Em outra quebrou uma cadeira que atirou contra outro vereador. Quando já era prefeito, assisti um dia em que mandou dezenas de pessoas que buscavam audiência sobre assentamento, entrarem no gabinete de uma vez. Como ninguém o escutava, simplesmente o prefeito subiu em cima da mesa da sua própria sala e disparou a gritar. Ele ainda deu a mão para a gente também subir, mas eu não faria aquilo”, conta ex-vereador Sebastião Macalé.
Macalé disse que se dava muito bem com Daniel Antônio e por isso estranhou a denúncia no início. Com o andamento, viu que seu nome e de outros simplesmente foram excluídos. Para ele, faltou cautela de quem levou a sério a denúncia contra os 17 parlamentares.
Quem eram os vereadores da 10ª Legislatura
Ageu Cavalcante
Benvindo Lopo
Daniel Borges
Domingos Cavalcante
Etvaldo Alves
Euler Ivo
Eurípedes Leôncio
George Hidasi
Geraldo Alves de Souza
José Carlos Debrey
José Eduardo Nascimento
José Luciano da Fonseca
João Machado de Lima
João Silva Neto
Conceição Gayer
Maria Dagmar
Paulo Sebastião Ribeiro
Raimundo Nonato Mota
Sebastião Macalé
Valdir do Prado
Vieira de Melo
Daniel refaz denúncia que desmentiu
Mesmo desmentindo a história na época, desmentido este que tomou as capas de jornais e foi destaque nos meios de comunicação, em entrevista exclusiva ao Diário de Goiás no início de junho, Daniel Antônio disse que não se lembrava de ter voltado atrás em declaração pública e em juízo. “Não me lembro desses detalhes”, afirmou.
Com a entrevista ao DG, ele quebrou o silêncio sobre o assunto que vinha evitando há mais de duas décadas. “Não gosto de falar sobre isso”.
Durante a entrevista, que foi gravada pela reportagem, de forma surpreendente o ex-prefeito manteve a história de que foi pressionado a dar dinheiro, mas alegou que isso aconteceu porque “vinha sendo perseguido”.
Perguntado quem o perseguia, citou vários nomes, os principais já são falecidos e por isso não serão citados pelo jornal. Também, especialmente porque as pessoas e os motivos dessa alegação não ficaram objetivamente claros na entrevista do ex-prefeito.
“Havia um esquema para me atingir”, disse, reiteradas vezes, sem responder como funcionava e o objetivo desse esquema.
“Não tinha resiliência”, afirma Daniel Antônio
Sobre sua índole, Daniel Antônio assumiu que possui gênio difícil. “Eu sempre fui de um jeito extremamente temperamental, extremamente. Eu não tinha resiliência necessária pra suportar ninguém vir pra cima de mim sem que eu não partisse pra cima dele”, afirmou.
A reportagem também perguntou se o ex-prefeito considerava o episódio do Camaragate um exemplo de fake news. Ele discordou.
Ex-prefeito diz que vai virar poeta
Advogado e professor, hoje aposentado, com 83 anos, Daniel Antônio reside na região da Vila dos Alpes. Ele finalizou a entrevista enviando uma estrofe gravada de um poema falando sobre “pedras e flores”. Segundo o polêmico ex-prefeito, faz parte de um acervo que espera publicar em um livro de poesias.
[Até o] crime é uma arte, é um poema, entende? Se você quiser transformar tudo em poesia, até o primeiro passo que você dá pela manhã, é uma forma poética de você seguir sua vida, viu? É isso aí”, encerrou.
“Não fui eu que inventei. Não fui eu que arranjei essa história. Ela chegou em mim e depois eu tentei contornar e amenizar e fugir do assunto, como até hoje eu tento fugir disso, sabe?”
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