Um decreto do presidente Jair Bolsonaro publicado no último dia 12 altera as regras de proteção das cavernas brasileiras e, segundo ambientalistas, pode levar à destruição de centenas de grutas em todo o país e de milhares de espécies que vivem nesses ambientes. Especialistas apontam também o risco de novas epidemias e pandemias como a do coronavírus, com o desabrigo de populações de morcegos que vivem nesses ambientes.
A nova norma autoriza intervenções em qualquer tipo de caverna, inclusive as de relevância máxima, para obras e empreendimentos considerados de utilidade pública. O presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo de Quirópteros (SBEQ), Enrico Bernard, afirma que o decreto foi ‘desenhado’ para beneficiar as mineradoras, setor que apoia politicamente Bolsonaro. O Ministério do Meio Ambiente disse que a medida vai gerar emprego e renda, possibilitando investimentos em projetos de rodovias, ferrovias e mineração, entre outros.
No Brasil, as cavernas em áreas passíveis de licenciamento ambiental, como as de lavra de minerais, devem passar por um processo de classificação de relevância, nas classes máxima, alta, média e baixa relevância. Uma legislação de 1990, atualizada em 2009, impedia qualquer intervenção em grutas de relevância máxima. Conforme a SBEQ, de forma unilateral, o decreto alterou esse entendimento, permitindo que os órgãos de licenciamento autorizem intervenções nessas formações. “Milhares de espécies que vivem em cavernas, inclusive espécies criticamente ameaçadas de extinção e hiperendêmicas (com ocorrência em uma única caverna, por exemplo) estão em risco mais elevado”, diz a nota.
Professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e especialista em morcegos, Bernard lembra que hoje essas cavernas têm um cinturão de proteção de 250 metros ao seu redor que não pode ser alterado. “Muitas das cavernas protegidas estão em áreas de lavra e são verdadeiras ilhas verdes no meio do terreno lavrado. Com a mudança, as mineradoras já podem pedir a revisão do grau de relevância. Vai chover pedido de revisão. Hoje, os alvos serão as cavernas que estão em área passível de mineração. O próximo passo será entrar em áreas de preservação ambiental”, alertou.
Para obter a licença ambiental, o empreendedor precisa demonstrar, por exemplo, que a intervenção decorre de atividade de utilidade pública. Para o especialista, isso deixa uma margem perigosa de interpretação que pode causar uma exploração desenfreada das cavernas. Atualmente, são considerados de utilidade pública empreendimentos como rodovias, saneamento, energia e alguns segmentos da mineração.
Doenças e pandemia
Para o professor Rodrigo Lopes Ferreira, coordenador do Centro de Estudos de Biologia Subterrânea da Universidade Federal de Lavras (UFLA), o decreto representa um retrocesso sem precedentes na história da legislação espeleológica brasileira. “A possibilidade de suprimir cavernas de máxima relevância representa aval do governo brasileiro para extinguir espécies raras. A partir do momento em que se destroem duas dessas cavernas, nada garante que uma espécie estritamente subterrânea considerada rara vai permanecer, pois ela pode depender dessas populações para se perpetuar.”
Segundo ele, a perda de serviços ecossistêmicos gerados por morcegos, por exemplo, agrava os riscos de novas doenças e pandemias. “Quanto mais caverna você destrói, mais você desabriga morcegos que são importantes reservatórios de vários tipos de vírus, entre eles os coronavírus. Quando se desabriga essa população silvestre, ela pode buscar áreas urbanas e estará expondo a população brasileira a novos patógenos, aumentando a possibilidade novas epidemias e pandemias. É uma canetada muito perigosa. A boiada agora entrou no meio subterrâneo e está passando em cima das nossas cavernas”, disse.
Sem convite
Em nota pública, a Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE) manifestou “total repúdio” ao decreto que coloca “as cavernas em perigo” e lamentou que o governo não tenha ouvido a comunidade espeleológica, pesquisadores e instituições científicas que estudam o tema. Conforme Allan Calux, representante da SBE, a tentativa de mudança no decreto vem desde 2019 e de forma unilateral. “A legislação científica precisa evoluir, já que os estudos sobre as cavernas evoluíram. Hoje tem coisa que a gente nem sabia que existia. O que esperávamos é que houvesse um trabalho conjunto, mas a partir de novembro do ano passado, os ministérios começaram a fazer reuniões recorrentes sobre esse tema e a gente, a sociedade civil, sequer foi informada.”
Segundo o especialista, entre 5 de novembro e 9 de dezembro de 2021 foram realizadas oito reuniões para formatar as novas regras com participação dos ministérios do Meio Ambiente, das Minas e Energia e da Infraestrutura, além de integrantes das procuradorias jurídicas. Em algumas delas, houve participação de representantes do setor de mineração, mas espeleologistas e ambientalistas não foram convocados. No dia 21 de dezembro, em nome da SBE, Calux enviou ofício ao ministro do Meio Ambiente manifestando interesse em participar do processo de elaboração das novas normas. Não houve retorno.
Segundo ele, o decreto foi gestado à revelia da sociedade brasileira. “A gente poderia contribuir com o know how de mais de 30 anos que temos sobre cavidades subterrâneas. Caverna de máxima relevância não pode ser impactada de forma alguma. O que eles fizeram foi permitir que elas sejam impactadas mediante compensação. Esse decreto vai demandar novas instruções normativas que, antes, eram incumbência do Ministério do Meio Ambiente e do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Agora, elas vão ser elaboradas por um comitê interministerial que envolve outros ministérios.”
O decreto estabelece um prazo de 90 dias para que os ministérios do Meio Ambiente, das Minas e Energia e da Infraestrutura definam a metodologia para a nova classificação do grau de relevância das cavidades naturais, podendo ouvir outros órgãos do governo ligados ao tema. Além do presidente Bolsonaro, assinam o documento o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, e a secretária executiva do Ministério de Minas e Energia, Marisete Fátima Dadald Pereira.
Anulação
O Observatório Espeleológico publicou nota apontando a “temeridade” do decreto e informou o fato à Coordenadoria de Justiça de Proteção do Patrimônio Cultural do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). A assessoria do MP mineiro informou que o caso será analisado. Uma petição on-line direcionada ao Congresso Nacional pede a abertura de ação de inconstitucionalidade contra o decreto presidencial.
Na tarde de quinta-feira, 13, o senador Fabiano Contarato (PT-ES) apresentou projeto de decreto legislativo para anular o decreto de Jair Bolsonaro. De acordo com o parlamentar, o presidente exorbitou em suas competências ao editar a norma. “A Constituição Federal determina que, na definição dos espaços territoriais e seus componentes – dentre os quais as cavernas certamente se encontram – a serem protegidos pelo Poder Público, a alteração e a supressão de medidas protetivas somente podem ser realizadas por meio de lei.”
O que diz o governo
O Ministério do Meio Ambiente informou em nota que o decreto publicado pelo governo “disciplina a proteção das cavidades naturais subterrâneas e assegura que a exploração só pode ocorrer desde que haja proteção equivalente, chegando a exigir compensação em dobro”. Ainda segundo a nota, a legislação mantém a necessidade de licenciamento prévio em todos os empreendimentos e a proibição de supressão de cavidades naturais com material de destacada relevância histórico-cultural e religiosa e amplia as possibilidades de compensação ambiental, “de forma a permitir uma aplicação mais eficiente dos recursos destinados à preservação ambiental”.
Segundo a pasta, o decreto cria a possibilidade de investimentos em projetos estruturantes fundamentais, geradores de emprego e renda, como rodovias, ferrovias, mineradoras, linhas de transmissão e energias renováveis, garantindo, ao mesmo tempo, a proteção das cavidades. “O objetivo do Governo Federal é trazer segurança jurídica para ambientes favoráveis ao desenvolvimento econômico, mantendo a preservação do meio ambiente por meio de uma legislação considerada entre as mais protetivas do mundo”, disse.
Por José Maria Tomazela, Estadão Conteúdo
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