O futuro do dinheiro começou a ser construído no Brasil. O Banco Central divulgou nesta segunda-feira, 24, as diretrizes gerais para o lançamento nos próximos anos do “real digital”, uma moeda digital que promete baratear operações de pagamento e ampliar as possibilidades de transações, inclusive no varejo. O BC planeja ouvir sugestões da sociedade nos próximos meses e lançar a nova moeda em dois ou três anos.
O real digital surge como uma espécie de concorrente para as criptomoedas, como o bitcoin. A diferença é que ele será uma divisa com lastro na própria moeda – ou seja, o real – enquanto o bitcoin não possui nenhum lastro.
Outra diferença é que o real digital será necessariamente custodiado por instituições financeiras. Em outras palavras, o saldo estará sempre dentro de um banco e as transações financeiras ocorrerão por intermédio do sistema bancário.
Não será possível fazer transferências e pagamentos diretamente entre duas pessoas, sem passar pelo sistema bancário, como ocorre hoje com criptomoedas. Com isso, o BC busca reduzir as chances de o real digital ser utilizado em atividades criminosas, como lavagem de dinheiro e remessas ilegais.
Segundo o coordenador dos trabalhos sobre a moeda digital do Banco Central, Fabio Araujo, como o real digital será emitido pelo próprio BC, a divisa carregará o risco soberano do País – na prática, o risco de o País quebrar, algo considerado baixo em relação a outros riscos de mercado. “A custódia da moeda digital ficaria com os agentes do sistema financeiro, mas essa moeda seria garantida pelo BC”, explicou.
A dinâmica de custódia marca ainda uma diferença do real digital em relação ao real convencional que, hoje, está depositado numa conta corrente, por exemplo. Atualmente, um banco pode utilizar parte dos recursos de uma conta corrente para realizar outras operações, como fornecer crédito para outra pessoa ou empresa. Por isso, o risco do real convencional depositado na conta de um cliente está também ligado à possibilidade de quebra do banco. No caso do real digital, o risco será apenas o soberano.
Estas e outras questões começaram a ser discutidas pelo BC em agosto do ano passado, quando a autarquia montou um grupo de estudos específico para a moeda digital. Na manhã desta segunda-feira, o órgão divulgou as diretrizes gerais para a moeda e indicou que pretende discutir a questão com a sociedade nos próximos meses, por meio de seminários.
A princípio, a moeda digital se coloca como mais um passo do BC na construção do sistema financeiro do futuro. Atualmente, os brasileiros já possuem uma série de recursos digitais para movimentar dinheiro. É possível utilizar o Pix – o sistema de pagamentos instantâneos – para fazer transferências e pagamentos, por exemplo, ou cartões de débito e de crédito.
A diferença da moeda digital é que ela será o meio de pagamento em si, e não um sistema. “O Pix é um sistema de pagamentos. Uma moeda digital seria um meio de pagamento, como o real”, esclareceu Araujo. “É preciso ter um meio de pagamento para operar um sistema.”
De acordo com Araujo, a intenção é que os brasileiros possam escolher como manter os valores em seus bancos: se em real convencional ou se em real digital. “Seria uma escolha do usuário. O real digital será interoperável com os sistemas existentes, possibilitando o uso para fazer um Pix ou uma TED, por exemplo”, completou.
Valores
Como a fase atual ainda é de desenvolvimento, ainda não está definido se R$ 1 da moeda digital valerá exatamente R$ 1 da divisa convencional. Mas o BC pretende permitir que a moeda digital seja transformada em moeda convencional se o usuário quiser – ou seja, a intenção é de que seja possível para uma pessoa, por exemplo, sacar em notas de reais parte do seu saldo de reais digitais que está no banco.
Existe a possibilidade de, em um primeiro momento, o real digital valer exatamente a mesma coisa que o real convencional. Posteriormente, o valor poderia divergir. “A questão sobre cotação do real digital em relação ao real convencional ainda não foi definida”, disse Araujo. “A questão é muito controversa. Preferencialmente, os bancos centrais internacionais estão adotando a postura de a cotação ser equivalente. Mas temos questões de mercado que estão envolvidas”, lembrou.
Araujo citou o fato de o real convencional prestar um tipo de serviço, inclusive por meio de cédulas de papel, enquanto o real digital estar voltado para funções diferentes. “A princípio, como o serviço é diferente, você poderia ter um valor diferente. Como temos forças de mercado que podem atuar aí, não sabemos se isso a paridade será garantido.”
Funcionalidades
O Brasil não é o único país que está estudando o lançamento de uma moeda digital com lastro em sua divisa oficial. Além dele, países como Bahamas, China, Estados Unidos, Coréia do Sul e Suécia possuem projetos em andamento. As Bahamas foram o primeiro país a lançar uma moeda digital, o sand dollar, em outubro do ano passado.
Por trás desta corrida está a visão de que o sistema financeiro do futuro será mais digital e menos físico, o que trará impactos para as atividades econômicas. Na visão do BC, o real digital permitirá o desenvolvimento de novas tecnologias e funcionalidades.
Araújo citou a possibilidade de uso da moeda digital numa “geladeira do futuro”. Segundo ele, será possível desenvolver um eletrodoméstico que monitore a quantidade de comida disponível. Caso algum produto acabe, a geladeira poderá, em contato com o supermercado, fazer automaticamente a compra para reposição, pagando por meio do real digital. Esta geladeira estaria dentro do contexto da “internet das coisas” – o desenvolvimento de produtos inteligentes ligados à rede de computadores.
Outro exemplo é o uso da moeda digital em supermercados. “Você entraria com o dispositivo no supermercado e ele se conectaria na rede. Seria possível pegar coisas no supermercado, colocar no carrinho e sair”, afirmou. O pagamento por meio do real digital seria automático.
Outra expectativa do BC é de que o real digital também possa baratear serviços dentro do próprio sistema financeiro. Entre eles, está a transferência de recursos para o exterior.
“O real digital sem dúvida facilitaria as transferências internacionais e baratearia os custos. Os últimos quilômetros dessas transações são muito custosos”, disse Araujo. “Mas isso depende da aprovação de mudanças na legislação cambial e de acordos com os outros países envolvidos.”
De acordo com Araujo, o BC espera que o real digital fomente novos modelos de negócios. “Não esperamos que o real digital acabe com o real físico ou com os depósitos bancários. Será mais uma opção para os usuários. Esperamos que a moeda digital fomente novos serviços que já nasçam integrados ao ambiente digital.” (Por Fabrício de Castro e Eduardo Rodrigues/Estadão Conteúdo)
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