23 de dezembro de 2024
Cidades

Carta Maior: As redes, as ruas e os riscos da incerteza

Análise originalmente publicada no site Carta Maior e disponível para leitura, na íntegra, clicando aqui.

Há o imenso risco do movimento virar as costas para o fato de que o “gigante” não acordou somente agora e que esse país já foi palco de muitas lutas antes da internet. Afinal, foi gente muito desperta que lutou para construir nossa imperfeita democracia. Não saber distinguir verdadeiros adversários e ignorar que a longa luta por justiça, liberdade e democracia não começa agora, poderá levar os atuais movimentos a uma profunda derrota. Por Vinicius Wu.
Vinicius Wu (*)

 

Não resta dúvida de que a grande novidade das manifestações dos últimos dias é seu caráter descentralizado, atomizado, sua organização em rede e sua disseminação horizontal. E não se deve criar falsos fantasmas: não houve partidos e nem grupos “subversivos” na origem do movimento. A ultraesquerda e a oposição neoliberal podem até tentar, mas estão longe de “dirigir” as mobilizações, muito embora haja, sim, uma disputa aberta sobre o significado, o sentido e os eventuais desdobramentos políticos dos protestos.

A direita neoliberal do país pretende instrumentalizar os manifestantes. Querem canalizar as mobilizações de acordo com seus interesses, desgastar o campo progressista e reverter as conquistas populares dos últimos anos. A esquerda brasileira, por sua vez, precisa se convencer de que a pratica da ação em rede chegou ao país e compreender esse processo será decisivo para a luta política no próximo período.

Já ouvi muita gente desdenhar da capacidade de mobilização através das redes sociais no Brasil. Muitos diziam, categoricamente, que convocações pela Web jamais se tornariam ação concreta nas ruas e que, por aqui, dificilmente haveria algo semelhante ao ocorrido em Madri, Londres e outras tantas cidades em 2011. Talvez seja o momento de revisarmos algumas certezas e buscarmos uma leitura mais precisa do que se passa no mundo.

As ações em curso não se enquadram nas categorias tradicionais de análise dos movimentos sociais e novidade é, de fato, a palavra que melhor caracteriza os meios de difusão dos protestos em rede. Em São Paulo e no Rio, milhares de jovens advogados se mobilizaram pela internet dispondo-se a providenciar pedidos de habeas corpus aos manifestantes que, eventualmente, fossem presos. Estudantes de enfermagem e medicina de universidades paulistas se propuseram a organizar postos voluntários de cuidados médicos para atender os feridos dos próximos atos.

Em Dublin, na Irlanda, cerca de 2.000 pessoas foram a um dos principais pontos turísticos da cidade – o Spire, situado na região central da cidade – para um ato em apoio aos manifestantes brasileiros, causando perplexidade nas forças policiais locais. Atos semelhantes foram convocados para cidades como Paris, Valencia, Madri, Londres, Berlim, Vancouver, Buenos Aires e dezenas de outras pelo mundo.

Mas isso não é tudo. Hackers atuam de diversas partes do planeta postando mensagens de apoio ao movimento na rede e, inclusive, derrubando a segurança de diversos portais de noticias. Vídeos se proliferam na rede denunciando a violência policial e já há até um guia transnacional orientando “cinegrafistas amadores” a agirem com segurança e eficiência. Um outro vídeo, com centenas de milhares de acessos, convocava as manifestações da última segunda. Aos atos realizados seguem-se um mar de postagens com fotos, vídeos, comentários e chamados a novas mobilizações.

Do ponto de vista da forma e da metodologia de mobilização há uma identidade inquestionável com os eventos ocorridos no norte da África e na Europa ocidental desde 2011. Trata-se de um movimento global relacionado à crise do paradigma neoliberal. E claro, há questões locais, objetivas, que têm a ver com as virtudes e os limites do processo de redução das desigualdades sociais experimentado pelo país nos últimos anos. Cartazes – muitos dos quais feitos à mão – apresentam demandas sociais represadas e anseios por novas conquistas. Estamos diante de um certo “mal estar” da revolução democrática, responsável pela massiva, porém incompleta, inclusão social em curso no Brasil e devemos reconhecer que a esquerda que governa o país há dez anos ainda não foi capaz de renovar sua agenda politica para enfrentar os próximos dez.

E não há como negar que estamos diante da superação de uma letargia política através do qual o pensamento conservador avançou enormemente no país. Assistimos, muito recentemente, a inúmeras movimentações de caráter conservador, que pareciam promover a aniquilação de toda e qualquer pretensão progressista na sociedade brasileira.

Mobilizações pela criminalização absoluta do aborto e em favor da redução da maioridade penal reforçaram a onda conservadora em curso desde as eleições de 2010. A escolha de Marco Feliciano para presidir a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, as agressões e insultos permanentes de supostos humoristas e formadores de opinião às mulheres e aos homossexuais em pleno horário nobre da TV aberta, sendo recebidas com uma naturalidade perturbadora, são apenas alguns dos indícios de que algo não ia bem na cabeça e na cultura política dos brasileiros. Em parcela expressiva dos jovens mobilizados há um certo grito de revolta contra essa situação.

Mas é preciso também atentar para os limites e os impasses que podem retirar a legitimidade dos protestos e distorcê-los profundamente. A ausência de direção política e de objetivos claros afirmam positivamente sua autonomia, porém, os tornam sujeitos a todo tipo de manipulação – e setores da velha mídia e a direita neoliberal o têm buscado insistentemente. A ação de setores, que beiram a marginalidade em suas ações, também é um risco capaz de distanciar o movimento de amplas parcelas da sociedade.

Também há o imenso risco do movimento virar as costas para o fato de que o “gigante” não acordou somente agora e que esse país já foi palco de muitas lutas antes da internet. Afinal, foi gente muito desperta – e atenta – que lutou bravamente para construir nossa imperfeita democracia. Não saber distinguir verdadeiros adversários e ignorar que a longa luta por justiça, liberdade e democracia não começa agora, poderá levar os atuais movimentos a uma profunda derrota politica, além de transmitirem involuntariamente um atestado de veracidade à falaciosa tese das elites sobre a suposta passividade do povo brasileiro.

Pode ser que o movimento ganhe vitalidade ou se esvazie nas próximas semanas. Talvez tudo seja relativizado com o passar dos dias e que não haja nenhuma consequência mais drástica sobre o atual sistema político brasileiro. Ou não. Mas o que ocorre atualmente com os jovens do país nos estimula a pensar. E mais importante do que especular sobre o que virá é compreender o que se passou nos últimos dias. Estamos diante de um novo tipo de ativismo político, característico da sociedade em rede do século XXI. Novos sujeitos políticos e sociais – incluindo a chamada “nova classe média” – irromperam repentinamente na cena politica nacional. E o Brasil já não é mais o mesmo.

(*) Secretário-geral do governo do Estado do Rio Grande do Sul e coordenador do Gabinete Digital


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