Com dores no peito, Neivaldo Zovico recorreu ao serviço de emergência de um hospital público de São Paulo. Saiu de lá com a receita para dores musculares e um profundo desgosto. Surdo, ele não conseguia transmitir seus anseios.
“Fiquei nervoso demais, ninguém entendia nada, e teve um enfermeiro que riu na minha cara, imitando meus gestos”, disse Zovico, diretor regional da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis), que tentava se expressar por Libras, a Língua Brasileira de Sinais.
A professora Nídia Limeira de Sá teve que contratar uma intérprete para que sua filha, surda, pudesse desenvolver o conteúdo pedagógico. Mesmo assim, Nívia não se acostumou com a escola, no Rio de Janeiro. “Ela se sentia diferente de todos, um peixe fora d’água.”
Neivaldo, a filha de Nídia e os mais de 9,2 milhões de brasileiros portadores de deficiência auditiva, segundo Censo do IBGE, se encheram de esperanças com o discurso em Libras de Michelle Bolsonaro.
Durante a sua candidatura à Presidência, Jair Bolsonaro fez uma série de promessas para os portadores de deficiências auditivas. Em outubro, firmou compromisso com a comunidade surda e elencou 17 medidas. Entre elas, a de incluir libras como disciplina obrigatória na educação básica e nos cursos de saúde.
No entanto, diante do cenário, será preciso investir em escolas bilíngues por todo o Brasil, ampliar a oferta para formação de professores e melhorar o nível dos cursos de tradutores.
Reconhecida como língua brasileira desde 2002, as leis que regulamentam Libras são ignoradas pelo próprio governo. Diante do desprezo do poder público nesse período, coube a ONGs, como a Feneis, e entidades filantrópicas debruçarem sobre o assunto.
As igrejas, principalmente as evangélicas, oferecem cursos para voluntários. Na maioria, o fiel aprende gratuitamente e, em troca, tem a missão de ser intérprete durante os serviços religiosos. Foi assim que Michelle aprendeu Libras na igreja Batista Atitude e atua como intérprete nos cultos na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.
Em Curitiba, o padre Wilson Czaia ministra todos os sábados, desde 1999, uma missa em Libras e reúne até 300 fieis. “Ouvintes também vão à missa, mas a maioria é de surdos. É a oportunidade que eles têm de entender completamente tudo o que acontece na missa”, conta Czaia, da paróquia Pessoal Nossa Senhora da Ternura. “Durante a semana atendo aos surdos para confissão, já fiz casamento e batismo.”
No dia seguinte ao discurso de Michelle, Bolsonaro decretou a criação da Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação (Semesp), subordinado ao Ministério da Educação (MEC) e, por indicação da primeira-dama, convidou Karin Strobel, professora de letras Libras e pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina, para ser a diretora de Políticas de Educação Bilíngue de Surdos.
Autora do livro “As Imagens do Outro Sobre a Cultura Surda”, Karin ficou surda com quatro anos de vida e durante a campanha eleitoral fez uma assessoria informal para Bolsonaro. Ela, inclusive, participa de vídeos do então candidato destinado aos surdos.
“A Michelle havia feito um compromisso na campanha de colocar representantes surdos em Brasília. Eu e meu filho, que também é surdo, choramos de emoção durante o seu discurso da posse. O meu sonho é implantar escolas bilíngues em todos os lugares”, conta Karin.
A criação da Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação, através do decreto 9.465 publicado no Diário Oficial da União no último dia 2, resultou na extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), inaugurada em 2004 com o objetivo de atender aos grupos excluídos da escolarização, como os indígenas e quilombolas, e é permeada por desconfiança inclusive entre a comunidade surda.
A reportagem apurou que, ao promover essa modificação de pastas dentro do MEC, o governo excluiu temáticas de direitos humanos. “Estou esperançosa com essa adesão voluntária da primeira-dama, tem possibilitado com a nomeação da Karin que o surdo seja protagonista no governo, mas têm aqueles que acham que não vai dar em nada, que o discurso na posse foi só teatro”, disse Esmeralda Peçanha Stelling, professora aposentada pela Universidade Federal Fluminense.
Esmeralda é uma das especialistas em inclusão de Libras após descobrir, em 1969, que o filho Marcelo era surdo e entrar para Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos, de Niterói. “O fundamental, o mais necessário, é a criação de escolas bilíngues, e não que a criança surda vá estudar em sala de ouvintes, isso não é inclusão”, disse Esmeralda.
ESCOLAS PELO PAÍS
O Brasil tem 30 escolas bilíngues na rede de educação básica. “Há estados no Nordeste que nem possui escola”, lamenta Vinícius Nascimento, diretor na região Sudeste da Federação Brasileira das Associações de Tradutores, Intérpretes e Guias-intérpretes da Língua de Sinais e professor da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).
São Paulo conta com apenas seis delas e salas de inclusão em duas escolas regulares. Segundo o último Censo estadual, há 1.769 surdos e outros 464 com problemas auditivos na rede estadual, municipal e particular.
A própria Karin sentiu na pele a falta de uma escola bilíngue para o seu filho, em Santa Catarina, e encaminhou o garoto, aos 11 anos, para Curitiba.
“O governo seguia uma filosofia de gestões passadas do MEC, muitos surdos, inclusive o meu filho, passaram anos e anos em sala de inclusão e não aprenderam nada. Ele foi transferido para uma escola bilíngue, em Curitiba, e a partir da sexta série começou a aprender a escrever”, disse Karin.
“Vejo muitas pessoas que fazem o curso de libras, mas não têm contato com a comunidade surda para praticar e entender a sua cultura. A gramática de libras e a de português são bem diferentes.”
Para Zovico e Nascimento, não basta ampliar o número de salas de aulas. O primeiro passo, segundo os especialistas, é aumentar a oferta de cursos de formação e melhorar a qualificação.
“O Brasil conta com apenas oito cursos universitários para formar profissionais. São dois cursos [presencial e a distância] na Universidade Federal de Santa Catarina e os demais na Ufscar, na Federal de Goiás, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Roraima. A primeira turma da Ufscar, concluiu o curso em 2018, com dez formandos. Muito pouco para uma população surda de 10 milhões de brasileiros”, diz Nascimento.
Os cursos para intérpretes não são submetidos a nenhum padrão, seja de grade curricular ou carga horária. “Temos bons cursos e alguns precários. Muitas pessoas se formam com poucas horas de duração e já são intérpretes, mesmo sem ter fluência”, afirma Zovico. (CARLOS PETROCILO,
SÃO JOSÉ DO RIO PRETO, SP (FOLHAPRESS)
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