Kimberly, 20, desce com cuidado a escada de metal. De pé em pé, vai baixando lentamente à galeria subterrânea cheia de fios, cabos e uma espécie de transformador.
“Aqui é preciso ter muito cuidado, parte desses cabos levam energia para dois shoppings e se você toca neles, boom, acabou”, conta, enquanto orienta como descer pela estreita escada de metal até o local em que ela e alguns amigos chamam de “boogie”.
“Quando não está chovendo, moramos aqui, é o melhor lugar para esconder minhas crianças da polícia”, diz.
Kimberly é uma das centenas de crianças e jovens que agora vivem pelas ruas de Caracas a pedir dinheiro, comida e a praticar pequenos furtos para sobreviver.
Ela já é mãe. Tem um casal. Uma menina de três anos e um bebê de só 18 meses. Veio para as ruas logo após seu segundo filho nascer.
Sozinha, em poucos meses se deu conta que não conseguiria alimentar as duas crianças morando na casa da avó, já aposentada e com um salário que mal chega ao equivalente a R$ 30 mensais.
“Aqui tem comida, por piores que sejam as condições, eu consigo alimentar meus filhos e a mim mesma”, diz ela.
Kimberly veio morar na área nobre de Caracas, onde os restaurantes continuam abertos e cheios com os últimos resquícios da classe média alta venezuelana, para evitar que seus filhos tivessem o mesmo destino de outras crianças de seu bairro.
“Quando estão magros demais, o pessoal do governo tira eles dos pais. Aqui na rua também fazem isso, mas só se encontrarem as crianças à noite”, diz ela, explicando porque havia escolhido uma galeria subterrânea sob uma das avenidas mais movimentas de Caracas para viver.
Se recolhidos pelo Conselho Tutelar, os dois filhos de Kimberly devem ter como destino instituições como a Fundação Amigos de Los Niños (Fundana), uma ONG que recebe crianças abandonadas ou recolhidas pelo Estado.
Até pouco menos de dois anos, a maioria das crianças que chegavam ali tinham um perfil muito diferente dos filhos de Kimberly. Mas, de repente, tudo mudou.
“Foi de um ano para cá que começamos a perceber que o perfil estava se transformando, mas nos últimos seis meses houve algo que nunca havíamos visto”, conta a psicóloga Ninoska Zambrano, 47, Coordenadora do Programa de Planejamento Familiar da Fundana.
Os casos típicos de agressão e maus tratos começaram a dar lugar aos episódios de desnutrição extrema, em que o Estado, após denúncias de vizinhos, precisa intervir para que as crianças simplesmente não morram.
Em alguns casos, conta Ninoska, a intervenção só ocorreu após a morte de um ou mais filhos de um casal.
“Foi uma transformação profunda, ao ponto de ocorrer algo absolutamente novo, em que as mães nos buscam para entregar seus filhos por não conseguir alimentá-los.”
Nos últimos quatro meses, afirma Ninoska, ao menos 50% das crianças que deram entrada na Fundana chegaram ali por desnutrição.
“E os casos de violência doméstica agora estão ligados a brigas geradas pela falta de comida, como um irmão que rouba a comida do outro e a mãe perde o controle.”
Não se sabe o número de crianças abandonadas na Venezuela. O governo do país não divulga nem mesmo informações tão básicas quanto a taxa de natalidade.
Mas Franscisco Segnini, diretor da Casa Hogar Bambi, uma outra instituição dedicada às crianças abandonadas, imagina que houve um crescimento sensível nos últimos anos. “Por nossa experiência, parece haver uma explosão de natalidade”, diz.
Neste momento, a Hogar Bambi está com suas 105 vagas preenchidas e precisa recusar pedidos diariamente.
“O que começou a surgir e que nós nunca havíamos visto foram mulheres, em geral adolescentes, batendo à nossa porta para entregar seus filhos em estado de desnutrição avançada. E sempre com a mesma explicação: não ter o que dar de comer a eles”.
A Venezuela é o país das Américas com a maior incidência de gravidez adolescente. Dados do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) de 2015 mostravam que o país tinha cem adolescentes gestantes para cada grupo de mil grávidas.
Mas, com a severa crise de abastecimento que praticamente eliminou os contraceptivos das farmácias venezuelanas, estima-se que esse número seja muito maior.
“Nós vimos um aumento de quase 100% nos casos que atendemos só neste ano”, conta Nubia Laguna, coordenadora técnica da ONG Niña Madre, que presta apoio a adolescentes grávidas.
“Não só o número está aumentando, assim como a idade das meninas está caindo. Neste momento temos gestantes de 13, 12 anos, isso nós nunca havíamos visto. Sem pílulas, camisinhas ou outros métodos disponíveis, esses números só aumentarão.”
Ex-diretor da Maternidade Concepción Palacios, a maior de Caracas, o obstetra Enrique Abache calcula que quase 25% dos partos realizados agora são de mulheres com menos de 20 anos.
“Há dois ou três anos, antes da escassez absoluta de contraceptivos, esse percentual já era alto, estava em torno de 16%”, diz ele, que agora é diretor médico da ONG Planfam, destinada à orientação do planejamento familiar às famílias mais pobres.
“Sem proteção e num clima absoluto de pobreza, desinformação e falta de políticas públicas, o resultado não poderia ser outro.”
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