11 de agosto de 2024
Economia

A pejotização aumenta, e muito, a desigualdade, diz economista Bernard Appy

ALEXA SALOMÃO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Não adianta olhar só para o próprio umbigo. Se a gente fizer a tributação da renda, do lucro, muito provavelmente primeiro a gente teria de acompanhar a tendência mundial. Segundo, teríamos de fechar brechas que reduzem o lucro tributário nas empresas

“Ninguém quer discutir justiça. As pessoas olham para o seu. Mas a gente precisa discutir isso abertamente. Não podemos aceitar que pessoas de alta renda no Brasil, por causa dessa distorção na tributação, paguem muito menos impostos

O economista Bernard Appy é praticamente um militante da reforma tributária. Há pouco mais de um ano, participou da criação de uma entidade que se dedica a esquadrinhar e propor soluções para o que ele chama de “distorções tributárias” do Brasil.

O CCif, Centro de Cidadania Fiscal, já produziu vários levantamentos e, inclusive, uma proposta de reforma.

Uma das distorções mais preocupantes, segundo Appy, é o efeito da pejotização sobre a distribuição de renda. O PJ, pessoa jurídica, paga cerca de um terço, ou até menos, de tributos em comparação a um empregado registrado, mesmo exercendo tarefas idênticas. “A diferença de tributação entre empregado e prestador de serviço explica uma parte importante da desigualdade no Brasil.”

Pergunta – Qual é o peso do sistema tributário para a desigualdade no Brasil?

Bernard Appy – Nessa discussão, temos várias questões. Precisa separar renda do trabalho e renda do capital, por exemplo. A tributação da renda do trabalho tem uma distorção injustificável no Brasil. Uma parcela relevante de pessoas de alta renda recebe a remuneração do trabalho na forma de PJ, pessoa jurídica. Ou seja, em vez de ganhar salário, abre uma empresa, se torna sócio e recebe como PJ. No sistema tributário brasileiro, essas pessoas pagam muito menos impostos.

Como é isso na prática?

– Vamos supor que um prestador de serviço –um economista, um advogado– ganha R$ 30 mil por mês. Ele vai pagar mais impostos se trabalhar como empregado normal [numa empresa que paga tributos sobre o lucro real, sobre o resultado final registrado]. Nesse caso, no agregado, empresa e empregado vão pagar R$ 14.891 em tributos. Vão sobrar R$ 15.109 líquidos para o empregado. Se o mesmo prestador oferecer o mesmo serviço como PJ, como paga menos impostos, vai ganhar bem mais: R$ 24.508 se for de empresa de lucro presumido [tributação simplificada sobre uma projeção fiscal] e R$ 26.563 se for de empresa do Simples [que tem cobrança simplificada de uma ampla gama de tributos]. E isso considerando que faça contribuição para a Previdência pelo teto.

Aqui há um problema distributivo claríssimo. Empresários da alta renda pagam muito menos tributos que empregados. É injustificável que duas pessoas que fazem a mesma coisa, prestando exatamente o mesmo serviço, tenham uma diferença tão grande de tributação.

O que exatamente provoca essa diferença?

– Metade disso vem da forma como é feita a tributação sobre folha de pagamento. A empresa paga contribuição para o INSS, mais penduricalhos. A contribuição recai sobre todo o salário do empregado. Na outra metade, o Imposto de Renda é mais baixo para as PJs. A maioria dos prestadores de serviço está no lucro presumido. Economistas e engenheiros, por exemplo. O Simples veda muitas categorias. Entre as profissões regulamentadas, apenas atividades como advogado, contador e fisioterapeuta conseguem se enquadrar no Simples. A diferença de tributação entre empregado e prestador de serviço explica uma parte importante da desigualdade no Brasil hoje.

Mas como é possível produzir uma diferença tão grande?

– Nas empresas de lucro presumido, por exemplo, você estima a receita e aplica os tributos. Mas o lucro delas lá na frente, no final do exercício, costuma ser maior. Porém, ainda que o lucro registrado pela empresa ao final seja maior, ele pode ser distribuído para o sócio com isenção de Imposto de Renda. Como o processo de pejotização no Brasil é muito forte, uma parcela expressiva de profissionais liberais no país está constituída como pessoa jurídica para pagar menos imposto.

Às vezes, é uma decisão pessoal, às vezes ocorre por pressão da própria empresa contratante, que força o trabalhador a se tornar pessoa jurídica. É uma soma dos dois. Mas esse é um pedaço do problema. Tem a questão do rendimento do capital, que é um pouco mais complicada.

É nesse caso que se enquadra a questão dos dividendos?

– A questão dos dividendos está nas duas pontas. O resultado distribuído pelas empresas de lucro presumido e do Simples é lucro distribuído isento. Mas, no caso de grandes empresas, o ganho da pessoa vem como renda do capital [lucro, juro, aluguel].

A pessoa, como acionista, recebe em dividendos. Aqui no Brasil esse dividendo é isento quando distribuído. Isso tem sido apontado como subtributação de pessoas de alta renda no Brasil.

E não é?

– É preciso cautela aí. Quando a gente olha a estatística do Imposto de Renda, os números são, de fato, estarrecedores. Entre os 27 milhões de declarantes, 21 milhões ganham até dez salários mínimos. Nesse grupo, apenas 13% dos rendimentos são isentos.

A proporção de rendimentos isentos cresce à medida que cresce a renda. Quem ganha mais de 160 salários mínimos por mês tem 69% dos rendimentos isentos. Nesse grupo de alta renda, o grosso do rendimento isento é de proprietários de empresas.

São PJs ou acionistas recebendo dividendos isentos?

– Infelizmente, a Receita não disponibiliza os microdados. Seria importante para a gente poder cruzar as informações e entender melhor o que isso significa, pois dá a entender que o grosso dessas isenções é, sim, lucro de dividendos distribuídos. Mas, por causa do que falei antes, a gente precisa ter muito cuidado com esse dado no Brasil. Uma parte, de fato, é dividendo. Mas uma parte desses rendimentos isentos é dos PJs.

O Congresso acabou de aprovar a flexibilização da lei trabalhista e da terceirização. Isso quer dizer que vamos ter aumento de PJs?

– É um risco.

E, se vamos ter mais PJs, vamos ter aumento da desigualdade?

– É um risco, se não for tratada adequadamente a questão tributária. Como está, a pejotização aumenta a desigualdade –e não é pouco, é muito. Mas nessa discussão, a gente precisa separar a questão da terceirização sob dois aspectos. Do ponto de vista de funcionamento da economia, a terceirização é positiva. É mais eficiente eu contratar um terceirizado do que ter um empregado permanente –sempre resguardando os direitos trabalhistas.

Outro problema é que a gente está num país que tem essa diferença de tributação entre sócio de empresa e empregado. A terceirização deveria ser acompanhada da correção de distorções tributárias.

Quais são as alternativas para equilibrar a cobrança?

– O melhor é resolver pelos dois lados. Primeiro, precisa mudar a forma de tributação da Previdência para as empresas. Isso reduziria o custo do trabalho formal. Segundo, precisa fazer com que a tributação de empresas que prestam serviços típicos de empregados se equipare à dos empregados.

E como fazer isso?

– Podemos adotar o modelo dos EUA, em que todo o lucro de empresa é renda do trabalho e tributar apenas na pessoa física. Também dá para ajustar pelo que já temos aqui: a parcela do lucro distribuído que não foi tributada na empresa vai ser tributada na pessoa física. Em outras palavras, tem que aumentar a tributação da renda dos PJs e reduzir a tributação sobre a folha dos empregados de alta renda.

Como o sr. mesmo disse, o número de PJs é grande e crescente. É uma briga difícil, não?

– Ninguém quer perder benefício. Óbvio. O advogado ou economista que hoje é subtributado não vai querer pagar mais imposto, ainda que seja justo. Ninguém quer discutir justiça. As pessoas olham para o seu. Mas a gente precisa discutir isso abertamente.

Não podemos aceitar que pessoas de alta renda no Brasil, por causa dessa distorção na tributação, paguem muito menos impostos. Num país com a desigualdade de renda como a do Brasil isso é absolutamente inaceitável.

Mudar a tributação bastaria para reduzir a desigualdade?

– Não se pode separar gasto público e tributação. No que diz respeito à população mais pobre, gasto público é muito mais eficiente como instrumento distributivo. Você melhora muito a vida dos mais pobres fazendo transferência de renda, via Bolsa Família, por exemplo, e com programas de educação e saúde, que afetam diretamente as pessoas de baixa renda.

Na alta renda, é melhor combater distorções com tributação. É um instrumento mais eficiente para promover a distribuição de renda, principalmente via tributação progressiva da renda e tributação do patrimônio. Nesse caso, temos que discutir com racionalidade como tratar do rendimento do capital, do lucro das grandes empresas e de sua distribuição.

Os críticos dizem que o Brasil é um dos poucos países do mundo que isenta dividendos. O que seria racional?

– Sim. Isso é verdade. Mas no resto do mundo a alíquota sobre pessoa jurídica está caindo muito. Na OCDE, a média é 25%. No Brasil, 34%. Essa não é uma questão interna brasileira. É uma questão tributária internacional: quem oferece tributação menor no lucro atrai empresas.

Não adianta olhar só para o próprio umbigo. Se a gente fizer a tributação da renda, do lucro, no Brasil, muito provavelmente primeiro a gente teria de acompanhar a tendência mundial. Segundo, teríamos de fechar brechas que reduzem o lucro tributário nas empresas.

E aí, finalmente, vem a questão de tributação de dividendos. Há duas opções. Adota o padrão do resto do mundo ou um modelo progressivo, que cobra uma alíquota quando é consumido, mas é isenta quando é investido.

O governo enfrentou polêmicas para propor a reforma da Previdência, venceu tabus para alterar pontos da CLT, mas não avança na reforma tributária. Por quê?

– Uma reforma tributária tem várias dimensões. Parte dela toca em tributos indiretos. Aí temos dificuldades políticas. Governadores que não querem perder o poder de dar incentivo fiscal, o que aconteceria numa boa reforma de tributos indiretos. Empresas também se favorecem com isso. A outra questão é essa que estamos discutindo, a tributação da renda. Embora alguns especialistas soubessem que existiam distorções, elas não eram bem compreendidas pelo resto da sociedade, o que está mudando com o surgimento de novos estudos.


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