A Copa do Mundo finalizada no domingo (20) mostrou que o futebol feminino tem um novo centro. Os Estados Unidos, tetracampeões mundiais, seguem como polo atrativo, mas o protagonismo rumou, de vez, para a Europa. A decisão entre dois países do Velho Continente – o que havia acontecido somente duas vezes nas oito edições anteriores – consolida um movimento que era possível observar antes mesmo de a bola rolar na Austrália e na Nova Zelândia.
É verdade que países europeus como Alemanha (bicampeã do mundo), Noruega (campeã) ou Suécia sempre estiveram entre as forças da modalidade. Desde 2007, porém, a taça da Copa não ia para o continente. Os três títulos seguintes foram para EUA (duas vezes) e Japão. Nestas finais, apenas a última, em 2019, teve uma seleção da Europa na final (Holanda, superada pelas norte-americanas).
Naquela Copa, realizada na França, a presença de três nações europeias entre as semifinalistas (Holanda, Inglaterra e Suécia, sendo que as duas primeiras atingiram as respectivas melhores campanhas à ocasião) indicou que algo estava acontecendo. O fortalecimento dos torneios, especialmente da Liga dos Campeões, o aumento de investimento e a profissionalização trouxeram retorno e mais visibilidade.
No Mundial de 2019, a liga de futebol feminino dos EUA foi a que teve mais jogadoras convocadas: 73, o equivalente a 13,2% do total. Ela foi seguida pelos campeonatos de Espanha (52), França (50) e Inglaterra (49). No torneio deste ano foram 88 atletas vinculadas a equipes norte-americanas. Considerando que a Copa de 2023 reuniu 32 seleções, contra 24 de quatro anos atrás, houve uma queda na representatividade estadunidense para 11,9%.
Em contrapartida, as ligas das duas nações finalistas deste ano cresceram em relevância. A Inglesa teve 106 futebolistas presentes nesta Copa, mais que o dobro da edição passada, assumindo o posto de competição com mais atletas no Mundial. A representatividade disparou de 8,9% para 14,4%. Já a Espanhola contou com 70 jogadoras nesta edição, aumento de 9,4% para 9.9% na comparação com 2019.
Ligas fortes
Em 2019, o banco Barclay’s anunciou um patrocínio de mais de 10 milhões de libras esterlinas (R$ 63,5 milhões na cotação atual) para o Campeonato Inglês, contemplando também apoio a centenas de escolas de futebol feminino no país. O acordo foi renovado dois anos depois, chegando a 30 milhões de libras (R$ 190,5 milhões). Também em 2021, BBC (TV aberta) e Sky Sports (fechada) adquiriram os direitos de transmissão do torneio.
A liga inglesa atraiu estrelas do futebol feminino mundial. A australiana Sam Kerr, maior artilheira da história do campeonato dos EUA, trocou o Chicago Red Stars pelo Chelsea em 2020. No mesmo ano, o time londrino acertou com a dinamarquesa Pernille Harder, que estava no alemão Wolfsburg, na contratação mais cara da modalidade à época: cerca de 337 mil euros (R$ 1,8 milhão). Ainda em 2020, Lucy Bronze foi repatriada pelo Manchester City, após três temporadas no Lyon, da França, então maior força do continente.
Na Espanha o investimento foi mais tardio. A profissionalização da competição local se deu somente na edição passada (2022/2023), mas as perspectivas são positivas. Por meio de um acordo com La Liga (entidade responsável pelo futebol masculino), 42 milhões de euros (R$ 227,4 milhões) estão já garantidos à liga feminina até 2027. Mais 36 milhões de euros (R$ 194,9 milhões) serão revertidos, também pelos próximos cinco anos, com a venda de direitos de transmissão.
O trabalho de base, portanto, foi determinante para formar talentos e fortalecer não apenas a seleção ibérica, mas, naturalmente, os clubes. Em 2018 a Espanha foi campeã mundial sub-17 e vice no sub-20. No ano passado garantiu o primeiro lugar nos dois torneios. Não à toa apenas quatro das 23 espanholas convocadas à Copa de 2023 têm idade acima dos 30 anos. O Barcelona, de Aitana Bonmatí e Alexia Putellas, tornou-se o principal time da atualidade, finalista das últimas três Ligas dos Campeões, com duas conquistas, inclusive a da temporada 2022/2023.
Não à toa, os quatro clubes com mais jogadoras na Copa de 2023 pertencem às ligas inglesa e espanhola. O Barcelona lidera a estatística, com 18 atletas, sendo que nove defenderam a Espanha em solo australiano e neozelandês. Na sequência, com 16, estão Chelsea e Arsenal. Destaque ao último, com representantes em dez seleções. O Real Madrid, com 15 convocadas, completa o “G4”.
Bom produto
O investimento tornou o produto futebol feminino atrativo como nunca antes. A Eurocopa do ano passado, disputada na Inglaterra e vencida pelas anfitriãs, levou mais de 500 mil pessoas aos estádios (mais que o dobro de 2017, na Holanda). A decisão entre inglesas e alemãs teve 87.192 torcedores nas arquibancadas de Wembley, em Londres, o maior público da história do torneio, masculino ou feminino. A audiência global da Euro chegou a 365 milhões de espectadores.
Ainda em 2022, o duelo entre Barcelona e Wolfsburg, pelas semifinais da Liga dos Campeões, no Camp Nou, casa do time espanhol, foi acompanhado por 91.648 pessoas, recorde em uma partida de futebol feminino. O clube catalão, aliás, detém três dos quatro maiores públicos da modalidade entre clubes. Não à toa lidera um estudo da consultoria Deloitte como a equipe de mulheres que mais gerou renda na última temporada: 7,7 milhões de euros (R$ 41,7 milhões).
O futuro é promissor. A União das Associações Europeias de Futebol (Uefa, sigla em inglês) divulgou um relatório, há um ano, projetando que o retorno comercial do futebol feminino no continente atinja, até 2033, 686 milhões de euros (R$ 3,7 bilhões) anuais. É o equivalente a seis vezes o que movimenta atualmente. A perspectiva é que a base de fãs mais que dobre nesse período.
E no Brasil?
Assim como a liga inglesa, a brasileira teve 2019 como ano de transformações importantes. Quarenta anos após cair a proibição à prática do futebol por mulheres no país, entrou em vigência a obrigatoriedade para que os clubes da Série A do Brasileirão masculino mantivessem equipes femininas profissionais e de base. Na época, somente sete dos 20 participantes da elite contavam com projetos estruturados na modalidade.
A chegada de clubes tradicionais do futebol masculino trouxe visibilidade e investimento. Em 2021, a Neoenergia, empresa do grupo espanhol Iberdrola, anunciou patrocínio às competições femininas da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). A premiação aos finalistas da Série A1 (primeira divisão) evoluiu desde então. No ano passado, o Corinthians embolsou R$ 1 milhão pelo título, cinco vezes mais que na edição anterior, em que também foi campeão. O vice, Internacional, recebeu R$ 500 mil. O de 2021, Palmeiras, levou R$ 100 mil.
Se passa longe de ser um polo global no futebol feminino, o Brasil tem se consolidado como referência sul-americana. Prova é que o Brasileirão deste ano, o 11º organizado pela CBF, tem um recorde de jogadoras estrangeiras: 40, a maioria delas do próprio continente. Onze, inclusive, estiveram na Copa em solo australiano e neozelandês. Quatro anos atrás, na França, apenas duas gringas que atuavam por aqui foram convocadas: Claudia Soto (Santos) e María Urrutia (3B da Amazônia).
Sensação do Mundial de 2023 ao chegar às quartas de final de maneira inédita, a Colômbia teve cinco atletas da liga brasileira em seu elenco: Catalina Pérez (Avaí Kindermann), Lorena Bedoya, Lady Andrade (ambas Real Brasília), Jorelyn Carabali (Atlético-MG) e Mónica Ramos (Grêmio). Na Argentina, foram também cinco jogadoras: Eliana Stábile, Adriana Sachs (ambas Santos), Lorena Benítez, Yamila Rodríguez (ambas Palmeiras) e Paulina Gramaglia (Red Bull Bragantino). A equipe de Filipinas contou com a santista Reina Bonta.
No contexto global, porém, a América do Sul caminha a passos lentos. Na própria Colômbia, a liga dura somente quatro meses. A edição de 2023, por exemplo, terminou em junho, pouco antes da Copa. A promessa de um segundo campeonato nacional no ano – como já acontece no masculino – não foi cumprida. Na Argentina, a modalidade está profissionalizada desde 2019, mas viver do futebol ainda não é uma realidade para a maioria das jogadoras.
O Brasil é um dos candidatos a receber a próxima Copa do Mundo, em 2027. Entre os concorrentes está, justamente, uma parceria europeia (Alemanha, Holanda e Bélgica). A Federação Internacional de Futebol (Fifa) decidirá a sede da competição em maio do ano que vem. Em caso de escolha brasileira, seria a primeira vez do Mundial Feminino na América do Sul, com expectativa de aumentar o fomento à modalidade não somente por aqui, mas no restante do continente.
(Conteúdo – Agência Brasil)
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