Especial

Violência contra a mulher: Desvendando a cultura caipira

“Agora já me vinguei, é esse o fim de um amor. Essa cabocla eu matei, é a minha história, doutor”. Os versos de Raul Torres e João Pacífico na música ‘Cabocla Tereza’ em 1940, trazem à luz a naturalização da violência contra a mulher por músicas caipiras durante décadas. Tanto a violência, quanto o feminicídio, sempre foram tratados como “normais” aos olhos de alguns e isso se deve ao contexto histórico e sociológico vivido no mundo todo, especialmente no Brasil.

Muitas músicas, sobretudo caipiras, abordam comportamentos sexistas e casos de violência contra a mulher, inclusive chegando ao feminicídio. Com a mudança do pensamento social, essas canções e comportamentos deixaram de ser tratados com normalidade, revelando problemáticas de versos como “Na ‘muié’ eu dei um jeito, corretivo do meu modo, no quarto deixei trancada, quinze ‘dia’ aprisionada e com ela não incomodo”, de João Carreiro e Capataz.

Contexto sociológico

A mestre em sociologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Jully Anne Ribeiro da Cruz, considera que há uma associação entre a música caipira e a identidade goiana. Segundo ela, a violência contra a mulher, encontra o ápice no feminicídio, mas o fenômeno tem como raiz a presença de “um pensamento hegemônico que se manifesta na dominação patriarcal, estando intrinsecamente vinculado à manutenção do status quo daqueles que são designados para exercer o domínio”.

“Para enfrentar a violência é preciso compreendê-la e assim desenvolver as melhores estratégias. Foi observado pela ONU Mulheres (2012) que em tempos de guerra e de paz há casos de assassinatos de mulheres, o fenômeno da violência ocorre em todas as esferas sociais e muitas vezes ocorre com a tolerância das sociedades e governos, encobertas por costumes e tradições”, avalia.

De acordo com a mestre em sociologia pela UFG, a violência contra a mulher é um fenômeno social e cultural, sendo importante traçar a rota e observar os aspectos da cultura na naturalização da violência. Jully Anne relatou que a cultura goiana é repleta de arquétipos (modelos) que fomentavam o menosprezo ou invisibilização da mulher, podendo o fator ser refletido nas músicas caipiras.

Segundo a mestre, a música narra a vida, canta um conto, um causo e pode ser um instrumento tanto para naturalizar quanto para apontar uma crítica ao que precisa ser modificado. “Há de se pensar a música caipira olhando para o local de sua origem, conectada ao sertão, à vivência sertaneja. […] O estado de Goiás foi erguido ainda no século XVII sob a expectativa de ouro e terras férteis por aqueles que não encontravam satisfação, boas condições de vida e cultivo no litoral brasileiro. Autores como Chaul e Leal remontam essa trajetória, destacando a ‘decadência’ e o ‘desdém governamental’ em seus trabalhos”, diz.

Violência contra a mulher

Conforme as análises de Jully Anne, as primeiras referências históricas das condições de vida dos sertanejos que habitaram em Goiás eram repletas de “estranhamento, advertindo quanto à barbárie diante da civilidade”, narrativas utilizadas por anos como referencial historiográfico.

Jully Anne – Mestre em Sociologia pela UFG

Com o olhar do passado, a mestre em sociologia entende que é necessário um recorte de gênero para enxergar a profundidade das raízes da violência contra a mulher. “Aqui em Goiás, é constatado que os chamados bandeirantes não se davam ao que podemos chamar de ‘carências masculinas’ através das relações com as mulheres indígenas, ao contrário, eles preferiam exterminar os indígenas”, analisa.

A socióloga diz que houve relações entre brancos e indígenas, mas que os principais relatos históricos da época enfatizam, principalmente, a morte das populações indígenas. Entretanto, ao olhar para as mulheres não brancas que viviam em território goiano no mesmo período, havia um regime de violência sexual e desprezo.

“Em outras palavras, a cultura de uma sociedade é que vai dizer o que é violência e aceitá-las em maior ou menor grau. Da mesma sorte, é a sociedade que vai aceitar ou repudiar os discursos encrustados em uma música, seja ela uma cantiga de roda, coco, maracatu ou música caipira”, afirma.

A mestre em sociologia pela UFG ainda reforça que a música pode contar um causo, um conto, uma estória, fazendo parte do processo de aprendizagem, sendo um dos instrumentos utilizados no desenvolvimento da fala, sendo inegável a potência e importância frente à sociedade. “Logo, músicas caipiras que normalizam a violência contra a mulher, compõe esse conjunto de tecnologias de dominação existentes em nossa sociedade. Sua utilização é  orientada ao fomento e à manutenção de pensamentos conservadores, os quais fomentam a hierarquia de gênero, um ideal de masculinidade e feminilidade e, ainda, a violência aos corpos que não figuram ou performam a feminilidade e a masculinidade como o esperado”, diz Jully Anne.

A socióloga finaliza alertando que, apesar de ser uma tecnologia de dominação, os artistas e as artistas que compõe tais letras e melodias, não necessariamente estão organizados ou mesmo conscientes das consequências de seus discursos.

Contexto histórico

Ubiratan Francisco – Historiador

Já o historiador Ubiratan Francisco explica que antes de entender a relação, é necessário que o conceito de caipira seja esclarecido, sendo o modo de viver do homem e da mulher do campo. Segundo ele, o início se dá no interior de São Paulo, no final do período colonial e início da República brasileira, se intensificando na criação deste último período.

“Então esse caipira é o povo do interior, vindo de uma miscigenação profunda entre negros ex-escravizados. Inclusive a força da viola caipira dessa música vem do povo negro junto com a cultura indígena, dos saberes do pessoal do campo de ancestralidade indígena. Ali no interior de São Paulo com os Bandeirantes, foram avançando no interior do Brasil e Goiás, que foi fundado por Bandeirantes. Então Goiás não poderia deixar de ter essa cultura caipira em sua essência, com a música, o modo de ser, a forma de se vestir e o modo de falar”, explicou.

Impacto cultural

Na cultura entra a música baseada na viola caipira, que, de acordo com o historiador, não era um instrumento nobre em Portugal e sim da classe popular. Com isso, ela se misturou com a cultura negra, sendo muito presente entre os povos escravizados.

Viola Caipira

“Então, a viola cai perfeitamente com a mistura com o tambor. Em muitas culturas religiosas nós temos as batidas dos tambores com a viola caipira. Nós presenciamos isso na Congada, principalmente na Folia de Reis. Goiás faz parte dessa expansão do caipirismo no interior do Brasil”, diz.

Segundo Ubiratan, a música caipira retratava justamente o modo de viver, falando sobre as jornadas de andar pelo interior do país, trazendo também o plantio do café e o boi, por exemplo. “Eu considero a música a principal expressão artística do povo brasileiro, junto com a dança”, relata. “Então, para a gente amarrar os temas entre esse modo de existir e a ‘vida romântica’, os amores e desamores, as dores e dissabores da vida, o sofrimento pela amada e pelo amado. Isso também vai estar presente na música”, afirma.

De acordo com o historiador, a sociedade caipira foi construída em uma estrutura social em que a mulher foi violentada. A expansão pelo interior tem como uma das marcas históricas justamente essa violência contra a mulher, principalmente a negra escravizada. “Com apropriação e violência sobre o seu corpo, a violação do seu corpo. As mulheres indígenas nas aldeias quando eram atacadas, eram raptadas. Então a gente costuma ouvir muito no interior de Goiás, em histórias de pessoas mais velhas, que contam que alguma indígena foi pega no laço. Às vezes a pessoa, até de forma inocente, fala assim ‘ah, minha avó foi pega no laço’, isso quer dizer que ela foi estuprada”, explica.

Mulher escravizada (Foto: Reprodução)

O historiador relata que essa cultura do estupro presente no processo de construção do Brasil é um lado triste da história, em que a mulher era muito violentada. “Então, no sistema político que estabelece o poder econômico e político, nós chamamos de cultura do coronelismo. O coronel era o dono de Terra, os latifundiários eram os mesmos escravocratas, a sua base estrutural está no topo dela. O homem branco e seu domínio sobre o corpo das mulheres”, disse.

Ele relembra que as mulheres eram vistas como instrumento de negociação de poder entre os próprios coronéis, exemplificando que cediam uma filha para estabelecer um casamento e, a partir disso, ter um poder político e econômico maior. A mulher como objeto de troca também colocava sobre elas a subordinação.

“É dessa cultura patriarcal, machista, tem na mulher um objeto à mercê da vida do homem, uma mulher que é dele”, explicou ele, trazendo para o contexto atual, em que é comum haver histórias de violência em festas e brigas porque a mulher disse não ao homem, ressaltando que o gênero feminino sempre esteve em situação de inferiorização. Segundo o historiador, quando algo sai fora do desejado pelo homem a violência é cometida e as músicas tratam disso, como se a mulher fosse propriedade. “Se você não é minha, não vai ser de mais ninguém” e o “mato e morro por ti”, algo que se apega ao chamado “crime passional”, em mortes tendo o “amor” como  justificativa.

“Se for olhar pelo lado da psicanálise, há um amor patológico, que é sádico e masoquista por essência. Sádico porque quem está no poder amoroso quer cada vez mais promover o sofrimento da outra pessoa e é masoquista porque também tem a ideia de que ‘se eu não sofro, eu não amo’”, ressalta.

Assim como nos versos de Tonico e Tinoco, a morte da mulher vem para “lavar a honra” do homem, uma vez que foi rejeitado, abandonado ou ela estava flertando com outro.

Adultério

Sobre o adultério, ele traz ao contexto o Código Penal de 1890, que tinha o adultério como crime, mas lembra que a mulher era muito mais penalizada do que o homem.

“Um homem poderia manter relação sexual com outra mulher e só poderia ser condenado por adultério de mantivesse uma outra família, se estabelecesse um sistema de bigamia. Já a mulher seria condenada se mantivesse qualquer tipo de relação fora do matrimônio. Além de anular o casamento, entre outras coisas, ela era completamente penalizada”, observou.

Maria Paula

Jornalista formada pela PUC-GO em 2022 e MBA em Marketing pela USP.

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