Candidatos classificados em processos seletivos têm recorrido cada vez mais à Justiça para garantir o direito a nomeação no serviço público. Especialistas alertam que nem sempre as reclamações têm fundamento
Não basta estudar com afinco para ficar entre os aprovados nos concursos. Os candidatos a vagas no serviço público podem ter que enfrentar a batalha por um posto no funcionalismo em outra arena, a judiciária. Há demandas de todo tipo, antes e depois que é proclamado o resultado final pela banca organizadora. Além dos questionamentos em relação às perguntas das provas, ao gabarito e às avaliações de questões discursivas e da redação, centenas de ações são ajuizadas por candidatos classificados para garantir a nomeação.
No ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou uma discussão que abarrotava o Judiciário de processos. A Corte decidiu que todos os aprovados têm direito à nomeação, dentro do número de vagas previstas no edital, até o fim do prazo de validade do concurso, corroborando o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Com isso, o STF brecou uma prática corrente da administração pública: nomear um número de aprovados menor do que a quantidade de postos ofertados no edital para, logo em seguida, abrir novo concurso. Essa jurisprudência tem sido até objeto de questões em concursos recentes.
Mas os tribunais superiores mantêm o entendimento de que os candidatos classificados além do número de vagas previstas no edital têm apenas uma expectativa de direito. Assim, a nomeação deles depende da conveniência da administração pública, mesmo que novas vagas surjam no período de validade do concurso. A Justiça já negou inúmeros pedidos de candidatos nessa situação — classificados, mas fora do número de vagas do edital — que alegavam ter direito a nomeação porque os órgãos criaram outros postos durante a validade dos respectivos concursos.
Temporários
Conforme a jurisprudência dominante, o direito à posse ocorre apenas nas seguintes situações: quando algum candidato aprovado é preterido na ordem de classificação; quando são feitos novos concursos durante o prazo de validade de processo seletivo anterior; ou, ainda, quando são contratados servidores temporários para exercer as mesmas funções atribuídas ao cargo da seleção ainda válida.
Foi o que aconteceu com uma médica aprovada para o cargo de oftalmologista na Universidade Federal Fluminense (UFF). Embora tenha ficado em terceiro lugar no concurso, a instituição contratou médicos em caráter temporário para o Hospital Universitário Antônio Pedro, entre eles, um oftalmologista. A médica recorreu à Justiça, mas teve seu pedido negado pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região. A Quinta Turma do STJ, no entanto, reformou essa decisão e mandou a UFF nomeá-la.
O argumento da Corte superior é de que, se fica comprovada a necessidade de preenchimento de vagas existentes, o candidato classificado passa a ter direito à nomeação. O advogado Sérgio Camargo, especializado em concursos públicos, confirma que esse é um dos motivos da boa parte das ações ajuizadas por candidatos aprovados em processos seletivos.
Há certas demandas que valem a pena tentar, pois podem ter um final feliz, ainda que os casos sejam aparentemente difíceis. Em agosto de 2010, a 2ª Turma do STJ reconheceu o direito à posse de 2 candidatos aprovados para o cadastro de reserva em concurso para o preenchimento de cargo de analista na função de arquivista do Governo do Distrito Federal (GDF). O edital previa apenas cinco vagas e mais o cadastro. Mas foram chamados 45 aprovados de imediato. Durante a prorrogação do certame, mais 45 foram convocados, mas cinco desistiram. O GDF desistiu de chamar outros cinco candidatos.
O STJ entendeu que, mesmo se tratando de cadastro de reserva, os dois candidatos tinham direito à nomeação. A relatora do processo, ministra Eliana Calmon, entendeu que, uma vez que a administração pública externou a intenção de preencher as vagas, o direito à nomeação ficou garantido, estando os candidatos seguintes na lista de classificação dentro ou não do número de vagas previstas no edital do concurso.
Comunicação
Também conseguem na Justiça o direito de participar de determinadas fases do concurso ou à nomeação os candidatos que perdem a data de realização de testes ou da posse quando convocados apenas por publicação no Diário Oficial respectivo, após um determinado tempo entre uma etapa e outra. Eles têm o direito de serem chamados pessoalmente, por telefone, endereço ou e-mail informados no ato da inscrição.
Há entendimento pacífico do STJ de que apenas a publicação no Diário Oficial viola o princípio da razoabilidade “quando passado lapso temporal entre a realização ou a divulgação da convocação, uma vez que é inviável exigir que o candidato acompanhe, diariamente, com leitura atenta às publicações oficiais”.
Segundo o advogado Sérgio Camargo, também são objeto de muitos processos algumas exigências dos editais, como a de que o aprovado não pode ter tatuagem no corpo ou o nome incluído em cadastros negativo de crédito, como o SPC. Em um caso desses que já chegou ao STF, o tribunal decidiu que o princípio da presunção da inocência não pode ser afastado pelo edital de concurso, pois a inscrição do nome do SPC pode ser indevida, como ocorre em milhares de casos.
A caminho do caos
Em nota, o Planejamento informou que a principal proposta recomendada pelo Grupo de Trabalho criado em 2010 foi concretizada em dezembro do ano passado: a tipificação de crime para as fraudes em concursos. A lei alterou o Código Penal ao acrescentar um capítulo sobre as fraudes em certames de interesse público. No entender de Mário Elesbão, professor do preparatório Canal dos Concursos, entretanto, as medidas adotadas pelo Planejamento são insuficientes para evitar abusos das bancas organizadoras e fraudes. “Estamos caminhando para o caos”, alerta.
Faltam regras
Sem uma regulamentação específica para o setor, todo tipo de situação que envolva os certames públicos está à mercê de ações judiciais — sejam elas bem intencionadas ou não. “Está ocorrendo uma intensa judicialização dos concursos”, obser va Marcus Marcelus Goulart, procurador da República no Distr ito Federal. Ele destaca que entre 80% e 90% das queixas não têm o menor fundamento: foram apresentadas muitas vezes por pessoas que se saí ram mal nas provas e tentam tumultuar a seleção
“Há um movimento exagerado de achar que o Ministério Público vai resolver todos os problemas que envolvem os concursos. Isso certamente não vai ocorrer”, complementou o procurador. Na última terça-feira, Goulart ajuizou um pedido para a anulação de duas provas do Senado: as para analista, nas especialidades de fisioterapia e urologia, sob o argumento de que 80% das questões foram copiadas de outras seleções. Só em relação a esse certame, a Procuradoria da República conta com nada menos que 12 investigações formais e dois pedidos de ação judicial.
A quantidade de denúncias sobre o concurso do Senado que chegaram ao órgão, entretanto, passou de uma centena. Quase 90% delas acabaram arquivadas, devido à falta de fundamentação. No entender de Goulart, caso houvesse uma lei específica para o setor, muitos dos problemas seriam evitados. “As irregularidades acabam combatidas sob argumentos principiológicos, como moralidade ou isonomia. Não há uma referência clara”, pondera. “Geralmente, os candidatos que se consideram prejudicados se organizam em estratégias de grupo. É comum vermos a mesma denúncia ser apresentada em vários lugares. A ideia é que se não foi aceita por um juiz, pode ser aceita por outro.”
Ernani Pimentel, presidente da Associação Nacional de Proteção e Apoio aos Concursos (Anpac), diz que um problema central para que muitas queixas simples dos candidatos acabem na Justiça é a ausência de entidades independentes para analisar os recursos das provas. “Ora, a própria banca que é responsável pelo processo seletivo não pode ser encarregada de julgar os recursos. É clara a tendência de decisões em causa própria” sustenta.
Ele é também um veemente defensor de uma regulamentação para os concursos, mas se queixa do que considera falta de vontade política nesse sentido. “Já enviamos um ofício com sugestões ao Planejamento, mas nem fomos recebidos”, lamentou. Em setembro de 2010, o Ministério do Planejamento anunciou uma lista de medidas para combater as fraudes em concursos, mas depois de quase dois anos, praticamente nada de concreto foi feito. (Correio Braziliense)