Quando, em junho do ano passado, o empresário e ex-apresentador de TV Donald Trump, 70, desceu a escada rolante da Trump Tower (seu QG em Nova York) para anunciar que estava entrando na corrida à Casa Branca, poucos o levaram a sério.
Na madrugada desta quarta (9), ele tornou-se o 45º presidente dos Estados Unidos, após derrotar a ex-secretária de Estado Hillary Clinton e derrubar a maioria das pesquisas que, até a linha de chegada, o pintavam como uma zebra.
Segundo as projeções da agência Associated Press, Trump deve ter, no Colégio Eleitoral, 276 votos (eram necessários 270). A confirmação da vitória veio com as projeções de vitória do republicano nos Estados da Pensilvânia e de Wisconsin, por volta das 5h30 (horário de Brasília).
Mesmo derrotada, Hillary poderia ainda superar Trump no voto popular, algo possível no sistema eleitoral americano, que prioriza o Colégio Eleitoral. É algo raro, mas que já aconteceu quatro vezes em eleições presidenciais dos EUA, a última em 2000, quando George W. Bush teve menos votos populares que Al Gore, mas foi derrotado no colégio.
Antes mesmo de anunciado o resultado final, frente ao bom desempenho do republicano, o nervosismo ganhou força nos mercados mundiais.
Na Ásia, as Bolsas tiveram perdas agravadas com o avanço de Trump. Às 2h20 (horário de Brasília), Tóquio tinha queda de 4,5%, Hong Kong, de 2,8%, e Seul, de 2,7%.
O México, tradicional parceiro americano, também foi castigado. O peso (moeda local) caia 10,2%, um tipo de queda que não era visto desde a crise global de 2008. O temor é que a chegada de Trump ao poder dê fim ao acordo de livre-comércio com o país.
Os mercados futuros americanos (espécie de espelho sobre como as Bolsas dos EUA vão reagir pela manhã, quando as operações tiverem início) recuaram com força. O índice futuro do S&P 500, que engloba 500 grandes empresas americanas e, portanto, é um bom indicador da maior economia mundial, recuava 4,5%.
A virada de Trump começou com a apuração dos votos em alguns dos Estados-chave da costa leste do país, que apareciam como mais disputados nas pesquisas, ainda que com alguma vantagem para Hillary.
A surpresa começou com Trump à frente na Flórida e na Carolina do Norte, dois dos Estados em que os candidatos fizeram campanha mais intensamente nas últimas semanas.
Logo depois, o republicano abriu vantagem sobre a democrata em Ohio, Estado essencial para que ele abrisse caminho para a vitória.
DO VELÓRIO À FESTA
No hotel em Nova York onde foi preparada a festa da vitória republicana, a poucas quadras do Trump Tower, o clima era de velório no início da noite, quando as primeiras projeções negativas sugeriam vitória de Hillary.
Aos poucos, porém, a euforia foi tomando conta do ambiente, à medida que a contagem dos votos em Estados importantes como Flórida e Ohio indicava que o bilionário estava no caminho da vitória.
Um dos convidados da festa, o produtor de TV Alan Sands, 54, era um dos que se agarravam a cada número positivo. “Vamos ganhar com o voto de americanos que jamais foram às urnas e se sentiram inspirados por Trump”, disse. A uma possível vitória de Hillary Clinton, ele reagiu com uma careta: “Jamais a chamaria de presidente”.
O primeiro sinal mais forte de que a confiança havia tomado conta do campo trumpista surgiu com a chegada ao evento do ex-prefeito de Nova York Rudy Giuliani, que apareceu com um sorriso triunfante quando a apuração ainda estava indefinida. “É uma grande noite”, disse Giuliani, que foi um dos mais ferozes defensores de Trump e está cotado para ser ministro da Justiça no próximo governo.
Diferentemente do ato de encerramento da campanha de Hillary, que foi aberto a seus eleitores, a festa da vitória de Trump foi fechada para convidados. “É um evento íntimo para amigos”, explicou à Folha um assessor da campanha no início da noite, dando a impressão de que não havia no lado de Trump confiança suficiente na vitória que justificasse algo maior.
AGRESSIVIDADE
O desfecho das eleições premia uma das campanhas mais agressivas e não convencionais da história, e a ambição de um empresário que nasceu em berço de ouro, multiplicou sua fortuna entre vários negócios controversos e venceu na política explorando ao máximo a frustração do público com a política tradicional.
Mais velho candidato já eleito para a Casa Branca –Ronald Reagan tinha 69 anos quando assumiu, um a menos que ele–, Donald Trump venceu prometendo mudança e vendendo-se como o forasteiro político capaz de desafiar um sistema corrupto que tem na veterana Hillary Clinton seu maior símbolo de decadência.
“Hillary trapaceira” foi o apelido com que se referiu à ex-secretária de Estado durante toda a disputa, encontrando ressonância num público que a via como a imagem da desonestidade.
Sua ascensão improvável desafiou o consenso entre os analistas de que não chegaria longe devido à inexperiência na política, às promessas vagas e ao linguajar vulgar. Mas ele foi hábil em usar o repúdio a seu favor, afirmando que era mais uma prova de que incomodava um establishment temeroso de mudanças.
Nem a guerra civil gerada em seu partido, que gerou o movimento “Nunca Trump” deteve o empresário, que derrotou 16 pré-candidatos para se tornar o candidato republicano mais votado na história das prévias da legenda.
Na reta final, sua campanha parecia ter afundado, depois da divulgação de um vídeo de 2005 em que usava linguagem vulgar para se referir às mulheres e sugerir que podia fazer o que quisesse com elas por ser famoso.
“Pegue-as pela xoxota”, disse ele na gravação, causando indignação e choque em boa parte do público.
O naufrágio de sua candidatura continuou depois que uma dúzia de mulheres o acusaram de assédio sexual, o que o bilionário negou, afirmando que elas eram trapaceiras a serviço de Hillary.
Mas o empresário que baseou sua campanha no slogan “Faça a América grande novamente” deu a volta por cima, contando com o apoio de uma legião fiel de seguidores e de eleitores ocultos que passaram a perna nas pesquisas.
No fim, ainda contou com o impulso inesperado do FBI (polícia federal), que a 11 dias da eleição reabriu a investigação sobre o uso, por Hillary, de um servidor privado de e-mail quando era secretária de Estado (2009-2013).
Às vésperas da eleição o FBI reiterou a decisão anterior, de que não havia motivo para indiciá-la, mas o estrago estava feito.
Trump ganha a Casa Branca mesmo depois de ter insultado imigrantes mexicanos, muçulmanos, mulheres e pessoas com deficiência, num prêmio a sua retórica contra o politicamente correto e uma vitória contra uma rival que ele demonizou por meses.
RUPTURA
Foi um duelo de visões de mundo bem diferentes em quase todos os temas, mas acima de tudo entre a continuidade das políticas de Barack Obama, com Hillary Clinton, e a ruptura radical proposta por Donald Trump.
Vendo seu legado em risco, Obama entrou na campanha como nenhum de seus antecessores na história recente, tornando-se um cabo eleitoral de luxo para Hillary. Do outro lado, Trump prometia reverter medidas centrais do governo Obama, como a reforma do sistema de saúde e o plano para evitar a deportação de imigrantes.
A economia em recuperação na reta final do governo Obama serviu de impulso para Hillary, mas não escapou da guerra de narrativas entre os candidatos.
Trump atraiu principalmente eleitores de classe média baixa, que foram afetados no bolso pela desindustrialização em algumas partes do país e sentem que perderam espaço econômico e político nas últimas décadas com o crescimento das minorias que mudou o perfil demográfico dos EUA.
Os números comprovam a retomada da economia após a recessão de 2008. A mais recente taxa de desemprego, divulgada em outubro, caiu para 4,9%, depois de bater na casa dos 10% em 2009.
Mas a retórica contra o sistema político que moveu a campanha de Trump também alvejou a credibilidade das estatísticas do governo, com o bilionário afirmando que a taxa real de desemprego é de pelo menos 10%, algo que não pôde comprovar.
Trump também bombardeou o presidente Obama por comandar a recuperação mais lenta desde a Segunda Guerra Mundial (a previsão do Fundo Monetário Internacional de crescimento da economia americana é de 1,6% neste ano), desta vez com com base em fatos.
Para a maioria dos economistas, porém, os planos do candidato republicano, com grandes cortes de impostos e restrições à imigração, poderiam causar sérios danos ao país, levando-o de volta à recessão.
Trump conquistou uma parcela da população que ficou para trás na retomada econômica, principalmente homens brancos sem nível superior. Mas a atração desse eleitorado por Trump não pode ser medida apenas pelo estado da economia, já que seus eleitores têm renda acima da média nacional, segundo cálculo do site FiveThirtyEight, do estatístico Nate Silver.
Nas áreas do país em que ele obteve mais apoio há alta concentração de população branca e de baixa instrução, que valoriza princípios associados ao conservadorismo como a rejeição ao direito ao aborto e a defesa intransigente da posse de armas.
ALTA VOLTAGEM
As diferenças entre os dois lados da campanha resultaram numa das eleições com maior polarização política e tensão racial da história, despertando temores de que a divisão será mantida depois que a disputa chegar ao fim.
Em retrospecto histórico, porém, campanhas com alta voltagem política estão longe de ser novidade nos EUA. Em 1912 o ex-presidente Theodore Roosevelt levou um tiro no peito durante um comício, e mesmo assim terminou seu discurso.
No exemplo mais recente, em 2000, o republicano George W. Bush só foi declarado vencedor cinco semanas após a eleição, em meio a uma polêmica recontagem de votos na Flórida. Al Gore venceu a disputa nacional com 543 mil votos a mais, e ainda assim não chegou à Presidência.
A campanha de 2016, porém, será lembrada como uma das mais sujas da história, com várias empreitadas polêmicas, a maioria protagonizada por Donald Trump.
Após 14 temporadas à frente do programa de TV “O Aprendiz”, o bilionário introduziu o estilo “reality show” na campanha presidencial, capitalizou a “raiva” de grande parte do público contra o governo e derrotou seus muitos concorrentes na disputa republicana para se tornar o candidato presidencial do partido.
Sem um plano de governo claro, concentrou-se em insultos contra os rivais, colando neles apelidos pejorativos, como o de Hillary. Experiente e mais comedida, a democrata também acabou entrando na campanha negativa, explorando as declarações de Trump contra latinos, muçulmanos e mulheres para enfatizar que ele não tinha temperamento para ser presidente.
Com isso, a corrida presidencial foi dominada por acusações mútuas, com menos tempo dedicado a propostas e mais às personalidades de dois dos candidatos mais impopulares da história.
Passada a disputa, a grande questão é como o vencedor será capaz de unir um país rachado entre eleitorados que, em grande medida, foram movidos pelo ódio ao candidato rival.
A vitória de Trump também não deverá ser facilmente absorvida pelas lideranças internacionais, já que o republicano disparou contra muçulmanos, mexicanos, chineses, japoneses e coreanos, entre outros, gerando incertezas sobre suas posições e propostas. (FolhaPress)