Tranquilidade. Esse é o mantra do técnico Luiz Felipe Scolari, 68, desde junho de 2015 – um ano após o ocaso da Copa de 2014 -, quando deixou o Brasil rumo à China para treinar o Guangzhou Evergrande, clube no qual está até hoje. Felipão é capaz de repetir o termo dezenas de vezes ao longo de uma hora.
Em breve visita ao seu país natal, o treinador concedeu entrevista à reportagem. Com ar sereno, o sotaque gaúcho em dia e fazendo suas caretas conhecidas, falou de passado, presente e futuro. Disse ter chorado por dias a derrota por 7 a 1 para a Alemanha na Copa de 2014, mas afirmou que não mudaria nada do que fez durante o torneio com fim trágico para a seleção. Nunca o time nacional tinha perdido por tamanha diferença de gols em um Mundial.
Scolari analisou com realismo o futebol chinês, ainda distante dos polos mais tradicionais, mas em trilha veloz de desenvolvimento; e projetou seu destino longe do Brasil, tanto da seleção como dos clubes, adiantando que deve marcar presença em uma das próximas Copas do Mundo.
PERGUNTA – Você está há dois anos trabalhando no Guangzhou Evergrande. Como avalia?
LUIZ FELIPE SCOLARI – A qualidade de vida é excelente. China tem tranquilidade, segurança. As pessoas são muito corteses. É tranquilo para trabalhar. Temos um esquema de trabalho muito tranquilo: o CT é fechado, tem entrada de torcedores uma vez ao mês, é permitida a entrada da imprensa uma vez na semana, nos treinos que antecedem os jogos. É uma situação tranquila para o técnico. Estou feliz.
P – A China vive sob um regime autoritário e comunista. Como isso te afeta?
LFS – Vive-se lá como em uma democracia. Dentro do meu clube, falo abertamente com as pessoas, sem imposição ditatorial. E não vejo no dia a dia que me cerca um regime autoritário, e sim um país bastante aberto.
P – Você tem a mesma liberdade que no Brasil?
LFS – A mesma. Tem regras diferentes, então tenho que me adaptar. A vida é normal, simples, tranquila. É uma liberdade, mas com regras. Prefiro isso que uma anarquia.
P – Você tem repetido a palavra “tranquilidade”. É um refresco trabalhar na China para quem passou quase toda a carreira no Brasil?
LFS – Metade da minha carreira foi fora do Brasil. Tenho 34 anos de técnico e passei 17 deles fora do Brasil. A China é mais tranquila porque a forma de pressão é diferente, embora este ano vá ser bastante competitivo, mais do que outros anos. Tivemos mais investimento de outros clubes, e como somos campeões há seis anos está ficando mais difícil.
P – Temos a impressão de que os jogadores da China são ruins. O Corinthians trouxe o Zhizhao, que não deu certo. Qual é o nível técnico dos atletas?
LFS – Mas o Corinthians não trouxe jogador de seleção, eles tinham interesse em intercâmbio. O capitão da minha equipe jogou na Inglaterra e na Escócia. Tenho jogadores chineses que estariam em qualquer equipe da Europa. Depende do que você imagina de um chinês. Se jogássemos a Série A do Brasileiro, brigaríamos por uma posição entre 6º e 12º. Os jogadores chineses são bons. E no futebol chinês tem brasileiros muito bons. No meu time estão Ricardo Goulart, Paulinho e Alan, que estão fazendo coisinhas, viu?
P – O presidente Xi Jinping tem o projeto de transformar a China em uma potência no esporte. Como você vê isso?
LFS – Ele está dando bons passos para isso. Ele colocou o futebol no currículo escolar. Os colégios estão criando mais campos de futebol com auxílio do governo. Futuramente, com mais de 1 bilhão de habitantes, teremos bons meninos encaminhados no futebol.
P – Você quer voltar a treinar a seleção brasileira?
LFS – Não. Já passei duas vezes. Fiz meu trabalho dentro do que tinha de possibilidades, e agora a seleção tem outros parâmetros, rumos, tem outro treinador, está bem dirigida. Agora tenho um bom trabalho com o Guangzhou. Já ganhamos um título em 2017, e precisamos ganhar mais um ou dois. Pretendo ficar lá por pelo menos mais dois anos.
P – O que tem achado do Tite?
LFS – Muito bom. Mudou a personalidade da equipe, o astral, o ambiente junto à população, conseguiu os resultados, e hoje tem o grupo bem organizado na mão dele.
P – Essa geração mais nova, à qual ele pertence, gosta de se embrenhar em discussões táticas com termos específicos: compactação, terços, etc… O que você acha?
LFS – Os termos são diferentes, mas tudo é igual. Pressão alta é marcação da intermediária para frente. Primeiro terço, segundo terço… A gente diz defesa, meio-campo e ataque. É uma nomenclatura nova. Eu não uso, mas não quer dizer que não treine como são treinadas as equipes hoje. O importante é ganhar.
P – Pensa em voltar ao futebol brasileiro?
LFS – Não. Tenho até outro tipo de proposta, de um clube grande da Europa para a próxima temporada. Mas quero ficar na China. Agora, pelo que eu iria brigar aqui no Brasil como treinador? O que acrescentaria ao meu currículo? Confusão. Mesmo que fôssemos campeões, apagaria o que aconteceu em 2014? Não. As pessoas se lembrariam da Copa de 2002? Não. Tem canal de televisão que diz que os grandes campeões foram 1970 e 1994. Para eles, 2002 não existe. Fica uma situação que não quero mais viver. Há meio ano atrás, recebi o convite de uma das maiores equipes do Brasil para ser manager. Mas disse que não. Eu ainda tenho uma possibilidade, sim, de voltar a uma Copa. Não por uma seleção da América do Sul, mas da Ásia. Pode ser na Rússia, mas também para 2022 [Qatar].
P – O que deu errado na derrota para a Alemanha na Copa de 2014? O que você faria diferente se pudesse?
LFS – Não tenho muito o que justificar. Além do mais, se tirarmos o Neymar e o Thiago [Silva] da equipe do Brasil, vão fazer falta [os dois jogadores não estavam em campo na derrota de 7 a 1]. Podem querer crucificar o Thiago pela derrota para o Barcelona, mas não tem zagueiro melhor. Naquele dia, fizeram falta. E deu tudo errado. Não faria nada diferente do que fiz.
P – O ex-presidente do Coritiba, Vilson Ribeiro, disse que ouviu seus soluços na noite após a goleada. Você se lembra disso?
LFS – Tu choras por muitas razões. Muitas vezes por felicidade, porque aconteceu alguma coisa muito boa na tua vida. Mas foi uma derrota frustrante, e que era pra chorar até hoje. Mas você chora um dia, chora outro, ou não chora e sente um pouco mais. Passei muitos dias triste. Agora, a vida continua. Só levanta quem caiu e tem qualidades para levantar. Foi o que fiz. Estou muito contente com todas as atitudes que tomei depois da Copa. Lá na China já são seis títulos. E para mim o mais importante é que meus jogadores estão felizes.
(FOLHA PRESS)
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