Pilotos e outros tripulantes de voo trabalhando sem contratos regulares, e até sem diários de bordo, situação flagrada em auditoria do Ministério do Trabalho em Goiás, são um grave risco que acontece nacionalmente.
A afirmação é do diretor-presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA), comandante Henrique Hacklaender.
Segundo o atual presidente do sindicato, investigações e dados empíricos oficiais do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA) da Força Aérea Brasileira, demonstram o perigo concreto da terceirização de tripulantes.
Ele cita que uma pesquisa nos registros de duas décadas do CENIPA, realizada entre os anos de 2000 a 2020, revelou numericamente a gravidade. Neste período, mais de 50 acidentes aéreos no Brasil “tiveram contribuição de mão de obra terceirizada e sem o devido treinamento”, apontou o comandante.
A auditoria em Goiás iniciou por solicitação do SNA, em 2020. Ela foi realizada em 2021 e atingiu 11 empresas.
A situação era tão grave que, no caso de empresas que sequer enviaram documentos solicitados pelos fiscais, era impossível saber até se a tripulação possuía o Certificado de Habilitação Técnica (CHT) e Certificado Médico Aeronáutico, exigidos.
O caso em Goiás levou o Ministério Público do Trabalho (MPT) à Justiça do Trabalho (JT) no ano seguinte, 2022. Uma ação civil pública foi protocolada contra sete empresas (quatro fizeram acordo), como mostraram reportagens exclusivas do Diário de Goiás na terça e quarta-feira.
A ação da procuradora do Trabalho, Milena Cristina Costa, corre na 2ª Vara da JT de Aparecida de Goiânia. Conforme a assistência da magistrada da 2ª Vara, a juíza Eneida Martins Pereira está em fase de elaboração de sentença, com estimativa de a decisão de primeira instância sair antes de 4 de novembro.
A denúncia do MPT se baseia na constatação de que as empresas denunciadas se utilizavam de tripulantes fornecidos de forma terceirizada por uma empresa do ramo da aviação, ou apenas de forma autônoma. Mas a legislação nacional não permite nem estimula essa relação.
Ao contrário, tanto a Lei da Terceirização (lei geral nº 13.467/2017), quanto a Lei do Aeronauta (lei específica nº 13.475/2017), são explícitas em garantir que a exceção à categoria é necessária.
Consequentemente, isso leva à obrigatoriedade de contratação direta de pilotos, copilotos, comissários ou mecânicos de voo, por exemplo, pelas empresas donas das aeronaves. Mesmo que elas tenham outro ramo de atividade totalmente diverso do transporte aéreo de passageiros, juridicamente, elas são operadoras aéreas
Perguntado em que medida isso compromete a segurança de voo, o presidente do sindicato pontuou que:
“A utilização de mão de obra terceirizada implica em sérios riscos para a segurança operacional. Essa prática de prestação de serviço, seja como pessoa jurídica ou autônomo, faz com que o próprio profissional seja responsável pelo treinamento, gestão de escala de voo, gerenciamento de fadiga, gestão de locais de pernoite e de descanso, entre outras demandas que deveriam ser de responsabilidade da empresa contratante. Isso afeta diretamente o fator humano, um dos causadores de ocorrências aeronáuticas”.
Além disso, continua o comandante Henrique Hacklaender, os pilotos que atuam nestas condições podem ter a necessidade de trabalhar em vários lugares, operando diversos tipos de equipamento ao mesmo tempo.
Ele completa alertando que “essa prática dificulta a manutenção de padronizações requeridas, principalmente em casos de emergências e situações não-normais”.
Como mostrou a reportagem de quarta, ele reforça que a Lei do Aeronauta traz, em seu artigo 20, a exigência do vínculo empregatício, não apenas por se tratar de direito social para os tripulantes, “mas também por ser fundamental para a segurança de voo”.
Conforme o comandante, o problema não é exclusividade de Goiás. “Apesar do aumento da fiscalização do órgão regulador nos operadores aéreos, a informalidade na relação de trabalho entre aeronauta e empregador continua ocorrendo [nacionalmente]”.
Questionado sobre uma conivência de aeronautas com o que o MPT aponta como sendo um “esquema fraudulento para burlar a legislação”, ele aborda o contexto socioeconômico da categoria.
“Não podemos falar em ‘conivência’ de pilotos e copilotos. Muitas vezes, o aeronauta se vê obrigado a aceitar o trabalho de forma terceirizada ou autônoma por questões financeiras”, defende. Além da questão financeira, ele coloca também a peculiaridade de mais experiência (horas de voo) serem bem vistas no mercado.
“O SNA atua diretamente nos casos em que há denúncias dos aeronautas e busca auxiliar as autoridades com o objetivo de coibir tais práticas”, finalizou.
Uma audiência realizada pelo MPT em 16 de maio de 2023 comprovou a terceirização e trabalho intermitente, ambos proibidos para os aeronautas, entre as empresas investigadas em Goiás.
Das sete empresas rés, cinco apontaram a utilização de uma empresa terceirizada, a FBO Brasil Flight Support Serviços Auxiliares de Transporte Aéreo Ltda. A FBO, inclusive, se apresentou para ser parte da ação civil pública mesmo não sendo denunciada.
Ontem a empresa se defendeu alegando, entre outras coisas, exagero na análise dos riscos pela procuradora e pela reportagem. Também disse que a lei de 2017 é nova e a ação civil pública ainda vai ser julgada. Outras empresas também se pronunciaram ao DG.
O que as autoridades alegam é que a vedação à mão de obra sem contrato, é para garantir que o tripulante de aeronave mantenha a regularidade de seu trabalho diante de um complexo sistema de segurança de voo, necessário para a proteção de toda a sociedade.
Isso visa “preservar a proficiência (capacidade) técnica e também garantir a previsibilidade do trabalho, para assim propiciar a este profissional a capacidade de gerir o seu estado de fadiga”, diz trecho da ação.
A procuradora do MPT de Goiás detalha que a prática da terceirização repassa custos importantes aos próprios profissionais prestadores de serviços, como treinamento, gestão de escalas de voo, gerenciamento e fadiga, gestão de locais de pernoite e de descanso entre voos, etc.
“A consequência é que todos os itens citados possuem déficits quando gerenciados por profissionais de voo, diminuindo exponencialmente a segurança”. O mesmo se aplica aos tripulantes autônomos. Em todos esses casos, fica comprometida a chamada “atenção desperta”, fundamental para o controle de voo.
Ela cita na ação civil pública um caso emblemático que chocou o Brasil. O acidente aéreo que vitimou o candidato presidencial Eduardo Campos e a tripulação, em 2014.
O relatório de investigação do CENIPA aponta um excesso de atividades delegadas ao comandante, sem formalização das tarefas, inclusive as de manutenção. A situação desagradou um dos copilotos que se desligou após sobrecarga e falta de contrato formal. Um substituto foi convidado, sem processo seletivo mais detalhado para o tipo da aeronave, um jato Cessna Citation 560 XL.
“A comissão de investigação não encontrou qualquer informação sobre possíveis locais de descanso dos tripulantes atinentes aos períodos de espera em solo entre as etapas de voo. E pelo período em que os tripulantes atuaram para o grupo empresarial [responsável pela aeronave], não foram encontrados registros de capacitação e/ou treinamento realizado por eles”, aponta o relatório.
Junto com um relatório da Polícia Federal, o do CENIPA aponta falta de preparação e falha dos pilotos como causa do acidente, somado às condições de visibilidade ruins e falta de comunicação com o aeroporto.
A Lei do Aeronauta surgiu em 2017 diante da necessidade de renovação legislativa para enfrentar a principal queixa dos aeronautas de todo país naquela época: a fadiga. O assunto foi parar no Senado Federal, culminando na atualização de lei específica para esta atividade.
Novos instrumentos de navegação, novas tecnologias para o setor, pouco tempo para reciclagem, demanda de voos em crescimento exponencial, tudo isso exauria cada dia mais os tripulantes.
“A questão da fadiga envolvia tanto a jornada de trabalho estabelecida até então quanto o número de folgas dos aeronautas”, aponta a procuradora Milena.
Segundo ela, foi questionada no Senado a demora na implementação do chamado Sistema de Gerenciamento de Risco de Fadiga (SGRF), já aplicado na aviação em boa parte do mundo. Tão grave quanto, havia a ausência de medidas preventivas para a saúde psicológica e fisiológica dos pilotos.
Além de tudo, também foi constatada falta de adoção de medidas para prevenção de erro humano na atividade do aeronauta.
Para ela, o entendimento de que a terceirização ou o emprego de autônomos possam ser normalizados na categoria dos aeronautas hoje em dia, é ignorar todas essas constatações acima.