O secretário de Segurança Pública e Administração Penitenciária de Goiás (SSPAP-GO), Ricardo Balestreri, acredita que a área deve ter prioridade absoluta. Em entrevista aos jornalistas Altair Tavares e Samuel Straioto, Balestreri afirmou que o desenvolvimento de um país é estimulado pela segurança.
“Segurança Pública tem que ter prioridade absoluta. Se segurança pública para, você para toda a sociedade, para a educação, para a saúde, para o turismo, para o investimento. A segurança tem o condão positivo de estimular o desenvolvimento de um país, mas ela tem um condão negativo também quando não existe, de obstaculizar todas as demais áreas”, ressaltou o secretário.
Balanço de dois meses
Dois meses em administração pública é um tempo efetivamente muito pequeno. Eu cheguei aqui com acúmulo de problemas e crises que foram estourar nos últimos dois meses. Tínhamos problemas na área prisional, com alguns desvios de condutas de policiais, tivemos e temos todo o azar na área de financiamento de programas de segurança. Obviamente Goiás é um estado que está um pouco melhor que outros estados da federação, mas também sofre impacto dessa crise monumental que o Brasil vive. Sou professor de História e sei dizer com muita isenção, não sou de partido político nenhum, mas diria seguramente que é a pior crise de toda a história brasileira. É claro que todos os estados são impactados, Goiás também é impactado, o cobertor é curto para todo mundo e também é curto na área da Segurança Pública. Então, a gente precisa, às vezes, despir um santo para vestir outro.
Os detentos transferidos para o Presídio de Anápolis já retornaram para a Penitenciária Odenir Guimarães?
Parcialmente, sim. Aquela crise foi oriunda de um fenômeno nacional, que é o crescimento do grupo paulista do crime organizado. A gente procura sempre evitar, assim como é uma tratativa da imprensa, dizer o nome para não fazer propaganda. Mas temos no Brasil um grupo apenas que podemos considerar, pelos padrões internacionais, como crime organizado, que é o grupo que se estruturou a partir dos presídios de São Paulo. Temos vários outros grupos em disputa de poder que chamamos de organizações delinquenciais. São fortes, poderosas, mas não tem aquele nível de crime organizado.
O que é crime organizado?
É quem tem vertentes internacionais, cobra mensalidade ou anuidade, quem tem um tipo de estruturação nacional e internacional mais sofisticado. Então, temos no Brasil um grupo organizado, que é o paulista, e vários outros grupos perigosos também, que são organizações delinquenciais. O segundo em força no Brasil é um grupo que vem do Rio de Janeiro. Esses grupos estão presentes em todo o território nacional hoje. Lamentavelmente, esses grupos estão em confronto dentro dos presídios.
Esse crescimento ocorreu em todo o país?
Este é um dos grandes fatores de crescimento da violência. No país inteiro, o sistema mais difícil de ser administrado é o sistema prisional, que vive uma crise sem proporções nos dias presentes no Brasil. A solução não se apresenta a curto prazo, é de médio a longo prazo. Temos superlotação, temos mais de 622 mil presos, em torno de 400 mil mandados de prisão não cumpridos porque não tem lugar para colocar os novos presos, e uma geração superior a 30 mil novos mandados de prisão por ano. É claro que temos que construir presídios, temos que aumentar vagas, mas eu também quero dizer que essa política de simplesmente construir presídio e aumentar vaga, se ficar só nisso é populismo. Não há como resolver e construir presídio a tempo da guarida dos 400 mil mandados de prisão não cumpridos e mais 30 mil novos a cada ano. Nenhum estado, a própria União não tem condições, recursos, ritmo, time para fazer isso a tempo de ter a guarda de todos esses presos. Então, a gente tem que construir vaga, mas temos que mudar a legislação e a política judicial e prisional no Brasil.
Porque?
Os presídios hoje no Brasil são caixas de perversidade, são escritórios do crime, onde a gente amontoa pessoas de níveis de periculosidade diferentes. Tem ali desde o bandidão, que é líder do crime organizado até gente que cometeu delitos de pequeníssima monta e não representa risco para a sociedade. Nesse sentido, se nós não formos mais seletivos com os presídios – nós precisamos prender com mais rigor, mais força, mais energia aqueles que são perigosos – e precisamos executar com mais seriedade as chamadas penas alternativas, temos que monitorar as penas alternativas para grande massa prisional que é recuperável.
Os militares reclamam de “enxugar gelo” com a recorrente prisão e liberação de detentos
É verdadeira essa constatação, mas é rasa, é superficial. Hoje no Brasil se trata a questão da Segurança Pública muito mais com o fígado e a biles do que com cérebro e neurônios, as pessoas não raciocinam por ignorância, por falta de conhecimento. A pessoa comum, às vezes até o gestor comum, que não estudou, que não se aprofundou e é populista, que quer agradar a plateia, faz um raciocínio da lógica da eliminação. Se a gente prender todo mundo resolve o problema. Seria bom se isso desse certo, mas não dá. Isso é populismo, para agradar a massa. O que a gente sabe é que os presídios brasileiros estão explodindo de gente e, por isso, se transformaram em escritórios do crime. Ali dentro circulam todas as grandes organizações criminosas, é ali que o bandido pequeno é contaminado pelo bandido grande, que o pequeno passa a fazer parte dos negócios grandes crimes. Isso tudo acontece por uma coisa chamada superlotação. Com a superlotação de presídio, o Estado não tem condições de controlar. Quem controla é o bandido perigoso, o psicopata, aquele que representa 2%, 3% da massa prisional.
A ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, também questiona que 40% dos presos poderiam estar fora dos presídios
Na verdade, qualquer pessoa que tem um pouco de estudo sobre a área e aprofundamento dirá a mesma coisa. Só quem não diz isso é realmente quem joga para a plateia e está afim de agradar a multidão que, com toda razão, está muito irritada porque falta segurança; impaciente porque se sentem trancada em casa enquanto os bandidos estão soltos; é isso que se repete muito. Mas além da irritação, a gente precisa começar a usar o cérebro para resolver.
Como fazer isso?
É você olhar e se dar conta de que a grande massa prisional é recuperável, é o que no jargão popular é chamado de “bandido chinelão”, aquele que não é perigoso para a sociedade, que cometeu um delito, mas é recuperável. Quando você coloca esse bandido chinelão ao lado de bandido articulado, fazendo o contrário daquilo que diz a Lei de Execuções Penais, que não é cumprida de maneira geral no Brasil, é fácil perceber quem vai dominar o quadro, é o bandido perigoso. Como funciona um presídio mediano hoje no Brasil? O sujeito cometeu um delito pequeno, ao entrar no presídio o chefão ou chefete do setor do presídio o encontra e diz: “Você tem tantos filhos, o nome deles é tal, eles moram em tal bairro e tal rua”. Diante disso, não é preciso dizer mais nada. A partir daí, ele tem o domínio dessa pessoa dentro do presídio e como ela cometeu delito pequeno, ela vai sair rápido e você passa a ter o domínio dela fora do presídio também. Essa pessoa vai ser ordenada de dentro do presídio para cometer crimes fora do presídio. Os presídios hoje no Brasil, não só em Goiás, são centros de arregimentação de criminosos pelos grupos organizados. A gente resolve isso com um grande mutirão entre o poder Executivo, Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública para recuperar a maior parte da massa prisional que tem recuperação, mas não dentro do presídio do estilo brasileiro, ali não tem recuperação. Em presídio, a única guarida que alguém que queira se recuperar pode encontrar normalmente é quando tem algum grupo religioso bem estruturado. Todos os estudos mostram isso. A única chance que ele tem de não se tornar mais perverso e mais criminoso dentro de um típico presídio brasileiro é entrando em um grupo religioso forte, bem estruturado, que te dê proteção. Apenas isso e nada mais é respeitado pelos bandidos perigosos. Eu, por exemplo, estimulo muito a prática religiosa dentro do presídio porque ela realmente é recuperatória. Existem estudos feitos no Brasil e no mundo inteiro comprovando que isso funciona. Fora isso, temos que fazer, infelizmente, uma longa jornada, porque as coisas chegaram no ponto que chegaram no Brasil inteiro. É uma longa jornada para diferenciar políticas para a maioria que está ali encaixotada, vivendo como bicho e na promiscuidade com gente muito perigosa. A política é recuperar através de trabalho, de educação, de prática religiosa, de penas alternativas monitoradas e acompanhadas com seriedade pelo Estado. Por isso estamos criando aqui Centrais de Penas Alternativas. Tem gente que não conhece, por ignorância, e debocha. Diz que é moleza. Não, moleza é colocar o sujeito dentro do presídio para ele fazer parte de uma organização criminosa e esquecer que um dia ele volta para a rua para barbarizar a cidade. Para eu não ser mal entendido, eu não defendo política frouxa, acho que temos que ser mais duros com quem merece a dureza e mais recuperatórios com quem tem recuperação.
Qual sua posição sobre a ideia de desmembrar a Secretaria de Segurança Pública e Administração Penitenciária?
Eu sou totalmente favorável a isso. No Brasil inteiro a tendência é essa separação em duas Secretarias. Já temos 19 Estados fazendo isso. Isso se dá em função de uma recomendação internacional que diz sinteticamente que quem prende não deve ser quem guarda. Porque? Primeiro por um princípio diria até filosófico pedagógico. Quem prende envolve um tipo de energia que é diferente daquele que é o guardador do preso. Se você prende, você tem um envolvimento mais emocional com a prisão. Mas não é só isso. Tem uma questão de ordem administrativa. Se quem prende é quem guarda e o sistema é muito carente, com o tempo você começa a ter a tentação de começar a usar a polícia que prende para também ser ela quem guarda. E a polícia não foi feita para guardar preso. A polícia tem outra finalidade, outra expertise, outra formação. Quem guarda preso é agente prisional. Se você tem os dois sistemas juntos, com uma carência muito grande, com o tempo as falhas e faltas começam a aparecer. Falta agente prisional, espaço físico. A tentação é de que você começa a jogar preso em delegacia, a trazer a Polícia Militar para guardar preso e isso é uma confusão inadmissível. Não se pode fazer isso. Esse é um dos freios de arrumação que o governador me pediu para colocar no Estado para corrigir falhas do sistema. Temos hoje uma grande quantidade de policiais militares e civis envolvidos com guarda de preso. Isso é inadmissível em qualquer parte do mundo.
Como está a convocação de agentes prisionais?
Estamos convocando. Há duas semanas, o governador tomou a decisão de convocar o restante dos concursados. Então, vamos ter o ingresso de aproximadamente 1,1 mil novos agentes penitenciários até julho. Por outro lado, estamos perdendo os temporários. O agente temporário tem uma função, nos ajudou, somos gratos, mas ele não é o ideal. Para cuidar de preso, tem que ter alguém altamente profissionalizado. Temporário só quebra-galho em situações. Estamos fazendo essa contratação, mas é importante que isso se dê no quadro da separação dos dois sistemas.
Quando?
O mais imediato possível. O governo já está com a máquina rodando para chamar o quanto antes. Não podemos ter morosidade com essas questões. Com o sistema prisional tudo tem que ser muito rápido, senão os problemas avançam antes do ritmo do Estado. Estamos já chamando os primeiros 400 aprovados, e já temos o ordenamento do governo para chamar o resto.
A possibilidade de desmembramento da Secretaria de Segurança Pública e Administração Penitenciária gerará mais custos para o Estado?
Do ponto de vista econômico, a separação vai representar pouco ônus para o governo. Na verdade, a área de Administração Penitenciária já tem praticamente tudo que precisa para funcionar, só que ela está dentro da Secretaria de Segurança Pública. Ela já foi separada. Tem aqui um casa e separa, casa e separa. A gente tem que evitar fazer isso sem conteúdo. Quando começa haver muita variável é porque falta densidade de conteúdo. Então, encaminhamos um estudo ao governo para a separação, que já é um estudo de conteúdo, ele abre a porta da discussão de um modelo prisional que queremos e que falta em Goiás. A gente não tem o modelo prisional claro, é uma confusão de modelos. Qual é o modelo que queremos? Qual o tipo de administração queremos?
Qual é o modelo prisional ideal?
Uma das discussões que se faz hoje com muito vigor, com muita seriedade no Estado é, por exemplo, o modelo co-gestionário, onde tem, por exemplo, unidades prisionais menores que podemos aproveitar a estrutura das entidade sociais sem fins lucrativos. No governo de Minas Gerais, por exemplo, foi um sucesso absoluto. Agora, no Rio Grande do Norte, em meio à toda rebelião prisional, não tivemos nenhuma revolta prisional e nenhum problema nas unidades administradas pela APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados). Então, é um sucesso no Brasil inteiro. Acho que está na hora de Goiás se abrir um pouco para o resto do Brasil. Como chegante, a impressão que tenho é que a população aqui é diferenciada, acolhe a gente com muita hospitalidade, de uma maneira muito diferente. Agora, é preciso que a gente, como amigo de Goiás, também veja aquilo que faltou historicamente. Acho que historicamente faltou Goiás olhar um pouco para o resto do Brasil, não ficar tão fechado em si mesmo, trazer experiências que deram certo em outros estados. Não é vergonha imitar e adaptar localmente alguma coisa que deu certo em outros lugares. Assim como algo que dá certo em Goiás e outros estados vão adaptar lá. Estamos neste momento mandando equipes a Minas Gerais para conhecer experiências bem sucedidas. Isso tudo faz parte de um processo de separação. Não é só separar, é separar com modelo, com uma visão consistente de conteúdo, saber porque estamos separando, que é para dar atenção exclusiva ao sistema prisional 24 horas por dia. Dois sistemas juntos não permite você ter foco.
O que o senhor quis dizer quando falou que “é preciso respeitar os direitos humanos dos policiais”?
Direitos Humanos é um termo muito confuso para a maioria das pessoas, até porque no Brasil às vezes o Direitos Humanos foi usado com viés mais ideológico, mais partidário. O que é importante é lembrarmos que Direitos Humanos do ponto de vista internacional é aquilo que a ONU defende, que se estabeleceu com regras claras a partir da destruição causada pela Segunda Guerra Mundial. Vamos elencar alguns defensores de Direitos Humanos ao longo da história humana: Jesus Cristo, Madre Teresa de Calcutá, Martin Luther King, Gandhi, assim por diante. Se quisermos brigar com a questão do Direitos Humanos em si, a gente tem que brigar com todo esse povo. É preciso que a gente desmistifique essa questão de Direitos Humanos e lembre que os policiais também têm. Isso significa que precisamos respeitar os direitos dos policiais se queremos que eles nos respeitem e promovam os direitos da sociedade. Você só consegue fazer aquilo que você pratica. Tem um filósofo norte-americano que eu gosto muito, Ralph Emerson, que diz: “O que você é fala tão alto que não se escuta o que você diz”. Isso significa que nosso exemplo que carrega as pessoas e não o discurso. Então, nós precisamos tratar os policiais com respeito internamente. Tratá-los com respeito é ter um código de ética que não os massacre, como os velhos regulamentos disciplinares herdados da Ditadura Militar, que ainda são usados na maior parte do Brasil e que ainda estão em parte em vigor em estados como Goiás. Nesse sentido, estamos produzindo um Código de Ética moderno. O problema não é o militarismo, temos quase 100 polícias no mundo inteiro de estética militar. A quase totalidade delas estão em países democráticos. Então, não tem problema ter recorte militar. Pode ter recorte militar e civil e ambos os recortes são extremamente adequados e competentes. O que precisa é ter esse recorte com uma linha moderna, precisamos de um militarismo moderno.
O que um Código moderno prevê?
Um Código de Ética pressupõe o dever da polícia, mas também tudo aquilo que é direito da polícia. Por exemplo, o direito de ser tratado com dignidade no seu período de formação, de não sofrer bullying, práticas abusivas. Não estou dizendo que a formação da Polícia tem que ser frouxa. O policial tem que ter resistência física, resistência psicológica, mas isso é diferente de bullying, de maus-tratos. Não estou dizendo que isso aconteça em Goiás, estou dizendo que ao longo da história brasileira nós tivemos muitas práticas internas de desrespeito aos direitos dos policiais. Ai você faz um discurso bacana, fala: “Você, policial, tem que promover os direitos da sociedade”. Como ele vai entender isso se os direitos dele não são promovidos? Todos os direitos, o direito a ter equipamento decente, a receber ordem do superior com respeito. Uma coisa é receber ordem, mas hierarquia e disciplina são princípios impessoais. Outra coisa é receber ordem com humilhação. A humilhação é inadmissível. Então, isso significa os direitos humanos dos policiais. Queremos que os policiais promovam os direitos da sociedade, mas também temos que promover os direitos humanos do policial, reconhecê-lo como um ser humano por trás da farda, do distintivo, do colete. Ali bate um coração.