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Categorias: Brasil
| Em 8 anos atrás

‘Qualquer um enlouqueceria em um presídio’, diz juiz do Amazonas

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Luiz Carlos Valois é juiz da Vara de Execução Penal do Amazonas e autor do livro “O Direito Penal da Guerra às Drogas”. Ele cuida de 95% das penas dos detentos do Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), onde há três semanas 59 presos morreram decapitados, esquartejados e carbonizados.

Na noite do dia 1° de janeiro, Valois foi chamado às pressas pelo secretário da segurança do Amazonas, Sérgio Fontes, para ajudar nas negociações de um motim de presos dentro do presídio. Chegou tarde. Naquele dia 56 homens foram assassinados por companheiros de cadeia na segunda maior tragédia do sistema prisional brasileiro. Uma semana depois da rebelião, mais três corpos foram encontrados.

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A causa da matança foi a briga entre facções. Uma semana depois de Manaus, 33 presos morreram na Pamc (Penitenciária Agrícola de Monte Cristo), na zona rural de Boa Vista (RR).

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No último dia 14, 26 presos foram mortos na penitenciária de Alcaçuz, em Nísia Floresta (RN), após um confronto entre membros do PCC (Primeiro Comando da Capital) e do Sindicato do Crime do Rio Grande do Norte -o número de mortos pode ser maior.

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A guerra se espalhou pela cidade, ônibus e carros oficiais foram incendiados.

Os governos dos Estados tentam solucionar o problema transferindo presos e separando as facções. O presidente Michel Temer (PMDB) liberou homens da Força Nacional e das Forças Armadas para atuarem nas ruas e garantir a segurança durante as revistas nos presídios.

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Segundo Valois, o que nos falta é apenas cumprir à risca a Lei de Execuções Penais, e construir uma política séria de drogas. “Nós simplesmente seguimos a política de ‘Lei e Ordem’ norte-americana e está dando no que a gente está vendo.”

A reportagem conversou com Luiz Carlos Valois em Manaus. Leia a entrevista:

Pergunta – De um psicopata se espera que possa decepar cabeças e esquartejar corpos, mas até onde se sabe, nem todos os presos que participaram das rebeliões eram psicopatas…

Luiz Carlos Valois – Eu tenho pensado muito nessa questão da violência da rebelião. Mas se você lembrar, um dia antes, uma pessoa, um pai de família, pulou o muro de uma casa, e matou doze pessoas, inclusive o filho [em Campinas]. Uma pessoa que estava vivendo em liberdade, com seu trabalho, sua vida. Foi lá, estacionou o carro e matou doze. Imagina uma pessoa encarcerada, naquela violência, naquela imundice, naquela situação de super lotação, dormindo debaixo de cama de cimento, no próprio cimento, naquele calor, o calor de Manaus. Não vou dizer que isso é justificável porque nada justifica aquela barbárie, mas eu tenho pensado muito nisso. Eu recebi recentemente um vídeo de um rapaz que sofreu um acidente de moto e na hora disseram que ele tinha cometido um assalto. Um homem, que estava passando na rua, pegou uma pedra e simplesmente esmagou a cabeça do rapaz. Ele esmagou a cabeça de uma pessoa que tinha acabado de sofrer um acidente porque ouviu dizer que ela tinha cometido um assalto. Ouviu dizer, julgou, condenou e executou a sentença, em menos de cinco minutos.

Estamos vivendo um momento muito difícil, um momento de ódio, e isso passa para a massa carcerária. Eu acho que nem eles estavam prevendo tantas mortes. O momento que a gente está vivendo é muito perigoso.

Pergunta – É possível enlouquecer dentro de um presídio?

Com certeza absoluta. Qualquer um de nós enlouqueceria dentro de um presídio. Qualquer pessoa que tomou café com a mãe, jogou bola com o pai, brincou com os irmãos, foi pescar com o tio, nunca, nunca poderia pensar em ter qualquer conivência com aquela barbárie que aconteceu. A prisão animaliza a pessoa, a prisão infantiliza a pessoa. Tem horário de tomar café, almoçar, jantar. Ela não faz nada, e ainda fica entre grades. A ignorância é enorme no sistema penitenciário. Nós pegamos uma população ignorante, que cometeu crime, e colocamos tudo junto, amontoado, num lugar horrível. Não pode dar boa coisa.

Pergunta – Como o senhor se sente com isso?

O juiz da execução penal tem que zelar pelos direitos do preso e, ao mesmo tempo, garantir o funcionamento adequado do sistema penitenciário. No Brasil, ele não faz nem uma coisa nem outra porque o sistema é do jeito que é -os direitos do preso são só minimamente cumpridos. Às vezes, me perguntam: por que o senhor não solta todo mundo já que a prisão é ilegal?

Pergunta – Por que é ilegal?

Porque a prisão que está na lei é uma, e a prisão que existe na realidade é outra totalmente diferente. Então, a minha função é tentar garantir o máximo possível, o que é muito pouco, dos direitos dos presos, direitos que estão na lei -não sou eu que estou inventando. Eu costumo dizer que não sou Madre Tereza de Calcutá, eu não gosto de preso. Eu estou exercendo a minha função, tenho que lidar com o direito do preso e zelar para que ele seja cumprido. Não é tão complexo quanto condenar porque acho que condenar pesa mais porque você está colocando aquela pessoa lá, mas, ao mesmo tempo, quem está mantendo aquelas pessoas presas, quem está legitimando aquilo sou eu, o juiz da execução penal. A minha consciência fica mais aliviada sabendo que estou tentando fazer cumprir a lei. Fazer cumprir a lei, dentro do Estado democrático de direito, é o único caminho.

Pergunta – A cada dez anos o Brasil dobra a população carcerária. O que está acontecendo?

A política norte-americana de guerra às drogas. Cerca de 40% a 50% da população carcerária brasileira está relacionada à política de drogas. Quer dizer, é o pequeno traficante, pessoas que estavam com duas ou três trouxinhas -usuários que a polícia colocou como traficante. O Brasil é o quarto país que mais encarcera no mundo em acordo com a política norte-americana. Uma vez um jornalista americano me perguntou por que o Brasil é assim. Respondi que nós seguimos a politica de vocês [americanos] para prender mais, mas nós não temos o dinheiro para construir mais penitenciárias. Então, aqui vira um caos. O sistema penitenciário só tem duas soluções: ou prende menos ou constrói mais penitenciária. Então você segue essa política e estamos colocando as pessoas dentro do sistema penitenciário por causa de uma relação comercial. Mas são pessoas do varejo.

Pergunta – E o atacado?

Está voando de helicóptero, a gente só prende o varejo. E no varejo são pessoas substituíveis a qualquer momento. A pessoa está vendendo na esquina e é preso, o tráfico vai lá e a substitui. Prende o substituto, o trafico vai lá e o substitui de novo. Nós estamos criando um exército para o crime organizado e não estamos resolvendo nada porque a droga continua na rua, de péssima qualidade e matando. Essa política de prender uma pessoa que está numa relação comercial que não é violenta -um vende, o outro compra- e misturar com latrocida, homicida, estuprador, é um absurdo. E pior, a gente prende uma pessoa porque está vendendo uma substância em um lugar que também vende a substância.

Enquanto isso, o Estado perde dinheiro porque poderia estar regulamentando essa droga, cobrando imposto. Mas não, passa esse dinheiro para o crime organizado, e a droga continua na rua, e a população aceitando a superpopulação carcerária, a corrupção da polícia.

Pergunta – Como funciona nossa política de drogas?

Nós simplesmente seguimos a política de “Lei e Ordem” norte-americana e dá nisso que estamos vendo.

[No sistema carcerário] só tem negro, pobre, miserável. Antigamente, para ser preso a gente dizia que tinha que ter os “três pês”: preto, pobre e puta. Eu digo que hoje em dia tem que ser pobre e azarado porque a criminalidade está ai. Esse negócio de dizer “ah, vamos aumentar a pena que vai diminuir a criminalidade”, não! Você aumenta a pena e aumenta a sensação de impunidade do criminoso que pensa que aquele que foi preso é besta porque caiu preso, e ele está solto porque é esperto. Aumentar a pena não diminui a criminalidade.

Pergunta – O que diminui a criminalidade?

O trabalho de investigação da polícia. Porque a polícia vai para esquina, prende um cara com duas, três, 20 trouxinhas, volta para delegacia e já trabalhou. Você é assaltado, você é sequestrado, vai lá, faz um B.O. (Boletim de Ocorrência) e não acontece nada. Por que a polícia não investiga esses crimes? Porque ela prende na esquina, dois, três, quatro, cinco, e já trabalhou. A própria politica de drogas tem direcionado a atividade da polícia para prender pessoas do varejo da droga. Isso porque é muito mais fácil, não dá trabalho não tem que investigar.

O judiciário tem permitido que a pessoa seja presa apenas com o testemunho do policial. Então é fácil para a polícia, ela vai lá, pega o cara, diz que é traficante, sendo que ela é a própria testemunha.

Eu mesmo já fui sequestrado, fiquei refém, cheguei na delegacia, fizeram o B.O. Nunca me chamaram para me ouvir, para reconhecer foto, nada. Por que? Porque a policia está na rua fazendo blitz. A segurança publica brasileira é a segurança de blitz. Isso é muito sério e acontece em razão da política de drogas.

Pergunta – Sua tese fala da fragilidade de uma prisão baseada apenas no testemunho do policial…

No doutorado, que resultou no livro “O Direito Penal da Guerra às Drogas”, eu analisei os autos de prisão em flagrante de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Porto Alegre e Distrito Federal. Em 90% desses autos, só tem testemunha policial. O Código Penal diz que a testemunha tem que ser o mais próximo possível do fato. Tráfico de drogas é uma relação comercial, tem que ter outra testemunha daquele tráfico, não pode ser só o policial. Eu defendi na minha tese que a testemunha não pode ser o policial em crime de comércio porque se a polícia, que tem interesse em prender traficante, é também testemunha, a pessoa fica sem direito de defesa.

Eu, como juiz, tenho que seguir a tese que eu defendi, então, na maioria dos autos de prisão em flagrante, se realmente não tem nenhuma investigação, se somente o policial é a testemunha, eu permito que a pessoa responda em liberdade. Muita gente me critica, mas eu não solto a droga, a droga está presa, eu solto só a pessoa porque eu acho que é muito pior para sociedade que uma pessoa que está envolvida com comércio de drogas, uma relação comercial sem violência, seja misturada com latrocida, homicida.

Pergunta – Por que a força das facções aumentou tanto dentro das cadeias?

O próprio Estado é culpado disso. Por exemplo, em São Paulo, a pessoa vai presa e perguntam: “qual é a tua facção?”. Ela responde: “eu não tenho”. Dai o delegado pergunta o bairro em que ela mora. Mooca? Ah, a Mooca é PCC [Primeiro Comando da Capital], vamos colocar você aqui no [presídio do] PCC. O preso entra lá e tem que ser do PCC. Além disso, o sistema penitenciário do Brasil, com sua preocupação exclusiva de evitar rebelião, evitar fuga, tem funcionado na base do acordo com esses presos. Então, eles crescem. Por isso, eu não gosto de legitimar esse negócio de crime organizado. Você vai lá e diz que o cara é líder de facção, ele não é líder de nada, ele é preso. O preso tem que ser tratado como preso.

Pergunta – Qual seria a solução para a crise do sistema penitenciário?

Qualquer solução passa por cumprir a lei. Se a Lei de Execução Penal não é cumprida, como é que a gente vai procurar solução? A solução é a ilegalidade? Ninguém pode me pedir solução para o sistema penitenciário, se ele é ilegal. Outro dia me pediram para dar exemplo de um bom modelo de sistema penitenciário. O modelo de sistema penitenciário melhor do mundo é o nosso, só que na lei, não na realidade.

Pergunta – Quais ilegalidades são cometidas?

Se você pegar, em qualquer página da Lei de Execução Penal você encontra um artigo que não é cumprido. A cela tem que ser arejada, o preso tem que ter uma cela individual, educação, saúde, assistência social. O preso teria toda capacidade de se reinserir à sociedade se essa lei fosse cumprida. Por exemplo, qual estabelecimento tem psicólogo, assistente social, médico? Não tem. Visita íntima.

Por exemplo, existiam dois presos, um morreu na chacina, o outro matou, degolou, esquartejou lá dentro. Esse, o que ficou vivo, vai sair um dia porque no Brasil não existe prisão perpétua. Não era melhor cumprir a lei e soltar os dois reinseridos na sociedade? Com diz um professor meu: um dia ele está contido, no outro ele está contigo.

Pergunta – Essas chacinas vão alimentar o discurso daqueles que pregam a pena de morte?

Independentemente de pena de morte ou de 50 anos de prisão, que é um pena de morte em vida, o que faz um criminoso cometer crime é a sensação de impunidade. Agora, a morte parece muito para nós, que temos trabalho, que nos alimentamos, que temos estudo. Para eles, para a massa carcerária do jeito que é hoje, não. Não vai adiantar nada, é brincar de fazer política criminal. O único argumento que existe para pena de morte é o ódio, é para satisfazer o “meu” ódio. Mas é bom para a sociedade a gente ter um patíbulo no meio da praça?

Pergunta – O senhor é abolicionista?

Há dois tipos de abolicionistas, o da punição e o da prisão. Eu acho que não dá para acabar com a punição, a gente nasce sendo punido, ela vai sempre existir. Eu sou um abolicionista da prisão. De ideia. Porque eu, obviamente, não posso ser um abolicionista no meu trabalho. Não posso soltar todo mundo senão quem vai preso sou eu. Mas, mesmo no meu trabalho, eu considero que a prisão é em último caso, em casos extremos. Todo livro de direito diz isso por causa dos males que a prisão causa. Eu não consigo imaginar a sociedade daqui a cem anos ainda encarcerando as pessoas. A prisão não é resultado de nenhum experimento científico, e se tivesse sido, já vimos que não funciona. A tecnologia está avançando. Há as tornozeleiras eletrônicas, chip, e as penas alternativas. A prisão não tem nenhum sentido lógico. Em termos filosóficos, eu sou sim um abolicionista.

Folhapress

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