Na primeira vez em que esteve na Alemanha, a estudante de jornalismo Marina Facina, então com 24 anos, achou estranho quando foi a um bar em Munique, uma das principais cidades do país, e recebeu na mesa uma cerveja fresca. “Não dá para falar que estava quente, mas, para os padrões brasileiros, estava ‘pelando’”, conta entre risos.
Meses – e muitos outros chopes – depois, ela acostumou com a maneira de consumir a bebida dos germânicos e passou a estranhar o costume brasileiro de privilegiar a cerveja mais gelada possível. “Coisas de um país tropical”, completa ela.
Algumas cervejas, no entanto, são famosas justamente por sua temperatura. É o caso das chamadas trapistas, oriundas dos mosteiros da Ordem Trapista, muito comuns na Bélgica, onde há até um roteiro para degustá-las. Segundo alguns sites especializados em cervejas, a Bélgica, um dos países mais famosos no mundo pela sua produção da bebida, é o que tem o maior número de mosteiros que oferecem esse tipo de cerveja.
Há até um selo de autenticidade desse tipo de cerveja (o ATP – Authentic Trappist Product), distribuído pelo instituto que regula a produção industrial na França – desde os anos 30, os produtores desse tipo da bebida estão envolvidos em brigas judiciais pelos direitos do termo “trapista” nos rótulos das garrafas. Em 2015, apenas 12 cervejas em todo o planeta tinham o selo ATP, seis na Bélgica, duas na Holanda, uma na França, uma na Áustria, uma na Itália e uma nos Estados Unidos.
A Ordem Trapista é, na verdade, um grupo católico iniciado no século 17 na Europa pelo teólogo francês Armand Jean Le Bouthillier de Rancé, que, em uma visita ao mosteiro de Notre-Dame de la Trappe, na região francesa da Normandia, em 1662, notou que as instalações do prédio, fundado no ano de 1140, estavam em ruínas, resolvendo reformá-lo. O trabalho de Rancé com os monges durou seis anos, mas, antes de ser finalizado, ele se tornou abade pelo bispado de Sées, que administrava o mosteiro de La Trappe. Assim, antes mesmo de terminar a reforma do edifício secular, tornou-se o seu principal líder espiritual.
Sua medida mais importante no comando de La Trappe foi defender a chamada “estrita observância” das regras monásticas da Igreja Católica, em contraposição à “comum observância” praticada por algumas ordens cristãs da época, que eram menos rígidas em relação aos modos de se viver. Rancé acreditava que a religião precisava retornar a um sacrifício “autêntico” dos indivíduos, ainda que os monges pudessem viver em comunidade, e não sozinhos como em alguns monastérios europeus. O silêncio era uma das tarefas essenciais da aproximação com Deus. Por causa do nome da cidade, a ordem fundada por Rancé ficou conhecida como “trappiste” (em português, “trapista”).
Em suas reclusões, os monges produziam diversos produtos, como queijos, pães e… cervejas. No entanto, ao contrário dos alemães, que se mantiveram fiéis às maneiras de fazer a bebida – com lúpulo, malte, fermento e água –, os monges belgas utilizavam diversos outros produtos, de frutas a tipos de chocolates, o que gerou uma diversidade de sabores entre os mosteiros que se dedicavam a esse tipo de trabalho. Uma reportagem do site brasileiro Comidas e Bebidas publicada recentemente afirmou que as “cervejas trapistas estão para a categoria como os champanhes estão para os espumantes”.
Um dos métodos comuns das trapistas é o tipo de brassagem: a água é passada pelo mosto de três a quatro vezes, constituindo a chamada “cerveja tripla”, que, da mesma forma, é três vezes mais forte que a comum. Depois desse processo, diversos ingredientes particulares são adicionados, como chocolates, cascas de frutas e especiarias, dando uma aura de exclusividade para cada mosteiro que produz a bebida. Enfim, quando terminado o trabalho, as garrafas jamais são colocadas para gelar: elas são armazenadas nos próprios mosteiros, onde são vendidas para financiar causas sociais.
Portanto, a cerveja trapista é comumente servida em temperaturas que variam entre 10 e 12 °C, muito diferente do modo brasileiro de consumir, geralmente abaixo de zero. Algumas empresas nacionais, valendo-se dessa característica, chegaram a comercializar cervejas especiais com rótulos que exaltavam a necessidade de estarem “estupidamente geladas”.
O sommelier José Honorato, do Senac do Rio de Janeiro, acredita que o costume brasileiro tem a ver com o clima. “Um país tropical como o nosso tem até certa exigência pela cerveja gelada. Não tem jeito”, conta. Para ele, porém, consumir a bebida nessa temperatura pode atrapalhar a degustação. “Ao consumir a bebida gelada em excesso, ou seja, entre 0 e –1 °C, anestesiamos nossas papilas gustativas, responsáveis pelo sentido dos sabores. A uma temperatura entre 2 e 5 °C podemos sentir o sabor e ainda assim ter no copo uma bebida gelada”, completa.
Para quem não está na Bélgica, mas quer tomar uma cerveja belga – não uma trapista, claro –, há diversas lojas especializadas no país que oferecem alternativas, como a Wbeer, que tem centenas de opções – todas com temperatura amena.