Uma realidade histórica do Brasil se tornou ainda mais dramática nos últimos anos: cada vez mais jovens e negros morrem no Brasil. É o que mostra o relatório Atlas da Violência 2017, divulgado na manhã desta segunda-feira (5).
Elaborado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), órgão ligado ao governo federal, em parceria com o FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), ONG especializada no assunto, o estudo analisou dados do SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade), do Ministério da Saúde, que traz informações sobre incidentes até o ano de 2015.
Em 2015, houve, no Brasil, 59.080 homicídios, o que equivale a uma taxa de 28,9 por 100 mil habitantes.
“Isso é equivalente a um avião caindo todos os dias no Brasil”, diz Samira Bueno, diretora executiva do FBSP.
“Trata-se de um número exorbitante, que faz com que em apenas três semanas o total de assassinatos no país supere a quantidade de pessoas que foram mortas em todos os ataques terroristas no mundo, nos cinco primeiros meses de 2017, e que envolveram 498 casos, resultando em 3.314 indivíduos mortos”, compara o relatório.
O perfil típico das vítimas fatais: homens, jovens, negros e com baixa escolaridade. De 2005 a 2015, a violência contra jovens e negros tenha aumentado ainda mais.
“Há, no Brasil, uma licença para matar, desde que isso aconteça fora das áreas nobres das cidades”, diz Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea e um dos autores do estudo.
Segundo o relatório, homicídios contra jovens vinham crescendo menos nas últimas décadas -89,9% nos anos 1980, 20,3% nos 1990 e os anos 2,5% nos 2000. Entre 2005 e 2015, no entanto, houve um aumento de 17,2% na taxa de homicídio de indivíduos entre 15 e 29 anos. Foram 318 mil.
Em 2015, a taxa de mortes entre 15 e 29 anos para cada grupo de 100 mil jovens foi de 60,9. Se apenas homens jovens forem levados em conta, este indicador aumenta para 113,6 -a taxa geral por 100 mil habitantes foi de 28,9.
“Isso tem a ver com a falta de investimentos em outras áreas. Quanto mais anos de escolaridade, menor é a chance de homicídio. O Rio de Janeiro é exemplo disso com a política de UPP [Unidade de Polícia Pacificadora]. A polícia subiu os morros sozinha, então não deu certo”, diz Bueno.
Para ela, não há uma resposta clara para por que essas taxas pioraram após algumas décadas de melhora.
“É curioso notar que o crescimento econômico e a redução da desigualdade que o Brasil viveu nas últimas décadas não se traduziu em melhora. O crescimento econômico é positivo, mas, sozinho, não dá conta”, diz Bueno.
A violência também avançou contra negros entre 2005 e 2015. Enquanto houve um crescimento de 18,2% na taxa de homicídio de negros, a mortalidade de indivíduos não negros diminuiu 12,2%.
Os autores do estudo estimam que o cidadão negro possui chances 23,5% maiores de sofrer assassinato em relação a cidadãos de outras raças/cores, já descontado o efeito da idade, sexo, escolaridade, estado civil e bairro de residência.
“Isso mostra que a cor da pele tem um peso nessas mortes. Os pesquisadores ainda estão tentando entender isso melhor”, diz Bueno.
“Talvez tenha a ver com um legado de racismo. Alagoas, por exemplo, é um dos Estados com a maior disparidade entre a morte de negros e brancos, e talvez não por acaso seja a terra de Zumbi dos Palmares”, diz Cerqueira.
O aumento da violência contra a população negra também foi observado nos dados de mortes de mulheres. Em 2015, 4.621 mulheres foram assassinadas no Brasil, o que corresponde a uma taxa de 4,5 mortes para cada 100 mil mulheres. Enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras diminuiu 7,4%, entre 2005 e 2015, o indicador equivalente para as mulheres negras aumentou 22,0%.
A arma de fogo foi a principal causadora de mortes em 2015. Respondeu por 71,9% dos homicídios. De acordo com o relatório, depois de uma redução nas mortes por armas de fogo que se seguiu após o Estatuto do Desarmamento até 2007, observou-se um incremento nas mortes por esse tipo de instrumento nos últimos anos, sobretudo, no norte e nordeste do país, os lugares onde mais cresceram as taxas de homicídio.
No que diz respeito à distribuição geográfica dos homicídios, o nordeste segue despontando como líder nesse crime. Com exceção do Tocantins e Amazonas, todos os estados com crescimento superior a 100% nas taxas de homicídios, entre 2005 e 2015, pertenciam a essa região do país.
O Estado de São Paulo teve a maior variação negativa na taxa, de -44,3%. No entanto, diz o estudo, pode haver um problema nos dados, pois há uma proporção grande de mortes violentas por causa indeterminada.
“Ainda assim, apesar da má qualidade dos dados, São Paulo é o Estado mais pacífico”, diz Cerqueira.
Entre 2010 e 2015, os maiores crescimentos aconteceram nos estados de Sergipe (+77,7%), Rio Grande do Norte (+75,5%), Piauí (+54,0%) e Maranhão (52,8%) e as maiores quedas, no Espírito Santo (-27,6%), no Paraná (-23,4%) e em Alagoas (-21,8%).
O grosso da violência, sugere o relatório, aconteceu em alguns poucos municípios. Em 2015, 111 municípios (2% do total) responderam por metade dos homicídios no Brasil, e 10% dos municípios (557) concentraram 76,5% do total de mortes no país.
O município considerado o mais pacífico foi Jaraguá do Sul (SC) e o mais violento, Altamira (PA). Além do município catarinense ter índices de desenvolvimento humano muito superiores aos de Altamira, os autores apontam outros fatores que também contribuem para o aumento da violência em cidades, por exemplo, um crescimento rápido e desordenado, como aconteceu em Altamira, no rastro da construção da Usina de Belo Monte.
Para os pesquisadores, tem havido uma interiorização da violência -ela não está mais concentrada em grandes metrópoles.
Outros fatores apontados são: um mau mercado de trabalho -um estudo do Ipea feito em 2015 mostra que a cada 1% de redução na taxa de desemprego de homens, a taxa de homicídio diminui 2,1%; a geração de renda nas cidades, que traz benefícios, mas também torna viáveis economicamente os mercados locais de drogas ilícitas; o desenvolvimento econômico e a consequente vinda de imigrantes às cidades, que podem provocar um esgarçamento do controle social do crime.
“A crise dos últimos três anos certamente teve impacto porque afeta o mercado de trabalho e tira recursos do governo para atuar”, diz Cerqueira.
“Se somam a esse cenário características das próprias políticas de segurança. Em primeiro lugar, elas são reativas; em segundo, temos dificuldade de institucionalizá-las – ir além de um líder forte que esteja engajado, caso do Eduardo Campos, em Pernambuco [ex-governador do Estado, morto em 2014] “, diz Bueno.
Essas situações se dão, diz o relatório, “quando as transformações urbanas e sociais acontecem rapidamente e sem as devidas políticas públicas preventivas e de controle, não apenas no campo da segurança pública, mas também do ordenamento urbano e prevenção social, que envolve educação, assistência social, cultura e saúde, constituindo assim o quarto canal pelo qual o desempenho econômico pode afetar a taxa de criminalidade nas cidades. Ou seja, a qualidade da política pública é um dos 21 elementos cruciais que podem conduzir à diminuição das dinâmicas criminais”.
O relatório também traz alguns bons exemplos, os casos do Espírito Santo e de Pernambuco. Entre 2007 e 2013, a taxa de homicídio pernambucana caiu 36%, no rastro da implantação do “Pacto pela Vida”. Entre 2010 e 2015 a taxa de homicídio no Espírito Santo diminuiu 27,6%, no âmbito do programa “Estado Presente”, lançado em 2011.
No entanto, aponta a fragilidade dos avanços nos dois Estados ao lembrar a greve de policiais militares capixabas e o recrudescimento da violência letal em Pernambuco a partir de 2013.
O Atlas da Violência 2017 também faz uma crítica à constante subnotificação no SIM de casos envolvendo letalidade policial -um problema, segundo o estudo, nacional. Em 2015, o SIM registrou 942 casos de intervenções legais, enquanto a segurança pública registrou 3.320 mortes decorrentes de intervenções policiais, ou seja, 3,5 vezes o número de registros da saúde.
Segundo o estudo, o número de mortes decorrentes de intervenção policial já ultrapassou o de latrocínio (roubo seguido de morte), o que demonstra que práticas letais de agentes estatais configuram um padrão institucional de uso da força pelas polícias.
“A letalidade policial e a vitimização policial que a ela se associa são produtos de um modelo de enfrentamento à violência e criminalidade que permanece insulado em sua concepção belicista, que pouco dialoga com a sociedade ou com outros setores da administração pública”, dizem os autores do estudo.
Para eles, os episódios de insegurança que marcaram este ano de 2017, como rebeliões em presídios e greve de policiais, vieram na esteira do agravamento da situação de segurança em anos anteriores, sobre os quais o relatório se debruça.
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