Quando o médico Drauzio Varella quer “quebrar o gelo” em um atendimento numa penitenciária feminina, a primeira pergunta que faz é ‘quantos filhos você tem?’. “São muitos”, complementa o oncologista e escritor diante da plateia da Casa Folha.
A alta natalidade entre as mulheres jovens de classe baixa é um componente crucial para o quadro de violência no país, explicaria o médico ao longo do encontro da manhã desta sexta (28), no espaço da Folha de S.Paulo em Paraty.
O local teve na manhã desta sexta (28) sua mesa mais lotada em sete edições. Um público de cerca de 200 pessoas, na maioria mulheres, se reuniu para a conversa entre Drauzio Varella e Fernanda Mena, repórter especial do jornal.
O tema era o recente “Prisioneiras” (Companhia das Letras), que encerra a trilogia carcerária do autor e colunista da Folha de S.Paulo e se baseia na sua experiência atuando, desde 2006, como voluntário em penitenciárias femininas.
Aplaudido repetidas vezes durante o encontro, o médico abordou as especificidades do trabalho entre as encarceradas, após 17 anos atuando no universo prisional masculino.
“As mulheres são muito mais complexas do que nós. Eu comecei a entender que a diferença fundamental mesmo é que as mulheres têm filhos. Homens também têm, mas gravidez indesejada, para o homem, não existe.”
Outro problema característico que as prisioneiras enfrentam é a solidão. “Esse homem que jura amor pra vocês para no portão de entrada”, disse. “Portanto não aconselho a nenhuma das presentes ir presa”, completou, arrancando risos da plateia.
Essa realidade, que soma a alta natalidade e o abandono, explica Drauzio, alimenta o ciclo de violência como um todo.
“Uma moça de 23 anos, três filhos, como ela vai trabalhar?”, pergunta o médico. “O emprego está nas regiões mais ricas da cidade. Esse deslocamento dura, duas, três horas para ir e para voltar.”
“Por outro lado”, segue, “o tráfico dá emprego e paga muito bem -comparando com o que os empregos regulares pagam. Está tão fácil aquilo, pega daqui, pega dali, você pode comprar as coisas para as crianças. Quando menos percebem, estão envolvidas.”
E presas. Com as mães na prisão, as crianças são “espalhadas” entre casas de parentes, crescem sem referência, “entre pares violentos”, caindo na criminalidade eles também.
O jeito franco do entrevistado manteve o clima leve apesar do clima sério.
Drauzio ainda falou das condições das gestantes e mães presas, que por muito tempo eram algemadas no parto e tinham as crianças levadas aos dois meses (“Melhorou, felizmente, tem um pré-natal decente”) e dos problemas de saúde mais frequentes entre as detentas.
“Mulher tem dor nas costas, dor de cabeça e problemas de intestino. Enxaqueca é universal. Portar uma cabeça em cima do pescoço dói! É um trabalho doloroso!”, disse rindo e arrancando risadas.
Quando a mediadora lhe perguntou por que o interesse dele nesse trabalho, respondeu que era algo que vinha desde a infância.
“Desde criança, eu via aqueles filmes de cadeia, ficava tão excitado, não conseguia piscar.” E disse que sempre teve interesse nas situações-limite.
“A gente aprende muito. É difícil dizer como eu seria se tivesse sido diferente. Eu tenho certeza de que eu teria uma visão muito mais pobre da sociedade brasileira e da vida mesmo, minha vida seria muito menor”, disse, sendo aplaudido novamente.
Seu trabalho entre as mulheres presas começou depois de um momento em que tinha deixado o trabalho nas carceragens, após o fim da Casa de Detenção do Carandiru.
“Não tem coisa mais triste do que você ver a cadeia esvaziando”, recordou, sob gargalhadas gerais. E explicou: “Acaba aquilo -não vou chamar de alegria- mas acaba aquele movimento.”
A realidade da violência de gênero também foi abordada. O médico pediu que levantasse a mão a mulher da plateia que nunca tivesse sofrido um abuso, físico ou verbal, na vida. Ninguém se manifestou.
“Paradoxalmente, o único lugar em que a mulher pode ter liberdade sexual é a cadeia”, disse. Ao que se seguiu uma graciosa explanação sobre os tipos de homossexuais na cadeia, que são vários.
“A homossexualidade é muito mais próxima do repertório feminino. Nós somos muito simples. Descrever sexualidade em cadeia masculina é um parágrafo. Na feminina, são três capítulos.”
O encontro se encerrou com uma sequência de perguntas da plateia, que incluiu a revolta das presas com a liberdade provisória de Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador do Rio Sérgio Cabral, para cuidar dos filhos (“Vocês não imaginam a revolta que esse caso causou”) e sobre o dever ético da sociedade de interferir nessa realidade.
“É evidente. Eu fico chocado porque as pessoas se chocam com a violência. Como você tem uma quantidade enorme de crianças e adolescentes em contato com o crime, vivendo em condições difíceis, acho até que o número de ladrões, assaltantes e traficantes é pequeno.” (Folhapress)