O formato de tela de um filme pode dizer muito sobre o universo de seu protagonista. Se longas com imagens mais horizontalizadas, em scope, costumam narrar tramas que destacam liberdade, espetacularidade, aqueles com formato mais estreito tendem a fazer uma referência gráfica à própria limitação da vida dos personagens retratados.
Foi pensando nisso que o francês Stéphane Brizé optou por uma tela quase quadrada em “A Vida de uma Mulher”, que estreia nesta segunda (10). Fazendo coro com uma certa tendência do cinema mundial recente -visível em filmes como “Mommy” (2014), de Xavier Dolan, e “O Filho de Saul” (2015), de László Nemes-, Brizé usa a estreiteza da tela para mostrar a asfixiante rotina de sua protagonista. No caso, uma mulher burguesa do século 19, que vive sob as demarcações de uma sociedade conservadora e machista.
O curioso é que o diretor chegou a fazer testes em scope nas filmagens, mas mudou de ideia de última hora. “Logo percebi que criava um falso modernismo, como se eu quisesse impor um aspecto de atualidade a um filme de época, que não é o que eu buscava”, disse o cineasta à reportagem, no Festival de Veneza do ano passado, de onde saiu com o prêmio da crítica (Fipresci). “Logo desisti e testei o formato quadrado, que achei mais pertinente.”
Adaptação do romance “Uma Vida”, de Guy de Maupassant (1850-1893), o filme acompanha mais de três décadas na trajetória de Jeanne, mulher que passa a juventude em isolamento religioso, mas que precisa lidar com a malícia (e as maldades) do mundo após deixar o local. Com dificuldades para “perder a inocência” na percepção do que a rodeia, Jeanne sofre muito, sobretudo após se casar (e saber das traições do marido) e ter um filho (que a leva à ruína financeira).
“Minha intenção foi explorar uma forma de alguém se relacionar com o mundo. Que é essa dificuldade de se fazer o luto do paraíso perdido, dessa infância em que tudo parecia simples e fácil de entender”, diz Brizé. “De repente, as pessoas precisam se preparar bem para se defender, se proteger da duplicidade do mundo. Mas Jeanne não sabe fazer isso. Ou não pode… Ela não aceita que o mundo seja como de fato é. Opta por continuar muito pura, e é nessa pureza de alma que mora sua tragédia.”
Mas a marca trágica da vida de Jeanne também tem outras origens. Inteligente, bela e rica, a moça poderia ter uma existência repleta de acontecimentos extraordinários, mas acaba levando uma vida dolorosamente entediante por imposições de uma sociedade machista. Embora fale de uma situação do século 19, o longa não deixa de ser um aceno à mulher de hoje, que ainda vê seu potencial contraído por conta de regras sexistas.
“A história me interessou justamente porque há elementos que não são específicos daquela época”, conta Brizé. “Não falo de algo que ficou no passado. O filme é um ‘retrato’ de uma mulher, que não necessariamente do século 19.”
Em seu filme anterior, “O Valor de um Homem” (2015), o diretor mostrava as dificuldades de um sujeito íntegro se manter honrado em um mundo dominado pela selvageria capitalista. Apesar de tratar de outro momento histórico, “A Vida de uma Mulher” preserva a mesma essência.
“Há sempre um elo: se um diretor não faz um filme em oposição ao anterior, então faz uma espécie de continuidade. Os protagonistas dos dois filmes têm algo em comum: possuem uma ideia elevada a respeito do homem”, diz Brizé. “Creem na capacidade humana de realizar coisas. Como se dissessem: ‘Eu valho mais que o sistema que vocês querem me impor’.” (Folhapress)